Capítulo 177 - Hunides (2)
O ambiente dentro do hotel abandonado exalava um ar de resistência, um santuário improvisado para os que viviam à margem do sistema. As paredes descascadas estavam cobertas de pichações vibrantes — mensagens de revolta, declarações de lealdade, nomes marcados como cicatrizes de uma guerra urbana silenciosa.
O chão rangia a cada passo, e o cheiro de tinta fresca misturava-se ao de comida caseira vindo de algum canto do lugar. Yoru observava tudo com olhos atentos, absorvendo cada detalhe daquele cenário que, apesar de destruído, pulsava com vida. Jake seguia à frente, como um anfitrião orgulhoso, abrindo caminho pelos corredores grafitados.
— É aqui que vivem? — Yoru perguntou, observando o teto rachado e a iluminação improvisada com fios puxados por todos os lados.
— É mais do que isso — respondeu Jake com um sorriso sincero. — É aqui que a gente sobrevive. Aqui que encontramos sentido, longe da podridão dos colégios controlados por esses chefes mascarados.
Subiram dois lances de escada até chegarem a uma ampla sala. Lá dentro, nove pessoas estavam reunidas. Uns mexiam em comida, outros limpavam as coisas, e alguns apenas riam entre si. Era um caos harmônico. Jake bateu palmas duas vezes e chamou a atenção de todos.
— Reunião galera! Esse aqui é Yoru Akemi. O cara que derrotou o número 1 da escola 35. — Ele sorriu e estendeu o braço como se apresentasse uma lenda viva. — Nosso convidado especial.
Todos se viraram ao mesmo tempo. O silêncio caiu por alguns segundos. Então um dos rapazes, de cabelo loiro descolorido e expressão desconfiada, se levantou.
— Jake… Você tá mesmo trazendo gente nova pra cá? Depois do que rolou com o Tarso?
— Cala a boca, Lince — respondeu uma garota de tranças que usava um bastão de beisebol como apoio. — Se o Jake confia, a gente confia. E se esse é mesmo o Yoru… então ele salvou muitos de nós e nem sabe disso.
Yoru inclinou a cabeça, curioso. — Como assim?
— Vamos apresentar um por um — disse Jake, levantando o dedo. — Depois a gente conversa.
Jake apontou para cada um, um por um:
— Esse é o Lince, briguento e desconfiado, mas nosso vigia principal. A moça de tranças se chama Nayra, a mais habilidosa com armas brancas que eu conheço. Aquele magricela mexendo nos circuitos é o Arlo, nosso técnico e hacker. Aquela garota ali com o bebê no colo é a Rika, e o pequeno é o Yudi, filho do nosso antigo parceiro. O fortão de braços cruzados é o Hanzo, nosso escudo. Ali no canto, cochilando com uma máscara no rosto, é o Kane, o mais veloz de nós. Ao lado dele tá o Domi, estrategista e calculista. E ali, fumando e olhando pela janela, é a Yuri, nossa atiradora.
Yoru cumprimentou a todos com respeito. Rika se aproximou com o bebê e sorriu.
— Você tem olhos tristes, Yoru. Como os de quem já perdeu muito. Mas também vejo força neles… Espero que encontre o que procura.
Yoru ficou em silêncio por alguns segundos, sem saber como responder. Apenas assentiu com a cabeça.
Jake então fez sinal com a cabeça para que ele o seguisse até um cômodo ao fundo, mais isolado. A sala era simples, com apenas dois sofás rasgados, uma pequena mesa com papéis e mapas, e uma estante cheia de documentos. Jake trancou a porta atrás de si e se sentou, indicando o outro sofá para Yoru.
— Agora sim… hora de falar a verdade. — O tom dele ficou mais sério.
Yoru sentou e o encarou, esperando.
Jake respirou fundo e começou:
— Você perguntou sobre a gangue da Lua. O que vou te contar pode te colocar num buraco sem volta… Mas acho que você já está até o pescoço nisso.
Yoru assentiu com a cabeça, firme. — Eu quero saber tudo.
Jake então contou:
— A gangue da Lua é um dos três braços operacionais da organização secreta comandada por ninguém menos que Charles Choi, o presidente da GHV. Oficialmente, ele é só um empresário bilionário que investe em educação, esporte e caridade. Mas nos bastidores… é um demônio.
Yoru arregalou os olhos. — Charles? Eu já vi ele na Tv algumas vezes
Jake franziu a testa. —É… o cara é um capeta em pessoa
— Ele parece ser alguém gente boa— Yoru respondeu, encarando o chão. — Mas eu nunca soube quem ele realmente era até agora…
Jake ficou imóvel por alguns segundos, então suspirou. —Quase ninguém sabe disso… Charles comanda três grupos. A gangue da Lua é o braço violento, feita pra executar, intimidar, queimar arquivos humanos. A gangue Red Fang cuida das extorsões e operações financeiras ilegais. E a gangue Cão de Ferro, que age dentro de escolas, dominando diretórios estudantis e fazendo lavagem de reputações.
Jake se levantou e caminhou até uma prateleira, puxando um fichário velho. De dentro dele, tirou várias fotos: algumas de pessoas mortas, outras de transações falsas, escolas em chamas, estudantes desaparecidos.
— Todos esses casos… têm ligação direta com os grupos do Charles. Ele transformou adolescentes em armas, em moeda de troca… e o Haruto estava prestes a abrir a boca sobre isso.
Yoru sentiu um arrepio na espinha.
— O Haruto sabia de tudo?
— Ele era um dos queridinhos do Charles por algum motivo. Ele usava o status e fama pra passar por dentro do sistema sem levantar suspeitas. Mas alguém descobriu. E agora ele está morto.
Yoru socou a mesa com força, fazendo uma das fotos voar.
— Ele morreu por minha culpa… Se eu tivesse descoberto antes…
— Não é culpa sua. — Jake respondeu firme. — O Charles está um passo à frente de todo mundo. A única chance de derrubá-lo… é unindo o máximo de pessoas possível.
— E por que você quer fazer isso? — Yoru perguntou.
Jake olhou nos olhos dele com intensidade.
— Porque eu vi minha irmã ser levada por eles. Ela tinha 14 anos. Nunca mais voltou. E depois disso, minha mãe se matou. Eu quero ver esse desgraçado arder.
Yoru respirou fundo. As peças começavam a se encaixar… A morte da sua mãe, o mistério das missões, o poder surgido do nada, o passado sombrio do Haruto, a estrutura das escolas… Tudo levava a uma coisa:
Charles Choi.
Yoru se levantou, encarando Jake.
— Jake… Eu vou ajudar você. Vou derrubar o Charles junto a vocês. Por minha mãe. Pelo Haruto. Por todas as crianças que ele destruiu.
Jake deu um sorriso discreto, e então os dois apertaram as mãos com força.
O vento atravessava as frestas do hotel abandonado, assobiando entre as pichações coloridas e os vidros quebrados. A atmosfera ali dentro era uma mistura de juventude rebelde e sobrevivência. O som do choro de um bebê ecoava pelos corredores, misturado com risadas e conversas dos demais membros da gangue Hunides. Yoru olhava ao redor, absorvendo cada detalhe daquele lugar. Era sujo, mal iluminado, mas carregava um calor humano que ele não sentia há muito tempo.
Jake, agora sentado em uma poltrona rasgada, encostado com um cigarro aceso entre os dedos, observava o novo visitante com um olhar mais sério.
— Me fala sobre o Haruto. — ele disse, soltando uma fumaça densa que subiu lentamente pelo teto ruído.
Yoru permaneceu de pé por um instante, como se ponderasse o que podia ou não dizer. Mas o peso da morte de Haruto ainda estava fresco demais para ele esconder.
— Haruto era o antigo número 1 da escola 35. Um dos mais brutais e estrategistas que eu conheci. Ele tentou unificar as escolas através do medo e da força. Criou uma rede de dominação baseada num falso poder, manipulação e alianças frágeis.
Jake ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços.
— E você o derrotou?
— Tive que fazer isso. Ele não me deu escolha. Se eu não o parasse, mais gente iria sofrer. Ele estava se tornando algo… incontrolável. — Yoru respondeu, com os olhos fixos em um pingo de ferrugem no chão.
Jake esfregou o queixo, pensativo.
— Não estou aqui pra te julgar, Yoru. Cada um tem seus fantasmas. Mas… se você derrotou Haruto, e agora ele está morto, isso não foi por acaso.
Yoru assentiu levemente. Havia algo de estranho demais na morte de Haruto. Ele sabia disso. Era como se uma força maior estivesse puxando os cordões.
Jake se levantou e caminhou até uma janela quebrada, observando a cidade lá fora.
— Se metendo com a Hunides… você acabou de se meter com mais do que uma gangue, cara. Agora o Charles vai saber da sua existência. E ele não vai deixar barato. Ele é o verdadeiro monstro por trás dessa geração, e você também será caçado
Yoru sentiu um frio na espinha.
— E por que eu seria caçado?
Jake soltou uma risada seca.
— Porque você agora sabe demais. E não só isso: você tem algo que o Charles quer. Poder. Influência. Sua existência é um erro no sistema dele. E erros precisam ser apagados.
O som do bebê chorando ficou mais alto, e uma garota entrou na sala com ele no colo. Ela sorriu para Jake e deu uma leve olhada para Yoru antes de sair de novo.
— Essa criança…
— Filha de um dos nossos que foi morto pela gangue da Lua. Eles queriam que ele se juntasse, ele recusou. Trinta tiros no peito. A mãe dela morreu tentando proteger. Agora criamos ela como nossa.
Yoru apertou os punhos. Ele sentia a raiva queimando por dentro. Mas também sentia medo. Não por si, mas por todos os que poderiam ser pegos no fogo cruzado.
Jake voltou a falar:
— Charles não vai vir de cara. Primeiro ele vai mandar “testes”. Homens de ranking alto. Gente que você talvez não esteja pronto pra enfrentar. E quando ele perceber que você é um problema real… aí sim, ele mesmo pode se mexer.
— Eu não tenho medo dele. Já enfrentei o inferno antes. — Yoru respondeu, encarando Jake nos olhos.
Jake deu um sorriso de canto.
— É bom ter confiança. Mas se prepare, porque não estamos falando de valentões de escola aqui. Estamos falando de assassinos treinados, de moleques moldados pra matar.
Yoru suspirou. O peso do futuro estava se tornando cada vez maior. Mas ele sabia que não podia voltar atrás.
— Jake… se eu for alvo deles, todos vocês aqui também serão. Eu não quero colocar sua família em risco.
Jake estalou os dedos, chamando a atenção dos demais membros da Hunides que estavam no cômodo.
— Ouçam aqui! Esse aqui é Yoru Akemi. A partir de hoje, ele é parte da nossa casa. Ninguém toca nele sem passar por cima de mim primeiro. Estamos juntos nessa merda até o fim.
Os demais assentiram, alguns batendo no peito, outros sorrindo. Yoru olhou para todos, e pela primeira vez em muito tempo, sentiu que não estava sozinho.
Jake bateu em seu ombro com força.
— Agora descansa. Amanhã, começamos a planejar como vamos derrubar o império de Charles Blaker.
Yoru fechou os olhos por um momento, absorvendo tudo. O mundo lá fora era um caos crescente, mas ali dentro daquele hotel decadente, uma nova revolução começava a nascer.
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