Capítulo 184 - Hunides (9)
Meses haviam passado desde que Rui e Kevin se tornaram um casal inseparável.
E também haviam se passado três meses… Desde que ela descobriu que estava grávida.
No início, foi o medo.
Depois, o desespero.
E então… o silêncio.
A primeira vez que Rui vomitou de manhã, achou que era só algo que comeu.
Na segunda semana seguida, Lara percebeu.
— Rui… isso não é normal.
— Tá tudo bem. Só enjoo.
— Não mente pra mim.
Foi Lara quem comprou, escondida, um teste de gravidez.
O resultado: positivo.
Dois riscos. Claros como o céu que Rui já não via mais.
Ela não contou a ninguém por dias.
Nem para Jakson e principalmente para Kevin, que era seu maior medo
Ela escreveu uma carta, depois rasgou.
Escreveu de novo, e queimou no fogão improvisado do térreo.
Foi ficando mais quieta, mais distante.
Não sorria mais.
Não comia direito.
Os olhos perderam o brilho.
Quando contou para Kevin, já estava no segundo mês.
— Eu tô grávida.
— … — Kevin congelou.
O chão sumiu.
O mundo pareceu girar devagar, em câmera lenta.
— Você… tem certeza?
— Tenho.
Ele se afastou.
Passou a noite fora, desolado, e sem saber oque fazer, ele não queria ser pai, e não tinha capacidade alguma de exercer esse cargo tão louco, ele era uma criança…
Então… Voltou com os olhos vermelhos, um corte no punho — nada muito profundo, mas doloroso o bastante para que Rui notasse.
— Por quê?
— Porque eu sou um moleque de 16 anos, Rui! Eu não sei nem cuidar de mim! Como eu vou cuidar de um bebê?
Eles pararam de dormir juntos.
Rui começou a se automutilar em segredo.
No banheiro do segundo andar, onde ninguém entrava.
Com pedaços de vidros, pequenos, mas suficientes para sentir algo.
Qualquer coisa além da dor interna.
Jakson percebeu.
— O que tá acontecendo com vocês?
— Nada.
— Para de mentir pra mim, Rui.
— VOCÊ NÃO ENTENDE!
Ela gritou. Chorou. Vomitou na frente dele.
Desde então, a Hunides não era mais a mesma, tudo naquele lugar que era paz, se tornou um lugar frio e sombrio
Foi Lara quem encontrou as marcas nos braços.
Foi Nilo quem percebeu que Kevin cheirava diferente — um leve odor químico vindo do quarto onde ele se trancava.
— Kevin, o que é isso?
Ele empurrou Nilo.
Gritou.
Chutou uma parede até sangrar o pé.
— EU NÃO PEDI ISSO!
— EU NÃO QUERO ESSA VIDA!
Ele começou a se dopar. Pegou comprimidos de uma farmácia quebrada.
Ansiolíticos, antidepressivos, misturados com álcool que conseguiam nas ruas.
Desmaiava, dormia por horas, acordava tonto, babando, tremendo.
E então, uma noite…
Rui tentou se matar.
Escreveu uma carta, deitou na banheira abandonada do prédio, com um copo de vidro estilhaçado.
Cortou fundo.
Ficou ali, esperando o fim.
Foi Lara, de novo, quem a encontrou.
Gritou tão alto que acordou o prédio inteiro.
— JAKSON! KEVIN! AJUDA!
Rui perdeu muito sangue, mas sobreviveu.
Por pouco.
Kevin ficou aos pés da cama, chorando como uma criança.
— Eu falhei com você… eu falhei com você…
Ela, fraca, apenas disse:
— Eu não consigo, Kevin… Eu não consigo ser mãe… Eu não consigo…
Duas semanas depois, ela tentou abortar, tentando matar a criança que estava em seu ventre através de remédios muito fortes
Não foi planejado.
Não foi seguro.
Rui queria matar aquela “criatura” indesejada na sua barriga, ela não queria viver naquelas condições com ela, e continuava sem parar, tomando remédios, e vomitando, tomando remédios e vomitando
E certo dia, ela quase morreu, de novo, e tentou mais uma vez, e foi parar no hospital, quando acordou. Kevin, ao lado dela, segurava sua mão.
— Me odeia? — ele perguntou.
Ela olhou nos olhos dele.
— Não. Só odeio o mundo que fez isso com a gente.
Após isso, Rui passou meses em silêncio.
Não falava.
Não sorria.
Não chorava mais.
Kevin largou as drogas.
Decidiu mudar.
Começou a trabalhar em um ferro-velho ilegal.
Ganhava moedas.
Mas o suficiente para comprar comida, remédios e uma nova esperança.
Um dia, Rui acordou, olhou pela janela do prédio e viu as crianças brincando lá embaixo.
Dagon chutava uma bola feita de meias.
Uriu tentava dar uma cambalhota.
Lara ria alto.
Kevin subia as escadas com uma sacola de arroz.
Ela desceu.
Sentou ao lado dele.
Olhou nos olhos.
E disse:
— Eu ainda tô quebrada.
— E eu também.
— Mas a gente ainda tá aqui, né?
— Tamo. Juntos.
Eles se abraçaram.
E mesmo com o bebê, mesmo com a dor…
a vida ainda corria dentro deles.
Meses depois
A tempestade começou antes mesmo da chuva cair.
Era madrugada. O céu estava carregado de nuvens escuras, como se o próprio mundo pressentisse o que viria.
Dentro do velho prédio da Hunides, Rui acordou com dores insuportáveis.
— AI! — gritou, agarrando o lençol rasgado sob seu corpo. — TÁ VINDO!
Lara correu até ela.
— É agora. A criança… tá vindo.
Rui tremia. Suava frio.
— EU NÃO CONSIGO! EU NÃO QUERO! — gritou, em pânico.
Enquanto Lara, apavorada, tentava improvisar o que podia com toalhas e baldes de água, o inferno começava do lado de fora.
Um grupo de dez homens armados, com roupas rasgadas, tatuagens de caveiras e sorrisos famintos, entrou no beco que levava ao prédio da Hunides
— Aqui é o novo território da gangue dos Cavaleiros! — gritou o líder. — Saiam, vermes!
Tiros dispararam para o alto. Crianças começaram a gritar e correr.
Kevin foi o primeiro a sair, com um pedaço de ferro nas mãos.
— Ninguém vai machucar minha família! — gritou, a fúria nos olhos.
Dagon, Jakson, Nilo e até o pequeno Uriu vieram atrás, armados com pedaços de madeira, barras de ferro e pedras.
Eles estavam prontos pra morrer lutando.
E foi o que quase aconteceu.
Enquanto lá fora a guerra explodia, dentro do prédio, Rui gritava como se estivesse sendo esfaqueada.
— EMPURRA, RUI! — gritava Lara, segurando suas pernas.
— EU NÃO QUERO ESSA CRIANÇA!
— MAS ELA TÁ VINDO!
O sangue escorria, o chão tremia com os tiros e explosões lá fora.
— AHHHHHHHHHHHHHH!
— MAIS UMA! EMPURRA!
E então, o choro rasgou o ar.
Não o choro de dor.
Mas de vida.
O bebê nasceu.
Uma menina. Pequena. Frágil. Com olhos escuros, como os de Kevin.
Mas Rui… não a olhou.
Virou o rosto.
Tapou os ouvidos.
Gritou:
— LEVEM ESSA COISA DE PERTO DE MIM!
Do lado de fora, Kevin lutava com tudo o que tinha.
Mas o inimigo também era cruel.
Um dos homens da gangue sacou uma pistola.
— Adeus, moleque.
PAM!
O tiro atravessou o peito de Kevin.
Jakson e Dagon viram.
O tempo parou.
O som sumiu.
Kevin caiu de joelhos.
Olhou para Jakson… e sorriu.
— Cuida dela… por mim…
PAM!
Outro tiro.
Kevin tombou.
Jakson gritou tão alto que até os pássaros fugiram.
Dagon pegou o cano de ferro e correu, olhos ensandecidos.
Eles lutaram como monstros.
Gritaram.
Mataram.
Sangraram.
A gangue recuou.
Alguns fugiram. Outros morreram.
O chão ficou manchado de sangue e lágrimas.
Jakson subiu correndo até o quarto onde Lara limpava a bebê recém-nascida.
— Ele… morreu. — disse, com os olhos vazios.
Lara começou a chorar.
Rui não reagiu.
A menina chorava no colo de Lara, e Rui apenas dizia:
— Tirem ela daqui. Eu odeio essa coisa. Eu odeio vocês. Eu odeio a mim.
Dias se passaram.
Rui se recusava a olhar para a filha.
Não queria saber o nome.
Não a tocava.
Não falava com ninguém.
À noite, chorava baixo.
Sussurrava para as paredes:
— Era pra ela ter morrido. Era pra mim ter morrido.
Lara fez de tudo.
Jakson tentou conversar, gritar, chorar.
Mas Rui já não existia mais por dentro.
Então, numa noite fria, em silêncio total… Rui saiu do quarto.
Colocou uma cadeira velha no meio da sala do segundo andar.
Amarrou um lençol no cano do teto.
Escreveu duas palavras numa parede suja, com carvão:
“Me perdoem.”
E se foi.
Jakson foi quem a encontrou.
O grito dele acordou o prédio inteiro.
Lara desabou no chão.
Uriu não parava de perguntar:
— Por que ela fez isso?
Dagon segurou a filha de Rui nos braços.
A bebê, tão pequena, não entendia nada.
Apenas olhava, com olhos que pareciam absorver toda a dor do mundo.
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