Capítulo 16 - Caos
Oliver apoiou o peso do corpo na bengala, o cachimbo entre os dentes soltando um redemoinho preguiçoso de fumaça púrpura. Ele me observava como quem avalia uma espada recém-forjada, parece boa, mas ainda longe de ser lendária.
— Não se empolgue demais, meu jovem Apóstolo, — disse, cruzando os braços e arqueando uma sobrancelha. — Aquela Moradina que você enfrentou… não passava de uma lembrança. Uma ilusão que eu moldei a partir de minha mente, baseada na única vez em que encontrei a própria Deusa em carne e mana.
Aquilo me fez silenciar por um instante. A luta havia sido tão intensa, tão devastadora, que minha mente ainda sentia as reverberações de cada golpe. Eu suava sangue, vomitava, sentia dor, morri incontáveis vezes. E mesmo assim… era só uma fração?
— Uma… lembrança? — perguntei, tentando processar. — Mas ela parecia real. Quase invencível.
Oliver riu com um certo amargor.
— Porque ela é. Mesmo em forma ilusória, a presença de uma divindade se impõe como uma montanha sobre a alma de um mortal.
Ele deu uma longa tragada no cachimbo e soprou a fumaça com um gesto quase teatral.
— Mas aquilo… era apenas a Moradina do dia em que a vi. Naquele dia, há mais de quatrocentos anos, em Kharzak-Tor.
Os olhos dele brilharam com a memória. Ele começou a andar em círculos, como se contasse uma peça no palco da própria mente.
— Eu estava explorando a capital dos anões, aquela maravilha esculpida em ouro sólido. Os corredores cintilavam como chamas e os sinos da forja nunca paravam de soar. E ali, diante do grande martelo da Primeira Forja… ela apareceu.
A fumaça do cachimbo se adensou à nossa volta, formando a imagem de uma mulher de pele bronzeada, cabelos negros como carvão, e olhos dourados como brasas vivas.
— Moradina. A Deusa-Forjadora. A Senhora da Terra. Tão baixa para ser humana, alta demais para ser uma anã. Cada palavra sua parecia pesar toneladas, como se fossem lingotes de ouro arremessados na alma.
A imagem se dissipou, tragada pelo vento invisível da torre mágica. Oliver encarou o vazio com um ar de quem não sabia se devia reverenciar ou temer a lembrança.
— Ela não me atacou. Mas me avaliou. Me mediu. E eu soube… ali, no silêncio entre seus passos, que jamais conseguiria derrotá-la. Mesmo com todo o meu poder, mesmo com as minhas veias queimando com o grau oito, eu era uma tocha diante de uma estrela.
— Mas a ilusão que enfrentamos—
— Era só o reflexo daquilo. Uma fotografia mágica. Um esboço. — interrompeu ele. — E mesmo esse esboço matou você centenas de vezes.
Engoli em seco. Pers se aproximou de mim por trás, pousando a mão em meu ombro.
— A força de um deus não está apenas na magia, — disse ela, com sua voz baixa, quase carinhosa — mas no tempo. Milênios de conhecimento, incontáveis batalhas, infinitos aprendizados acumulados. Nenhum mortal pode entender o peso da eternidade.
Oliver assentiu, apontando para mim com a haste do cachimbo.
— E é por isso que você precisa manter os pés no chão, Hades. Você é promissor. Extraordinário. Um prodígio que me assombra a cada dia. Mas você ainda é um aprendiz. E deuses não são vencidos por instinto ou talento. São vencidos por milênios de preparação. Ou por algo que ninguém jamais tentou…
Ele sorriu com um ar provocativo, como quem segurava um segredo entre os dentes.
— …ou por alguém que não lute como servo, mas como igual.
Pers apertou meu ombro levemente.
— É por isso que eu te escolhi, Hades. Para não repetir os erros do passado. Para que, pela primeira vez, um apóstolo e sua deusa possam caminhar lado a lado. Sem correntes. Sem véus. Apenas fé… e amor.
Fiquei em silêncio.
A lembrança da luta. A voz grave de Moradina. O som do trovão em meus próprios punhos. Tudo aquilo girava dentro de mim como uma tempestade contida. Eu havia vencido. Mas estava longe… muito longe do fim.
Talvez aquele fosse apenas o começo.
Logo depois das palavras de Oliver e Pers, um silêncio quase respeitoso caiu sobre a torre mágica. A fumaça do cachimbo ainda pairava no ar, traçando espirais preguiçosas acima de nós. Mas minha mente não sossegava.
Eu havia vencido a projeção de uma Deusa, dominado feitiços do quinto círculo, purificado minhas veias até o limite da insanidade… e mesmo assim, algo ainda parecia incompleto.
Foi então que a pergunta surgiu: o que me falta?
Me levantei devagar, sentindo os músculos doloridos da última batalha. O vento etéreo da torre acariciava minha pele como uma lembrança do que eu havia superado e do que ainda precisava conquistar.
Olhei para Oliver e para Pers, que conversavam baixinho sobre os últimos feitiços. Meus olhos encontraram os dela. Ela sorriu, como sempre fazia quando queria me passar confiança, mas havia um brilho de preocupação em seu olhar. Eu a compreendia. E, mesmo assim…
— Quero enfrentá-la de novo — disse. — Duas vezes.
Oliver franziu o cenho, como se tivesse ouvido errado.
— Como é?
— Duas Moradinas — repeti, firme. — Ao mesmo tempo. Preciso de prática. Eu venci uma. Mas se um dia quiser enfrentar os próprios deuses, não posso me contentar com uma só ilusão.
O velho mago piscou. Duas vezes. Depois me olhou como se eu tivesse acabado de declarar guerra ao próprio céu. Ele abriu a boca para falar algo, mas em vez disso, virou-se para Pers e murmurou, meio de canto:
— Anota aí, querida… definitivamente masoquista.
Pers riu baixinho, tapando a boca com a ponta dos dedos. Seus cabelos prateados brilharam ao refletir a luz sobrenatural da torre.
— Eu anotei desde a primeira vez que ele morreu sorrindo — respondeu ela, com um olhar que misturava orgulho e pesar.
— Bom — disse Oliver, girando o cachimbo entre os dedos — se é prática que você quer, prática você terá.
Ele estalou os dedos e uma nova fumaça púrpura tomou a sala. As paredes pareciam tremer, como se o espaço estivesse se preparando para conter o impossível. Raios de energia começaram a dançar entre as colunas. A atmosfera ficou pesada, densa, como o ar antes de uma tempestade.
— Mas se você morrer de novo, a culpa é sua. E se quebrar alguma parte da torre, você vai pagar.
— Não tenho dinheiro — respondi, me preparando.
— Então vai me pagar com a alma — disse ele, rindo.
Duas figuras surgiram da névoa. Duas Moradinas. Idênticas, poderosas, com olhos de fogo e postura de guerreiras imortais.
Elas abriram os olhos ao mesmo tempo. E o mundo ao redor pareceu parar.
O treinamento havia começado de novo. Mas dessa vez, eu sabia que não bastava apenas lutar. Era preciso sobreviver. Era preciso aprender.
Era preciso tornar-me aquilo que o destino havia sussurrado desde minha primeira morte: um assassino de deuses.
Então as duas partiram para cima de mim ao mesmo tempo. Morri. De novo. E de novo. E outra vez.
O ciclo era brutal e viciante. As duas Moradinas não me davam espaço para respirar. Seus feitiços colidiam como tempestades divinas, seus golpes eram precisos como o destino. A cada nova tentativa, eu era esmagado, queimado, despedaçado. E a cada renascimento, voltava um pouco mais afiado, um pouco mais frio, mais calmo. Mais… morto.
Mas havia algo nisso. Uma lógica oculta por trás da dor. A cada morte, sentia como se parte do meu ser fosse arrancada e devolvida com outra forma. Como se a morte não me levasse embora, mas me moldasse. Polisse. Refinasse. Como se a dor fosse o cinzel e eu, uma estátua de pedra sendo esculpida por mãos invisíveis.
Eu estava me tornando um com a morte. E, no fundo, percebia isso com uma estranha satisfação.
— Quatrocentas e vinte e sete vezes… — murmurou Oliver, anotando no caderno com a ponta do cachimbo na boca. — Hades, você já é praticamente profissional em morrer.
Após apanhar tanto até me esgotar completamente, deitei de costas no chão da torre, ainda sentindo os músculos vibrando da última explosão mágica. Minha pele estava queimada, minha mana quase vazia. Mas havia um sorriso no meu rosto. O tipo de sorriso que só alguém que entendeu algo profundo demais para colocar em palavras poderia ter.
Foi quando Pers se aproximou. Ela se ajoelhou ao meu lado, ajeitou meus cabelos com a ponta dos dedos e, com um sorrisinho nos lábios, falou:
— Você sabe que isso já está beirando o prazer, não sabe?
— O quê? — perguntei, ainda ofegante.
Ela inclinou a cabeça e me olhou com aquele brilho debochado nos olhos vermelhos.
— Você morre tanto… sente tanta dor… e ainda volta com esse sorriso viciado. — Ela suspirou como quem faz uma constatação inegável. — Hades, na próxima vez que formos nos beijar… você gostaria de estar amarrado?
Fiquei em silêncio por um instante. O silêncio mais alto do mundo.
Minha boca se abriu, mas nenhuma resposta saiu. Oliver quase caiu da cadeira, engasgando com a própria fumaça.
— Pela barba de Moradina — murmurou o professor, tossindo. — Vocês dois são piores do que qualquer romance barato de taberna!
Pers apenas riu, deitada agora ao meu lado no chão de pedra, os cabelos se espalhando como prata líquida. Ela cruzou os braços atrás da cabeça e olhou para o teto invisível da torre mágica.
— Mas estou falando sério, Hades. A maneira como você lida com a dor… é quase íntima. Quase… bonita.
— Acho que a morte tem sido minha amante por tempo demais. — Respondi, finalmente.
— Então talvez esteja na hora de ter uma nova. — sussurrou ela, de olhos fechados.
A fumaça púrpura flutuava em torno de nós como véus de outro mundo. E naquele momento, com as cicatrizes frescas da batalha e o coração batendo junto ao dela, percebi algo curioso:
Mesmo com todos os feitiços, a dor, as mortes e as revelações cósmicas… o que mais me mudava era aquela mulher que ria de mim mesmo quando eu ressuscitava pela milésima vez.
E pela primeira vez naquela noite, eu não estava pensando em como vencer deuses.
Estava pensando no beijo prometido.
Após isso, morri mais centenas de vezes.
A torre mágica já não cheirava mais a poeira antiga ou fumaça de tabaco. Ela cheirava a morte. A minha morte. O eco das minhas últimas palavras, das minhas últimas tentativas, das minhas últimas vontades, vibrava entre as pedras encantadas daquele lugar como um coro fantasmagórico.
E a cada renascimento, sentia os ecos mais distantes, como se fossem versões de mim mesmo me sussurrando truques e conselhos do além.
— Quatrocentas e oitenta e nove… — disse Oliver, balançando a bengala como quem conta moedas em um jogo de cartas. — Um número simbólico. Ou inútil. Quem liga? O importante é que você está ficando realmente perigoso.
E eu estava.
Com cada retorno, meu domínio sobre a mana da morte se aprofundava. Comecei a experimentar, a testar combinações. Se era para morrer, que fosse fazendo arte. Meus raios negros, antes instáveis como serpentes famintas, tornaram-se afiados, letais, rápidos como pensamentos.
Eu podia invocá-los com um gesto, guiá-los com um piscar de olhos. Alguns se entrelaçavam como correntes e caíam sobre os inimigos como julgamentos.
Mas foi ao combiná-los com o Ignis Mortem que meu verdadeiro potencial começou a se revelar. Os trovões fúnebres se tornavam brasas negras, explosões de fogo espectral que dançavam ao redor de mim como fantasmas em fúria. Chamas silenciosas e elétricas, tão belas quanto fatais.
— Ignis Mortem… raios negros… você está construindo um estilo próprio — disse Pers, deitada na escada em espiral da torre, observando cada movimento meu com atenção. — Um mago da morte… que parece mais um trovão do que um túmulo.
E de fato, eu deixava de parecer um feiticeiro comum.
Eu me tornava tempestade.
Na luta 510, comecei a conjurar Ignis Mortem com ambas as mãos e, com um estalar de dedos, o canalizava em lanças flamejantes que explodiam em contato com qualquer feitiço rival.
Quando Moradina tentou lançar seus estalactites dourados, usei meus raios negros para colidir no ar, rasgando os céus com trovões gêmeos. A torre tremeu. Oliver precisou refazer metade da cúpula superior.
Na luta 524, fundi o raio negro com Ignis Mortem em um único disparo: um dragão flamejante feito de trevas e eletricidade, que rugia como se carregasse minha raiva acumulada em todas aquelas mortes. A ilusão de Moradina cambaleou. Quase venci.
Na 539, finalmente compreendi o que Oliver quis dizer com “fundir seu coração com o feitiço”. Ao invocar Ignis Mortem, em vez de apenas soltá-lo como uma explosão, eu o guiei com intenção. Com desejo. Com dor. Ele não era apenas um feitiço: era um grito.
— Está criando sua própria assinatura arcana — disse Oliver, massageando a têmpora enquanto escrevia anotações. — Seus feitiços já não seguem a teoria comum. Você manipula a mana morta como se ela fosse viva, isso não faz sentido, mas funciona.
Pers sorriu orgulhosa. Não era só orgulho. Era carinho.
— É porque ele não usa magia — disse ela. — Ele canta com ela. E a morte, enfim… canta de volta.
E naquele instante, soube que estava me tornando algo novo. Algo entre mago e ceifador. Algo que aprendera a morrer sorrindo, só para voltar ainda mais perigoso.
E eu sabia:
Na próxima luta… eu morreria de novo.
Mas, dessa vez, seriam elas quem sangrariam primeiro.
As duas Moradinas avançaram como sombras implacáveis do passado divino, douradas, brutais, incessantes. Uma estalactite atravessou meu ombro. Outra explodiu em minha perna.
Senti a carne gritar, o osso ceder. Mas continuei. Eu não lutava mais como um homem. Eu não morria mais como um mortal. Eu estava em outro lugar. Um lugar onde a dor não era inimiga, mas guia.
No instante seguinte, algo mudou.
Não foi uma explosão. Nem um grito. Foi… silêncio.
Meu coração desacelerou. As partículas de mana ao meu redor, as que Oliver havia me ensinado a enxergar, flutuaram como poeira dourada em câmara lenta. O tempo… se partiu em mil fragmentos. E no meio deles, eu. Como se estivesse respirando o ar de outro mundo. Como se a morte me abraçasse e dissesse: agora sim, você me compreendeu.
Um clarão percorreu minhas veias. Não doeu. Era quente, limpo, sereno. Meus músculos se tornaram leves, minha visão mais nítida. E a mana, por séculos uma visitante difícil, fluía por dentro de mim como uma amiga que finalmente confiava.
— O sexto grau… — murmurei, com a voz de quem acorda de um sonho antigo.
As duas ilusões de Moradina dispararam estacas de ouro na minha direção. Mas eu já não estava ali. Me movi entre partículas, como se elas mesmas me carregassem. Meu corpo atravessou os feitiços com uma dança impossível de ser prevista, e numa conjuração perfeita, disparei um Ignis Mortem aprimorado com meu novo domínio.
Uma das Moradinas foi engolida pelas chamas negras.
Explodiu. Sumiu. Morreu.
A outra preparava a próxima ofensiva, mas antes que pudesse agir, Oliver estalou os dedos e sua fumaça púrpura dissolveu a ilusão em faíscas.
Ele riu. Um riso que parecia conter séculos de orgulho e um leve toque de incredulidade.
— Pela barba das Sete… você conseguiu. — Caminhou devagar até mim, seu cachimbo em brasa. — Bem-vindo ao sexto grau, Hades. A essa altura da minha vida, eu ainda brigava com a teoria dos portais dobrados e com a ressaca do meu casamento fracassado.
— E agora? — perguntei, sentindo o mundo girar mais devagar ao meu redor, como se até o próprio tempo me respeitasse.
Oliver sorriu e soprou uma espiral de fumaça lilás que se torceu no ar, formando lentamente um número seis cintilante.
— Agora… você é um mago digno dos livros. Um herói digno das canções. E um problema sério para qualquer mestre mago desavisado.
Oliver girou o cachimbo entre os dedos, a brasa incandescente desenhava reflexos carmesins em suas lentes. Ele me observava como quem encara uma pintura antiga que, por algum milagre, acabara de se mover.
— Sexto grau. — Repetiu, pensativo. — Nessa etapa, as crianças costumam parar. Os magos se aposentam. Os feiticeiros se tornam lendas locais. E os idiotas… bem, esses acham que podem bater de frente com deuses. Mas você, Hades, você é uma exceção. Então… hora de te ensinar o que só deveria ser passado para arquimagos senis ou gênios nascidos sob constelações impossíveis.
Estalou os dedos. A torre mágica respondeu. As paredes ganharam círculos de runas antigas, e o chão absorveu a luz até ficar negro como obsidiana líquida. Eu me posicionei. Pers se afastou para a sombra de uma pilastra e cruzou os braços, seus olhos vermelhos atentos como brasas silenciosas.
— Os feitiços de sexto círculo exigem conjuração plena. Não é só energia, é intenção. É como gritar com a alma. Como ferir o próprio ar. — Disse ele, puxando da fumaça e deixando que ela formasse símbolos no ar. — Mas você… você tem uma vantagem. A mana morta.
A fumaça girou, escureceu, e as runas brilharam em roxo profundo.
— Toda magia é um sopro de vida. Mas a sua… é um sussurro do fim. Por isso, os feitiços que vou te ensinar não serão apenas versões mais fortes. Eles terão fome. Eles devorarão o que tocarem.
Ele ergueu a bengala e a cravou no chão. Um som surdo ecoou como trovão abafado.
— Primeiro: Umbra Arcanum.
Uma esfera escura brotou no ar. Girava lentamente como um pequeno eclipse preso entre dimensões. A cada rotação, pedaços da luz do ambiente eram sugados para ela.
— Uma magia gravitacional. Ela não explode, não queima, não perfura. Ela consome. Tudo o que tiver mana… ou alma. Cuidado com esse troço. Com um grau a menos, você viraria pó.
Eu a conjurei. A mana morta fluiu de mim como se tivesse estado esperando por esse momento. A esfera surgiu… mas diferente da de Oliver. A minha era feita de sombras líquidas, serpenteando em volta de um núcleo imóvel como um olho que jamais pisca.
— Incrível… a sua está viva. — Disse Oliver, coçando a barba com espanto. — Ou morta, dependendo do ponto de vista.
— Próximo? — perguntei, sentindo a fome pulsante da Umbra Arcanum se dissolver na palma da minha mão.
— Segundo: Sepulcrum Spinae.
Do chão à frente dele brotaram espinhos de ébano, finos como agulhas, mas que vibravam com uma energia demoníaca. Eram tantos que cobriram metade da sala em segundos.
— Você os invoca debaixo do inimigo. Cada espinho é como um dedo da morte. Não adianta se esconder. Eles atravessam até o plano etéreo. E os seus, sendo banhados em mana morta… devem doer mais do que palavras no funeral de alguém que não gostava de você.
Conjurei. Os espinhos emergiram mais longos, mais curvos, como ossos ancestrais gritando para ver o sol pela última vez. Cada um negro, translúcido e coberto de inscrições necromânticas. Pers observava em silêncio, um pequeno sorriso de canto nos lábios. Orgulho contido.
— E por fim — Oliver disse, girando no próprio eixo com teatralidade exagerada — a joia do sexto círculo: Thanathós Gaze.
O ar tremeu. A luz se extinguiu. E por um segundo, eu senti como se estivesse sendo observado por algo além dos véus da realidade. Um olhar que julgava não apenas meu corpo, mas minha essência.
— Essa é especial. — Disse ele, sério. — Você mira em alguém, qualquer ser vivo com alma, e evoca o Olhar do Véu. O alvo começa a ver todas as suas mortes possíveis. Todas. Desde tropeçar e bater a cabeça até ser devorado por um deus. E acredite: poucos aguentam o peso disso. E os que aguentam… voltam diferentes.
Oliver me lançou um olhar que carregava respeito genuíno.
— Agora quero ver como isso se molda em sua mana morta.
Fechei os olhos. Concentrei a energia, o peso do que sou. Quando abri novamente, conjurei o Thanathós Gaze. A sala pareceu sumir. Até Pers deu um passo para trás. Uma sombra sem forma projetou-se de mim como um espectro, e seus olhos, olhos feitos daquilo que vem após o fim, encararam o nada.
Oliver ficou em silêncio. Depois sorriu.
— Hades… você é um poeta da destruição. E agora… um mestre do sexto círculo.
Pers caminhou até mim. Tocou meu rosto com as pontas dos dedos e disse:
— Essa mana… ela não serve só para matar. Ela é o tecido do esquecimento, do descanso eterno. Quando você conjura, o mundo silencia. Você entende isso, não é?
Assenti. Ela sorriu.
— Então, continue, meu apóstolo. E transforme a própria morte… em arte.
Oliver ajeitou as mangas do sobretudo, como se estivesse se preparando para um duelo de xadrez contra o próprio destino, e disse:
— Eu gostaria de te ensinar mais sobre o Thanathós Gaze… mas, infelizmente, essa honra cabe à sua terceira mestra.
Dei um passo à frente, ainda ofegante da última conjuração.
— Terceira mestra?
Pers suspirou, cruzando os braços, os cabelos prateados esvoaçando suavemente pela mana densa no ar.
— Por Ao, Oliver… você realmente anda saindo escondido para conversar com os outros mestres do Hades? Ainda fico surpresa que você consiga fazer essas jogadas pelas sombras mesmo fumando esse cachimbo fedorento o tempo inteiro.
Oliver sorriu com um ar presunçoso, e a fumaça púrpura subiu em espirais como se até ela se divertisse com o segredo.
— Minha querida deusa da morte… parte do charme de ser um velho excêntrico é nunca revelar todos os segredos de uma vez. Vocês jovens gostam tanto de mistério, não é?
— Isso é pra você não perder a graça, ou porque você realmente é um fofoqueiro disfarçado de professor? — Pers rebateu com um sorriso de canto, já conhecendo a resposta.
— Exatamente. — Oliver deu uma longa tragada no cachimbo, depois apontou a ponta incandescente para mim. — Não esperem que eu diga quem ela é. Nem onde está. Nem o que vai ensinar. Quando chegar a hora, você saberá. E vai doer.
— Sempre dói. — Respondi em voz baixa, sentindo o peso das palavras dele se fixar como uma tatuagem invisível sobre minha pele.
Oliver girou a bengala e, com um passo teatral, voltou ao centro da sala mágica.
— Agora, nada de antecipar o terceiro ato, caros… bom, agora só vocês dois. Vamos manter a magia viva, até porque o show ainda está longe de terminar.
Pers riu e se aproximou, tocando levemente minha mão.
— Se essa terceira mestra acabar se tornando tão extravagante quanto ele… Será que teremos que construir um palco?
— Ou um necrotério. — Disse Oliver por cima do ombro, rindo sozinho. — Vai depender da aula.
E assim, com mais perguntas que respostas, a promessa de um novo mestre pairava sobre nós como uma estrela distante. Brilhando. Aguardando sua entrada.
Oliver esfregou as mãos, os olhos brilhando como se fosse Natal em Kharzak-Tor e ele tivesse acabado de encontrar uma cerveja envelhecida no templo secreto de Moradina.
— Muito bem, meu prodígio sombrio, pronto para enfrentar duas Moradinas novamente? — perguntou com um sorriso sádico nos lábios, enquanto girava o cachimbo entre os dedos. — Posso até invocar três, caso deseje tornar isso… espiritualmente traumático.
Cruzei os braços, respirei fundo e neguei com a cabeça.
— Não. Já enfrentei aquelas ilusões inúmeras vezes. Se eu quiser chegar ao sétimo grau, preciso mudar o treino.
A fumaça púrpura pausou no ar, como se tivesse prendido a respiração. Oliver arqueou uma sobrancelha e apoiou-se na bengala como se estivesse ouvindo uma ópera inusitada.
— Hmmm… interessante. Negar a repetição pelo progresso. Tocar as notas certas apenas uma vez e seguir para a próxima canção… Isso é novo. E ousado. — Ele me estudou por um segundo, como se estivesse me redesenhando por dentro. — O que propõe, jovem devoto da morte?
Pers se aproximou em silêncio, o vestido roçando suavemente as pedras do chão, olhos vermelhos atentos a cada nuance da conversa. Não falou nada, mas havia expectativa em seu silêncio.
— Não sei ao certo ainda, mas sinto que lutar contra as ilusões já não me ensina nada. Quero um treinamento que exija mais do que só resistência… algo que refine minha alma ou minha mente. Se o sétimo grau está acima do limite humano, então preciso ultrapassar os próprios limites da magia como a conhecemos.
Oliver sorriu de lado, como se essa fosse a resposta que ele queria ouvir desde o início.
— Muito bem, então. Prepare-se. A partir de amanhã, deixamos de lado o campo de batalha… e vamos adentrar os domínios do desconhecido.
— O que isso quer dizer? — perguntei com uma pitada de cautela.
— Que vamos treinar em lugares onde os próprios conceitos de mana, espaço e lógica são… maleáveis. Vamos testar sua magia em mundos distorcidos, e talvez até em partes esquecidas do próprio Reino Além.
— Você quer me levar para dentro da morte?
— Não. — Ele sorriu, divertido. — Eu quero que você a reconstrua. Tijolo por tijolo.
Pers enfim falou, a voz suave e misteriosa.
— Essa será a parte mais perigosa, Hades. Não é lutando contra inimigos que se encontra a morte… é entrando dentro de si mesmo.
Assenti, sentindo um frio na espinha.
O novo treino não seria apenas físico. Nem mágico.
Seria existencial.
E era exatamente isso que eu queria.
Na manhã seguinte, o céu sobre a torre mágica amanheceu coberto por nuvens negras que não pertenciam a nenhum clima natural. Pareciam carregadas não de chuva, mas de presságios. Eu já havia sentido isso antes, aquele tipo de atmosfera que antecedia mudanças irreversíveis.
Oliver estava de pé ao centro do salão de treinamento, com o cachimbo entre os dentes e um livro em branco flutuando à sua frente. Ele não dizia nada. Apenas escrevia, traçando runas e palavras arcanas com a própria fumaça mágica, como se estivesse inscrevendo um contrato com a realidade.
Pers estava sentada no parapeito da torre, com as pernas cruzadas e o rosto voltado para o horizonte. Ela me observava como quem observa um altar aceso antes do sacrifício.
— Hoje — disse Oliver finalmente, sem sequer me olhar — nós abandonamos tudo o que é familiar. Você vai conjurar, sim. Vai se defender, vai atacar. Mas não contra o que conhece. Seu próximo inimigo… será o caos.
— O caos?
— O limbo que existe entre os reinos. A borda entre mundos. O lugar onde a lógica do universo falha e a mana enlouquece. E você vai fazer mais do que sobreviver. Vai lutar dentro dele.
A fumaça púrpura envolveu meu corpo como se me analisasse, como se quisesse saber se eu estava pronto. E então, com um estalar seco da bengala, Oliver conjurou um portal.
Era diferente de tudo o que eu já tinha visto. Não girava, não brilhava, não tremeluzia. Era apenas um vazio vertical, negro como a morte, envolto por linhas trêmulas de runas impossíveis.
— Onde isso leva? — perguntei.
— Ao Coração do Vazio. Um plano que existe entre Thaldrakos e os ossos esquecidos de mundos que falharam em nascer. Um lugar onde não há tempo. Onde o espaço é uma sugestão. Onde você pode conjurar uma montanha… e ser esmagado por ela porque esqueceu de acreditar que tinha pés.
— Isso parece terrível.
— É. E por isso mesmo… perfeito para treinar a mente de um futuro deus menor.
Sem hesitar, dei o primeiro passo.
Foi como cair em todas as direções ao mesmo tempo.
Meus ossos vibravam em frequências que eu não compreendia. As runas do portal não sumiram; elas estavam por toda parte, girando como constelações instáveis dentro do meu crânio. Tentei me manter inteiro, mas a mana ao meu redor se desfez em espinhos.
— Não tente respirar — a voz de Oliver ecoou na minha mente, vinda de lugar nenhum — pense que você está respirando. Aqui, você molda o ambiente com certeza, não com força.
Foi quando percebi: esse era o treino.
A própria existência era instável ali, e eu teria que estabilizá-la com minha vontade.
Tentei erguer uma plataforma para os pés. Nada. Afundei. Tentei novamente, dessa vez acreditando que ela existia antes mesmo de tentar criá-la e então ela surgiu.
Não era magia como eu conhecia. Era uma dança entre fé e loucura.
A cada feitiço lançado, o lugar reagia de forma caótica. Uma simples rajada virou um furacão. Uma esfera de mana explodiu como se fosse uma estrela em miniatura. Tudo era ampliado… distorcido… potencialmente fatal.
Mas eu aprendi.
E rápido.
A cada tentativa, o caos respondia com mais violência. Mas, em troca, minhas veias se tornavam mais hábeis em conduzir a mana escura de Pers, como se eu estivesse me fundindo com ela. Não havia mais separação entre o feitiço e o conjurador. Eu era o relâmpago, o fogo, o impacto.
Horas? Dias? Não sei quanto tempo se passou.
No fim, de pé sobre uma plataforma instável feita de puro pensamento, percebi que não precisava mais lutar contra o caos.
Eu era o caos.
E foi nesse instante que senti. Um pequeno estalo dentro de mim. Algo diferente de todas as outras evoluções. Não era o grau sete ainda, mas era um novo patamar de controle. Um estágio invisível entre os círculos, o prelúdio de algo maior.
Uma flor escura começou a crescer sob meus pés, como se o próprio Reino Além estivesse reconhecendo minha presença.
E então, o portal se abriu atrás de mim, e Oliver me puxou de volta com a fumaça púrpura.
De volta à torre.
— Impressionante… — murmurou ele, parecendo ofegante pela primeira vez. — Você não apenas sobreviveu… você trouxe algo de volta com você.
Pers se aproximou e estendeu a mão. Eu a segurei.
— O que trouxe do vazio, Hades?
Olhei para a palma da minha mão. Nela, dançava uma pequena chama negra. Silenciosa. Perfeita. Antinatural.
— A certeza… de que posso mudar o mundo.
Oliver deu um sorriso enigmático ao me ver de pé, ainda coberto por pequenas fissuras de fumaça escura que escapavam da minha pele como vapor de um ferro forjado no abismo.
— Você está pronto — disse ele, girando o cachimbo entre os dedos. — Pronto para a parte mais ingrata, mais exaustiva, mais solitária e mais dolorosa do treinamento.
Suspirei. Só o que faltava. Mais dor.
— Os próximos dias — ele continuou, andando em círculos ao meu redor — serão passados inteiramente dentro do Coração do Vazio. Você vai meditar lá. Sentar. Respirar. Refletir. Enquanto isso… — ele estalou a bengala no chão, fazendo faíscas de mana roxa e negra pularem no ar — …suas veias de mana vão ser refinadas à força, talhadas como cristal sob pressão.
— Parece horrível.
— É horrível. — Oliver sorriu como se isso fosse um elogio. — E também necessário. Enquanto os outros precisam de alquimia, banhos de essências, círculos de concentração, você… você vai ser lapidado diretamente no caos. Porque é isso que você é, Hades. Você é o amante da morte. Você não foi feito para trilhar caminhos fáceis.
Pers franziu o cenho, mas não contestou. Seus olhos vermelhos me seguiram em silêncio, como quem observa um sacrifício prestes a começar. E, de certa forma, era mesmo.
Entrei novamente pelo portal. O Coração do Vazio me recebeu como um predador que já tinha sentido o gosto do meu sangue. O tempo aqui era apenas um eco, e o chão sob meus pés… não existia. Eu mesmo o criei, apenas para ter onde cair de joelhos.
A dor começou imediatamente.
Não como um corte. Nem como uma queimadura. Era uma dor invisível, interior, o tipo que rasga de dentro pra fora. Minhas veias de mana, aquelas linhas quase etéreas que conduzem o poder por todo o corpo, estavam sendo invadidas por um fluxo descontrolado.
A mana ao redor não se comportava como em Chaia. Aqui, ela era indomável, como serpentes de vento negro chicoteando minha carne de dentro.
Tentei me manter ereto, mas logo minhas pernas cederam.
Me sentei. Pernas cruzadas. Respiração lenta. Mente afundando.
E a mana veio como uma tempestade.
Ela fluía violentamente por mim, entrando pelos poros, atravessando músculos, nervos, ossos. Era como ser esculpido vivo. Cada partícula que atravessava minhas veias era uma lâmina. E, ainda assim, eu continuei.
Porque esse era o treino. Meditar dentro do caos. Permitir que a dor moldasse o caminho da purificação.
No primeiro dia, eu gritei.
No segundo, eu chorei.
No terceiro, eu não conseguia mais distinguir se estava vivo.
Mas continuei.
Meus pensamentos se embaralhavam. Eu via imagens da Terra. Meu pai de farda erguendo a bandeira sobre o posto avançado. Minha mãe sorrindo enquanto costurava o uniforme médico. E minha irmã… segurando um ursinho de pelúcia sujo de sangue. Vi explosões. Sirenes. Fogo. Gritos.
Cada memória doía como um punhal atravessando minha concentração. Mas eu não fugi delas. Eu mergulhei nelas. Porque era isso que Oliver queria. E, mais ainda… era isso que eu precisava.
Dor. Perda. Ruptura.
Isso me fez quem eu era.
E agora, no caos, tudo isso virava combustível.
Ainda não alcancei o grau sete. Ainda não dominei esse novo limiar. Mas estou caminhando. Lentamente. Rasgando cada pedaço da minha alma até que ela se torne algo novo.
Purificada pela violência da existência.
Na beirada do silêncio absoluto, ouvi a voz de Oliver ecoar dentro da minha mente:
— Lembre-se, Hades… dor é a prova de que você ainda está se moldando. E só os que se moldam… se tornam deuses.
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