Índice de Capítulo

    Um ano depois.

    O orfanato, antes silencioso, se transformara em um reduto vivo de esperança.

    Os corredores estavam cheios de risadas, cochichos e sinais de mãos secretos.
    A Sala do Meio já não era apenas um cômodo abandonado — era um símbolo.

    Eles se chamavam “Os Hunides”.

    Não por serem fracos, ou submissos. Mas por entenderem a dor. A fome. A ausência.
    Por saberem que antes de levantar a cabeça, é preciso aguentar o mundo em silêncio.

    Agora, mais de trinta crianças faziam parte do grupo.
    Todas se ajudavam. Todas confiavam.

    E no centro disso tudo… Jakson.
    Não era o mais velho. Nem o mais forte. Mas era o que mais olhava nos olhos.

    Ao seu lado, Dagon, mais confiante, mais firme.

    Rui, agora com um corte de cabelo ousado e um sorriso que surgia fácil, Nilo, o estrategista dos planos mirabolantes.
    Timo, Lara, Diego, cada um com seu papel.

    Mas nem tudo era união.

    No fundo, uma sombra crescia.

    Uriu, o antigo opressor, estava cada vez mais calado.
    Observava. Escutava.
    Os punhos fechados. O coração confuso.

    Ele via crianças que antes se arrastavam pelo chão agora caminhando com orgulho.
    E o pior: rindo com aqueles que, antes, ele humilhava.

    Mas o que mais lhe doía…
    Era que ele queria fazer parte.
    Mas não sabia como.

    Até o dia do confronto.

    O céu tingido de laranja queimado. O vento arrastando folhas secas.
    As crianças se reuniam ao redor, num círculo silencioso.

    No centro, Jakson e Uriu.

    — Então é isso? — Jakson perguntou, encarando Uriu com olhos firmes.
    — Vai resolver no soco?

    — Não sei fazer de outro jeito — Uriu respondeu, a voz arrastada.

    — Eu não consigo pedir desculpa. Eu só… quero entender por que vocês me deixaram de lado.

    Jakson respirou fundo.
    — A gente não te deixou de lado. Você é que nunca estendeu a mão.

    Uriu avançou.

    Os punhos falaram por ele.
    Socos secos, precisos.
    Mas Jakson desviava. Ele não queria machucar.

    Até que um golpe cruzado acertou seu queixo.
    Caiu de joelhos. Sangue na boca. Mas olhou Uriu nos olhos.

    — Bate em mim o quanto quiser. Mas escuta: a gente ainda tem um lugar pra você.

    — Mesmo depois de tudo?

    — Justamente por causa de tudo.
    — Você também é um Hunides. Só não percebeu ainda.

    Uriu caiu de joelhos.

    — Eu não sei como amar ninguém…

    — Aprende com a gente. — disse Dagon, estendendo a mão.

    Uriu chorou. Pela primeira vez.
    Chorou até o sol se apagar.
    E ali, foi abraçado por todos.

    Dias depois, a rebelião começou.

    A dona do orfanato, Madame Carmélia, estava mais cruel. Cortara refeições. Proibira a Sala do Meio. Espalhara câmeras.
    Ela sabia: algo estava crescendo. E isso ameaçava o controle que ela tinha.

    Mas a Hunides… estava pronta

    Plano X-3, executado em três fases:

    1. Sabotar os alarmes e as travas.

    2. Distrair os vigias e criar rotas de fuga.

    3. Fugir em grupos, com mochilas escondidas e pontos de encontro pré-definidos.

    O trovão estourava quando Jakson abriu a porta dos fundos.

    — Agora!

    Trinta e duas crianças correram pela lama, olhos atentos, coração na boca.
    As mais velhas carregavam as menores.
    Dagon, de mochila nas costas, liderava um grupo. Rui, com lanternas e mapas. Nilo atualizava os passos via rádio de brinquedo.

    Atrás, gritos.

    — Eles fugiram! Vão atrás!

    Mas era tarde.

    Na escuridão, guiados pelas estrelas, os Humildes fugiram do inferno.

    E foram a um prédio abandonado, na parte esquecida da cidade.

    Cinco andares. Paredes rachadas. Cheiro de mofo e ferrugem.
    Mas havia espaço. E havia liberdade.

    Jakson entrou primeiro. Pisando com cuidado

    — Aqui vai ser nossa nova casa.

    Rui sorriu, mesmo tremendo de frio.
    — Vai precisar de limpeza, muita limpeza…

    Dagon assentiu.
    — Mas já parece melhor que qualquer coisa que a gente teve.

    Eles passaram o resto da noite montando camas com pedaços de sofá.
    Usaram lonas e panos velhos como cortinas.
    Fizeram um refeitório improvisado na cozinha quebrada.
    Rui e Lara montaram o primeiro filtro de água com carvão e pano.
    Uriu cavou uma fossa para os dejetos. Nilo conseguiu ligar uma tomada com energia roubada da caixa de luz externa.

    E aos poucos… o caos virou lar.

    uma semana depois.

    O grupo estava reunido, sujos, cansados, mas sorrindo.

    Jakson, de pé sobre uma caixa, discursava.

    — O mundo nunca quis a gente
    .
    — Mas nós… nos escolhemos.

    — Esse lugar vai ser duro. Vai doer. Vai faltar.

    — Mas agora a gente sabe o que tem: uns aos outros.

    Dagon segurava um pedaço de madeira com palavras entalhadas:

    Uriu fincou a placa no chão do terraço.

    — Pode não ser muito… — ele disse. — Mas agora é nosso.

    E todos gritaram juntos.
    Eram trinta e dois.
    Trinta e dois corações que desafiaram tudo.

    Naquela noite, sem camas macias, sem comida certa, sem água quente…
    Eles dormiram em paz.

    Pela primeira vez

    Mas o mundo lá fora…
    não era gentil.

    Não era como nos filmes que as crianças assistiam escondido nas noites do orfanato.
    Não existia um herói vindo para salvá-los.
    Nem alguém para guiá-los.

    Só eles mesmos.
    E a cidade que os engolia a cada esquina.

    O prédio da Hunides tornou-se lar, mas também trincheira.
    A cada novo dia, surgia um desafio.

    Gangues de rua circulavam nas redondezas, principalmente à noite.
    Moradores de rua ameaçadores tentavam invadir para roubar comida ou abrigo.
    O frio do inverno cortava como lâmina, e a fome não perdoava, mesmo os mais novos.

    Jakson, Dagon, Uriu e Nilo passaram a sair em turnos.
    Coletavam restos de feiras, alimentos descartados, fios de cobre, materiais que podiam vender.

    Eles aprenderam a se virar.

    Rui criou um sistema de marcação nos muros com giz e carvão para identificar caminhos seguros e perigosos.
    Ela também organizava a limpeza e a divisão de alimentos.
    Era a alma do grupo.

    Mas no meio do caos, algo floresceu.

    Algo bonito.

    Kevin era um garoto calado.
    Entrara no grupo dos Humildes pouco antes da fuga.
    Vinha de outro orfanato, mais cruel ainda, com marcas no corpo e cicatrizes nos olhos.
    Falava pouco, mas quando falava… era com uma gentileza que fazia qualquer um ouvir.

    Rui notou isso primeiro.

    Era uma noite comum. Os dois estavam no terraço, olhando o céu.
    Ela limpava seus tênis com um pano sujo. Ele soldava um pedaço de metal quebrado.

    — Você sempre tenta consertar as coisas — ela comentou.

    Kevin sorriu de lado.

    — Alguém tem que tentar. Mesmo quando tudo parece quebrado demais.

    Ela olhou para ele, e naquele instante, algo mudou.

    — E você? — ele perguntou.
    — Por que cuida tanto dos outros?

    Ela deu de ombros, mas seus olhos brilharam.

    — Porque se eu não cuidar, quem vai?
    — Porque eu sei como dói não ter ninguém.

    Silêncio. Mas um silêncio bom.

    Naquela noite, Kevin pegou na mão dela.
    E não soltou mais.

    O amor deles foi rápido.
    Mas não impulsivo.

    Foi natural.
    Como dois corações que se reconhecem no meio do tumulto.

    — Eu gosto do seu jeito de andar — ele dizia.
    — Gosto do seu silêncio — ela respondia.

    Dormiam lado a lado, cobertos por os cobertores rasgados.
    Dividiam o mesmo prato de arroz frio.
    Riam juntos, mesmo sem ter motivo.
    E quando brigavam — e às vezes brigavam — o pedido de desculpas vinha rápido, com abraços demorados.

    Os outros da Hunides… adoravam vê-los juntos.

    — O Kevin olha pra Rui como quem olha pra casa — dizia Lara.
    — E ela ri com ele como nunca riu com ninguém — completava Dagon, sorrindo.

    Uriu, que demorava a entender os sentimentos, uma vez disse:

    — Eles fazem eu acreditar que o amor pode nascer até no meio da guerra.

    Mas o mundo não parava.

    O prédio foi alvo de denúncias. A polícia passou a rondar.

    Outras crianças de rua tentaram invadir, gerando conflitos que marcaram muitos.
    A comida ficou escassa por semanas. Um dos meninos, pequeno e asmático, quase morreu.

    Jakson teve que tomar decisões duras.
    Expulsar quem não respeitava as regras.
    Negociar com traficantes para manter o prédio fora de suas rotas.
    Acordar cedo e dormir tarde, sempre com medo de não acordar de novo.

    Mas sempre que via Kevin e Rui de mãos dadas…
    Ele se lembrava do porquê de continuar lutando.

    Rui e Kevin, sentados numa toalha rasgada, observam o céu sujo da cidade.

    — Você acha que a gente vai sair daqui um dia? — ela pergunta, com a cabeça em seu ombro.

    — Eu acho que a gente já saiu — ele responde.

    — Como assim?

    — Sair não é fugir. Sair é… criar um lugar onde vale a pena ficar.

    Ela sorri.
    Ele a beija na testa.

    — Eu te amo, Kevin.

    — Eu te amo, Rui.

    E nada vai nos separar.

    Naquela noite, todas as crianças dormiram juntas no salão do terceiro andar, porque havia rumores de uma batida policial.

    Mas mesmo com o medo…
    Mesmo com a fome…
    Mesmo com a incerteza…

    O amor dos dois era um lembrete constante:

    Ainda havia beleza.
    Mesmo no meio do caos.

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