Jiahao me olhava com reprovação, balançou a cabeça, e soltou um suspiro pesado.

    — Não são seus problemas, você não precisa interferir — disse ele enquanto caminhava até Lingxin, que ainda ofegava.

    — Por que você fez isso? Tem ideia do que acabou de trazer para si mesmo? — Song passou a mão pela cabeça, incrédulo. — Você não é um cultivador. Vai ser moído pelo Hua Yuling Jin…

    — Aprender na prática tem suas vantagens — respondi com um sorriso, ao me agachar no chão e pegar um dos cacos da garrafa.

    — Então foi por isso? Só para poder lutar? — Song me olhou como se tentasse entender se eu era corajoso ou simplesmente estúpido.

    — Sim. Eu não me importo com o que acontece ou deixa de acontecer com vocês. — Guardei o pedaço de vidro no bolso do casaco, com cuidado. — Apenas uma boa luta é tudo que importa pra mim.

    — Você tem uma semana pra se preparar. — Jiahao coçou a cabeça. — Se tiver algum potencial escondido, talvez consiga alcançar a segunda camada ainda nessa semana, talvez a terceira com os materiais certos. No final, será totalmente inútil. Não vai ser uma luta.

    — Qual a diferença da terceira para a vigésima? — Me sentei despreocupado em uma das cadeiras.

    Song soltou uma pequena risada pela minha pergunta.

    — Pelo menos cinco vezes mais forte. Você não suportaria um soco carregado dele. Talvez sobreviva a três ou quatro golpes sem reforço.

    — Mas posso vencer?

    — É um duelo por pontuação, tudo pode acontecer, mas as chances são mínimas. Numa luta até a morte, a sua vitória é impossível, isso é claro.

    — Parece que eu escolhi bem. 

    Song e Jiahao tiveram uma reação diferente da que eu esperava, apesar de tudo, pareciam estar bem tranquilos. Os semblantes deles pareciam mais afetados pela minha interferência, do que pelo fato em si.

    — Lingxin, acalme-se — falou o senhor Jiahao para o garoto, ao ver a respiração dele ofegante. — Apenas siga o plano.

    — Plano, então é isso? Vocês já sabiam da proposta de casamento? — Juntei as mãos e inclinei o corpo para frente. — Estou certo que este não me incluia.

    — Não incluia você, e eu estava inclinado em recusar te ensinar, porém, a minha ganância falou mais alto — falou Jiahao com arrependimento. — Agora você faz parte disso, arrume suas coisas, iremos partir amanhã de manhã?

    — Você está pensando em fugir? — Estranhei as palavras dele.

    — Tenho honra, e também o nome do meu clã e da minha família a zelar. É claro que eu não vou fugir, nós vamos treinar nas montanhas, cinco dias de treino recluso, sem descanso.

    — Se é impossível eu vencer, qual o proposito disso? — questionei ele.

    — Pelo menos vai sair vivo. — Ele coçou a cabeça. — Pelo menos eu espero.

    Lingxin sentou na minha frente, as pernas tremiam de nervoso, ele batia o pé no chão em um ritmo acelerado, impaciente. Song colocou a mão no ombro dele, e falou em um tom calmo:

    — Não fique assim, vai dar tudo certo. Você tem potencial para derrotar ele em um duelo por pontuação.

    — Mas… mas, e se eu perder? — lamentava-se ele.

    Eu não fazia a menor ideia de como seria a luta entre Renyan e Lingxin, seria algo interessante de assistir, e eu aprenderia mais sobre os meus adversários.

    — Ninguém me explicou ainda como é um duelo por pontuação. — falei, ao soltar um bocejo entendiado.

    Jiahao me encarou, pensou por um momento, e começou a explicar:

    — Bem simples. Dois oponentes se enfrentam numa arena, cada um com uma espada de madeira. O objetivo é marcar dez pontos primeiro. Golpes no tronco valem dois pontos. Braços e pernas, um ponto. Se você conseguir desarmar o oponente, ganha oito pontos de uma vez. E um golpe direto na cabeça, derrota imediata. Não importa o placar.

    — Apenas um duelo de espadas? — Deixei escapar uma pequena risada, a explicação dele me trouxe confiança. — Não vejo a necessidade de um treinamento avançado.

    — Você é estúpido e ignorante. Não vai vencer assim, sem conhecer o seu oponente. Hua Yuling Jin não é qualquer um, talvez seja o terceiro em força da sua geração. Talentos excepcionais.

    Já havia escutado esse tal de talento tantas vezes, que não me impressionava mais. 

    — E o que o cultivo tem de tão impressionante assim? Para dar uma vantagem acima da média para ele?

    Song riu da minha pergunta, enquanto Jiahao virava a cabeça para o filho, um tanto irritado pela minha falta de conhecimento e educação.

    — Parece que você é incapaz de entender, mesmo eu explicando. De onde você é? O seu povo é tão fraco de conhecimento? Como pode? Entenda: cultivo é tudo — respondeu Jiahao, sério. — Cultivo é sobre ser mais forte, fortalecer o seu corpo para que ele se torne uma rocha, resistente à passagem do tempo. É sobre força, velocidade, resistência, percepção. Um cultivador de camadas ou reinos superiores não apenas luta melhor, ele enxerga o combate antes de você sequer entender o que está acontecendo. Isso sem contar as técnicas especiais que ele pode usar.

    — Impressionante — disse eu, com um novo bocejo.

    — Você zomba de nós? Da nossa história? Das nossas tradições? — Song cruzou os braços, e me encarou confuso pelo meu comportamento.

    — Eu? Jamais — afirmei ao levantar os braços. — Apenas estou um pouco cansado.

    — Então descanse, partiremos amanhã cedo. — Jiahao olhou para o filho. — Song, cuide da loja durante nossa ausência, e ajude Lingxin com qualquer coisa que ele precisar.

    — A gentileza com um hóspede é elogiável. — Fiz uma reverência respeitosa com o corpo, as mãos no peito. — Agradeço pela permissão, e irei fazer o meu melhor para retribuir tal ato no futuro.

    — Não confunda gentileza com um serviço. — Ele acenou com a cabeça, levantou-se e acompanhado por Lingxin, caminhou para os fundos da loja.

    Ficamos eu e Song no salão principal da livraria, em silêncio. Eu estava pensativo sobre os acontecimentos, mas Song pensava em outra coisa.

    — Temo que não poderei acompanhá-lo até um restaurante. — disse ele, com um tom um pouco formal demais.

    — Tudo bem, perdi a fome. — Dei de ombros para aquilo.

    — Não minta pra me agradar — retrucou ele, com um olhar direto. — Você estava de cama até agora, e o ferimento foi grave.

    — Me sinto perfeitamente bem — disse com um sorriso calmo, cruzando os dedos sob o — Me sinto perfeitamente bem — disse com um sorriso calmo, cruzando os dedos sob o queixo. — Você não devia se preocupar comigo. Aliás, devia estar preocupado com outra pessoa.

    Song fez uma expressão um tanto despreocupada.

    — Lingxin vai demorar um tempo para absorver tudo, mas sei do potencial dele. A habilidade dele é muito superior que a força bruta de Renyan.

    — Eu falo de Mei. Pelo pouco tempo que tive com ela, não me pareceu confortável ao lado de Renyan. O que ela acha disso tudo?

    Ele hesitou um pouco antes de responder.

    — Isso não é da sua conta. Todavia, você é esperto, e está certo sobre as suas impressões. Ela odeia essa história toda. Duvido que conseguiria fingir por muito tempo, caso tivesse que lidar com ele frente a frente.

    — Qual é exatamente o grau de parentesco entre vocês dois? Pude inferir que ela é sua prima, mas por parte de pai ou de mãe?

    — A mãe dela era irmã do meu pai.

    — Entendi. Presumo que ela seja falecida.

    — Provavelmente não. — Song desviou o olhar, com a voz mais baixa. — Meu pai nunca fala sobre ela. Sempre muda de assunto. Mas, pelo que ouvi, minha tia foi uma mulher talentosa. Quando tinha doze anos, já havia ascendido ao segundo reino. Aos dezoito, chegou ao terceiro e iniciou a formação do núcleo interno. Depois, partiu para o “Mar do Dragão”. Quando ela retornou, Mei era um bebê de colo.

    Fiquei curioso. A história de alguém muito poderoso que é forçado a partir e volta com um bebê no colo para outro cuidar já me era familiar, alguns dos outros membros do ‘Conselho Imperial’ tiveram esse mesmo infortúnio.

     — Então ela abandonou a filha?

    — Não. — Song foi firme. — Meu pai sempre negou isso. Diz que sua irmã jamais abandonaria a própria filha.

    Quase deixei escapar uma risada. Já tinha escutado aquela conversa outras vezes: “não ele jamais faria isso”, “foram forças maiores” ou até mesmo “foi para proteger o filho”. Não queria desrespeitar Song, então me controlei para me manter sério, e continuar a fazer perguntas aos poucos.

    — Entendi. E o pai dela? Decidiu comprar cigarro?

    Song balançou a cabeça, confuso.

    — Como? O que é um cigarro?

    Coloquei a mão na cabeça novamente, e reformulei a frase.

    — Quero dizer, ele desapareceu no mundo? Sem detalhes sobre ele? Vocês ao menos sabem quem ele é?

    — Mesmo se meu pai soubesse, duvido muito que contaria. — Song ficou em silêncio, pensativo.

    Observei a reação dele, e decidi que já era a hora de eu me preparar para a semana seguinte. 

    — Bem, acho que isso é tudo. Vou me retirar de volta para o meu quarto. 

    — Não está com fome?

    — Não, eu perdi realmente a fome depois disso tudo.

    — Tudo bem, descanse, amanhã meu pai o levará bem cedo para os bosques montanhosos.

    — Onde seria isso? 

    — Uma região mais ao sul — explicou ele, ao cruzar os braços. — Já que não podemos acessar a Ilha dos Hua Yuling, a segunda melhor área de cultivo por aqui são os bosques nas montanhas. O Qi não é exatamente abundante, mas ainda é suficiente para alguém como você começar com o básico.

    — Não estou levando a sério, vocês falam que esse processo dura anos, e, ao mesmo tempo, esperam que eu comece amanhã e esteja preparado para lutar na próxima semana. Eu não deveria estar pensando em como vou trapacear para ganhar o duelo?

    — Trapacear? Isso seria uma vergonha! Você não se importa com a sua honra?

    Song se levantou no mesmo instante, perturbado pelo meu mero pensamento em arranjar alguma forma alternativa de vencer.

    — Eu me importo com a grande palavra “Vitória” bem bonita na minha frente. — Enquanto falava, gesticulava com as mãos. — Honra é um bônus subjetivo que não muda nada. A história não se lembra de honra, se lembra de quem as escreve, e normalmente, são os vitoriosos que as escrevem seus nomes pela eternidade.

    — Sua arrogância será sua ruína — profetizou, e sentou-se novamente. 

    — Eu apenas não acredito nesse prazo tão curto. Pelo pouco que pude entender, cultivar o próprio corpo para atingir novos limites é algo demorado e trabalhoso. Nunca que duas semanas seriam suficientes.

    — Não se importe tanto com o tempo que leva, isso varia de pessoa para pessoa, não só do potencial dela, mas também do acesso a tesouros e outros artefatos. Há muitos relatos sobre cultivadores do “Reino dos Celestiais” que são obrigados a alcançar o quinto reino antes dos cinquenta anos. Isso para nós, meros mortais, é impraticável.

    — Quinto reino? Não faço ideia do que isso significa em termos de comparação ou poder.

    — Perdão — ele suspirou. — Esqueço que você não está habituado com esses termos. Um cultivador que chega ao quinto reino já passou pela Formação do Núcleo. Nesse ponto, ele começa a entrar em harmonia com as forças do mundo. É a primeira etapa em direção à imortalidade.

    — Imortalidade? Em que sentido? Imortais ou simplesmente ignorar a velhice?

    — Sim, apenas outro imortal pode matá-los.

    — Se eles podem morrer, então não são imortais.

    Song olhou para o teto, como se esperasse que um raio caísse na minha cabeça naquele exato momento. Depois voltou o olhar para mim, sério, levantando o dedo como quem dá uma advertência severa.

    — Isso é blasfêmia. Nunca novamente diga esse tipo de coisa em voz alta. Nem em brincadeira.

    — Obrigado pelo aviso, farei questão de gritar para os quatro ventos quando encontrar um deles — respondi com uma reverência de cabeça.

    Song não pode esconder o desprezo.

    — Um mortal arrogante e desrespeitoso como você nunca teria essa oportunidade.

    — Veremos — falei, ao sair do salão principal e voltar para o quarto de hóspedes.

    Enquanto subia as escadas, levei a mão ao bolso. O pedaço de vidro da garrafa ainda estava ali, áspero contra meus dedos. A ocasião certa para me livrar dele não havia surgido até agora, finalmente, o momento ideal havia aparecido.

    Com a outra mão, toquei o baralho. As cartas deslizaram com facilidade entre meus dedos até que encontrei a que procurava.

    — Dez de espadas… — sussurrei bem baixo.

    O caco de vidro se desfez entre meus dedos, transformando-se em pó cintilante, e então desapareceu no ar. Um sorriso discreto surgiu em meus lábios. Imaginei a expressão de Song ao ver o restante da garrafa no chão do salão da loja sumir como mágica.

    Entrei no quarto, e me preparei para meu próximo movimento.

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