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    No exato momento em que as palavras foram ditas, um ruído suave veio do barco. Magno emergiu da cabine, seus movimentos silenciosos como os de um gato. Ele parou na amurada, os braços cruzados, e ficou observando a interação a distância, uma sombra de desconfiança endurecendo suas feições

    O olhar do desconhecido se voltou lentamente para o deus caído e um sorriso se formou, como se a resposta para a questão fosse desnecessária de tão óbvia. Ele então notou Magno, ainda parado e observando do barco. Longe de se sentir intimidado, o Sacerdote acenou com a cabeça para o gatuno, um gesto lento e sereno.

    — Encontre-me na mina abandonada ao anoitecer, e testemunhará o verdadeiro poder da fé. — Ele disse a Hermes, antes de se virar e se afastar com a mesma calma com que chegou, desaparecendo nas sombras da cidade.

    Assim que a figura do Sacerdote sumiu, Magno pulou do barco para o cais.

    — Que papo era aquele, desbotado? — Ele perguntou, a voz baixa e urgente. — Aquele era o tão aclamado sacerdote caolho de quem todos têm tanto medo? — O tom era de puro deboche.

    Hermes assentiu, o olhar ainda perdido na escuridão por onde o homem havia desaparecido.

    — Não parece grande coisa. — Magno cuspiu no chão, a desconfiança evidente.

    — Ele é mais do que parece. — A voz de Hermes era grave. — Ele sentiu o poder da moeda, Magno. Ele está envolvido com a mesma conspiração que estamos caçando.

    Magno o encarou por um longo momento, o conflito visível em seu rosto. Finalmente, ele soltou uma risada seca, completamente desprovida de humor.

    — Eu não avisei? — Ele disse, a voz cheia de um amargor vitorioso. — E o melhor de tudo — ele acrescentou, sarcástico —, ele acredita que você é um aliado.

    — Exatamente. — Hermes se virou, e pela primeira vez naquela noite, um brilho perigoso surgiu em seus olhos cansados. — E é por isso que vamos ao encontro dele. É a nossa melhor chance de descobrir o que está acontecendo aqui.

    A confiança na voz de Hermes fez Magno franzir a testa. 

    — E não passou pela sua cabeça que isso tudo seja uma armadilha? Que está sendo fácil demais?

    Hermes olhou para o mar escuro, o vento agitando seu cabelo branco. 

    — Passa. A cada segundo. — Ele deu uma pausa e suspirou. — Mas não temos outra escolha senão cair nela.

    Magno caminhou até a frente de Hermes, coçando a cabeça. A bandana vermelha caindo um pouco sobre os olhos antes que ele a ajeitasse.

    — E por que não rendeu ele aqui, para que nós o interrogássemos? — Perguntou, olhando nos olhos de Hermes. — Não seria menos arriscado do que simplesmente caminhar até a boca do tifão?

    — Talvez sim, talvez não. — Hermes ajeitou a espada que ainda segurava na cintura, e então se voltou para o barco. — Não se encurrala um animal desconhecido, Magno. Não sem ter alguma ideia do que ele pode fazer para se defender.

    Magno encarou as costas do rapaz, reflexivo. Seria essa realmente a melhor forma de lidar com a situação?

    …………

    A noite desceu sobre Thasos, engolindo a ilha em um silêncio que parecia pesado e vigilante. O trio partiu do cais, deixando a segurança precária do barco para trás e mergulhando nas sombras da cidade. Hermes guiava, seus passos eram os de um fantasma nas vielas de paralelepípedos, enquanto Magno e a figura encapuzada o seguiam como ecos de seus movimentos.

    A subida pela colina foi uma jornada para o coração de uma terra adoecida. A trilha estreita era ladeada por árvores cujos galhos se pareciam moles, vibrando com o vento sobre eles em um som que parecia o ranger de ossos.

    Um cântico baixo e dissonante, quase inaudível a princípio, começou a flutuar no ar, tornando-se mais claro e mais perturbador a cada passo. Melodioso, clássico, introspectivo, distorcido. 

    Uma composição de Lira tocada com os dentes. Agonia.

    — Que lugar é esse? — Magno sussurrou, parando por um instante para observar um símbolo estranho, um olho estilizado, entalhado na casca de um carvalho.

    — O covil dele — respondeu Hermes, a mão nunca se afastando do cabo da espada. — Continue andando.

    Finalmente, eles emergiram em um platô. Diante deles, sob a luz pálida da lua, estava um antigo anfiteatro de mármore, suas bancadas de pedra engolidas pela vegetação, como se a própria natureza tentasse esconder a profanidade que acontecia ali.

    No centro da arena, dezenas de cidadãos de Thasos se moviam em um transe lento e mecânico. Eram homens e mulheres, jovens e velhos, trabalhando como autômatos com olhar vazio e sorrisos no rosto. 

    Eles empilhavam barras de ouro reluzente e arrastavam pesados barris de vinho, organizando-os ao redor de um grande dólmen de pedra negra que se erguia no centro como um altar profano. O ar era espesso com o cheiro adocicado do vinho e o frio metálico do ouro.

    Esperando por eles, de pé ao lado do dólmen, estava o Sacerdote. Ao vê-los se aproximar, um sorriso de satisfação se espalhou por seu rosto.

    — Pontuais — disse ele, a voz ressoando na acústica da arena. — Aproxime-se, emissário. Contemple a verdadeira beleza da fé.

    Hermes avançou, deixando Magno e Sêneca perto da entrada, uma guarda silenciosa. Ele parou a poucos metros do Sacerdote, seus olhos dourados varrendo a cena, a escala da operação o deixando inquieto.

    — Impressionante — disse Hermes, a voz um gelo neutro. — O Mestre ficará satisfeito com a sua… dedicação.

    O orgulho inflou o peito do homem. Ele gesticulou para a pilha de tesouros com a grandiosidade de um rei.

    — Isso é apenas o tempero. O ouro atrai o poder, o vinho embriaga a alma, tornando-a mais fácil de colher. — E então, se virou para Hermes com um sorriso devoto — O que forjarei aqui facilitará nossa missão como nada antes conseguiu fazer.

    — Forjar? — Hermes franziu o cenho, o tom cuidadoso para não soar suspeito — Como você planeja forjar com ouro e vinho?

    — Ora, não se preocupe, meu precioso emissário. É claro que elementos tão terrenos não seriam suficientes. A verdadeira matéria prima de minha forja… — ele olhou para os cidadãos em transe com um brilho faminto em seu olho — …são eles.

    Ele se aproximou de Hermes, baixando a voz em um tom conspiratório. — Sei que o Mestre recompensa generosamente seus servos mais leais. E vejo em você a marca de um poder que ele preza. — Seus olhos brilharam com astúcia. — Eu planejava usar todos eles, mas para um profeta tão próximo do mestre, posso fazer uma exceção. Cedo a você algumas dessas almas para seus próprios propósitos. Considere um presente, para fortalecer nossos laços.

    A oferta pairou no ar e pareceu torná-lo mais pesado. A densidade daquela frase performou em Hermes uma dúvida terrível. Como ele poderia descobrir mais sem sacrificar seu disfarce e sem, inevitavelmente, se tornar parte daquele plano louco?

    Magno, mesmo à distância, sentiu um calafrio e sua mão apertou o cabo da faca. Hermes, no entanto, permaneceu imóvel, processando a profundidade daquela loucura.

    O silêncio de Hermes se estendeu. Cada segundo parecia uma eternidade, o ar no anfiteatro denso com as palavras profanas. O deus caído estava encurralado. Aceitar a oferta era se tornar cúmplice de um massacre; recusá-la era quebrar o disfarce e perder a única pista que tinha. Ele considerou, por um instante nauseante, permitir que o Sacerdote continuasse, apenas para arrancar mais um fragmento de informação daquela loucura.

    — Sacerdote — a voz de Magno era surpreendentemente calma, mas cada palavra era dita por entre os dentes cerrados. — Uma oferta generosa. Mas talvez… imprudente.

    Ele não aguentou. A imagem daquelas pessoas, tratadas como gado, era um eco insuportável de sua própria tragédia. Ele saiu das sombras da entrada, os passos lentos e deliberados, a mão nunca se afastando da faca em sua cintura.

    O homem no centro se virou lentamente, o olho único se fixando em Magno com curiosidade. Hermes se enrijeceu, preparado para a violência.

    — O Mestre preza pelo poder, é claro — continuou Magno, forçando um tom de cumplicidade. — Mas ele detesta o desperdício. Sacrificar um rebanho tão… promissor… por uma única forja de poder? Essas pessoas poderiam servir a um propósito maior. Como servos, como soldados…

    O caolho escutava com atenção, a cabeça ligeiramente inclinada, o sorriso devoto desaparecendo lentamente de seu rosto. Ele olhou de Magno para Hermes, e então de volta para Magno, uma engrenagem girando por trás de seu olhar.

    Ele se virou, encarando o rebanho que trabalhava sem parar, com contentamento incessante.

    — Um propósito maior… — ele repetiu as palavras, testando seu peso.

    Hermes tinha o ar preso em seus pulmões, não se atrevia a quebrar a tensão no ar com um único suspiro. Perguntou-se se o sacerdote aceitaria essa oferta. Seria Magno capaz de convencê-lo de forma tão descuidada?

    E então, o homem sorriu de forma debochada. E seu olhar se voltou para os dois ‘emissários’.

    — E que propósito poderia ser maior do que obedecer uma ordem direta de meu mestre? — Ele perguntou, uma ponta de irritação surgindo em seu tom antes impassível.

    Hermes apertou o cabo de sua espada disfarçadamente, seu olhar se estreitando e os joelhos minimamente flexionados. A postura tensa de um animal encurralado.

    O Sacerdote permaneceu em silêncio por um momento, a atmosfera se tornando pesada, carregada de suspeita. Ele deu um passo à frente, e sua voz, antes a de um profeta, agora era a de um inquisidor.

    — Digam-me. Quem são vocês de verdade?

    O ar gelou. A farsa havia se estilhaçado.

    — Somos emissários — Hermes respondeu de imediato, a voz firme como aço, tentando remendar a rachadura. — Enviados para supervisionar as províncias e garantir que a vontade do Mestre seja cumprida sem desvios tolos.

    Ele encarou, e então um sorriso lento e terrivelmente astuto se espalhou por seus lábios. 

    — Entendo. Emissários. — Ele deu uma pausa dramática. — Então, me perdoem a ousadia, mas poderiam responder uma questão simples? Qual é o meu nome?

    O silêncio que se seguiu foi absoluto. Hermes e Magno se entreolharam, e naquele instante, ambos souberam que o jogo havia acabado.

    — MENTIROSOS! — O rugido não foi humano. Insanamente alto, como se amplificado por algo, o grito se aprofundou na montanha agitando as árvores pelo caminho 

    No exato momento em que o grito ecoou, um som único e sincronizado cortou o ar: o ruído de dezenas de pás e picaretas caindo na pedra. Um silêncio mortal. Então, como marionetes cujos fios foram puxados por uma única mão, todos os cidadãos hipnotizados pararam seu trabalho e se viraram, em uníssono, para encarar o grupo de Hermes. Seus rostos estavam vazios, seus olhos vidrados, mas seu foco era total. O incômodo, a tensão, era palpável no ar.

    — Como podem desconhecer Brontes, o mais fiel dos seguidores do fim! — berrou, a fúria desfigurando suas feições. — Agora eu entendo… Não foram enviados para testemunhar a colheita… vieram para fazer parte dela!

    Com um gesto violento, ele arrancou o tapa-olho, revelando uma parte lisa de seu rosto, sem olho, sem sequer espaço para um. Apenas uma face lisa.

    Hermes saltou para trás, Magno fez o mesmo. Ambos sacaram suas armas.

    O Gatuno tinha suas duas adagas em mãos erguidas, Hermes, sua xiphos desembainhada. Mas os dois abaixaram as armas ao mesmo tempo quando viram o rosto de Brontes tremer.

    A transformação foi uma blasfêmia contra a carne. O que antes era uma órbita humana se contraiu e se fechou, enquanto um som úmido e nauseante de cartilagem se deslocando e carne se deformando ecoou na arena. 

    A pele de seu rosto ondulou como tecido, e o olho único começou sua jornada grotesca, deslizando pela ponte do nariz que se achatava sob ele, até se fixar no centro da testa. A carne se esticou, repuxando os lábios de Brontes em um esgar de agonia e êxtase. Seu corpo se expandiu, os músculos se avolumando sob a túnica que se rasgava, sua estatura crescendo até ele se tornar um gigante. Sua cabeça pareceu inchar, se deformar, e assumir uma forma mais rude, menos humana. A coroa de louros que repousava em sua cabeça, sinal de pureza, realeza, religiosidade, cedeu, partindo-se e caindo no chão.

    O último som humano de Brontes morreu em sua garganta, substituído por um rugido que abalou o mármore do anfiteatro. Diante deles, não havia mais um homem, mas uma montanha de fúria primal. Seu rosto era uma paisagem de horror: a pele estava esticada de forma antinatural sobre uma estrutura óssea que já não era humana, repuxando seus lábios em um esgar permanente e achatando seu nariz em uma mera protuberância abaixo do centro de sua testa.

    E ali, onde a testa deveria estar, o olho único, agora do tamanho de um pequeno escudo, pulsava com um brilho opaco e nauseante de uma cor não reconhecível.

    Um silêncio sepulcral preencheu o espaço quando Hermes e Magno deixaram seus queixos caírem em choque.

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