Capítulo 190 - Hunides (15)
O dia amanheceu com o céu limpo, mas o clima na cidade estava longe de ser sereno. Um calor seco pairava sobre Tóquio, e mesmo as sombras dos arranha-céus pareciam afiadas como lâminas. O trânsito, como sempre, estava intenso, mas em certos círculos da cidade, as engrenagens giravam em outro ritmo — um ritmo oculto, onde sorrisos e flashes de câmeras escondiam armas e contratos de silêncio.
Estúdios GHV — 10h17 da manhã
A passarela estava em chamas de glamour. Modelos desfilavam com roupas brilhantes, costuradas à mão por estilistas renomados, enquanto as lentes de dezenas de câmeras piscavam sem parar. O salão era uma mistura de luxo e tensão, com influenciadores, investidores, artistas e jornalistas se misturando como peças de um jogo.
Nos bastidores, o camarim reservado da estrela da manhã, kira Hashimoto, estava isolado do burburinho. A porta possuía dois seguranças particulares, e dentro, o ar era pesado de perfume caro e expectativa.
A kira olhava seu reflexo no espelho com frieza. Seus cabelos estavam impecáveis, a maquiagem sutil realçava seus olhos levemente puxados, e o vestido cintilante que usaria no desfile final já estava preparado sobre uma poltrona. Mas sua expressão era outra — distante, preocupada, concentrada.
Ela não estava sozinha.
— Então é isso que ele planeja? — perguntou uma voz masculina, rouca, saindo das sombras atrás da cortina de tecido pesado.
kira não olhou para trás. Continuou observando sua própria imagem.
— Sim — respondeu ela, firme. — Charles quer apagar a Hunides da história. E vai fazer isso de forma cirúrgica. Primeiro a mídia, depois os corpos.
O homem saiu da sombra, revelando apenas parte do rosto — um queixo marcado, barba por fazer, olhos escondidos sob um boné de aba larga. Ele parecia alguém acostumado a viver nas entrelinhas da sociedade.
— E você tem certeza de que ele vai mesmo mobilizar a polícia?
— Eu vi os documentos. E mais… ele tem controle sobre a cobertura midiática. Se ele conseguir fazer parecer que foi uma guerra de gangues generalizada, a imagem da Hunides será enterrada junto com os corpos. Vai parecer que eles sempre foram apenas mais uma facção criminosa.
Ela se levantou da cadeira, virando-se para encarar o homem.
— Precisamos de você.
O homem cruzou os braços.
— Você sabe que se eu me envolver de novo, não tem mais volta, né? Eu serei um alvo… e não um alvo qualquer.
— Você já é um alvo — retrucou Kira. — Por ser quem é. Por saber o que sabe. Se não agir agora, não haverá outra chance.
O homem respirou fundo. O som abafado do desfile do lado de fora fazia tudo parecer mais claustrofóbico. Depois de alguns segundos de silêncio, ele murmurou:
— Então vamos fazer isso do meu jeito.
kira assentiu, decidida.
— Estamos do mesmo lado. Pela verdade. Pela Hunides.
A tensão entre os dois se dissipou em uma espécie de aliança silenciosa. O tempo estava contra eles, mas o espírito da resistência ainda vivia.
Prédio GHV — Cobertura Executiva, 12h32 da tarde
A cobertura do edifício GHV era uma obra-prima da arquitetura moderna. Paredes de vidro permitiam uma visão panorâmica de Tóquio. A mobília era preta, cinza e branca, minimalista, com detalhes de mármore. No centro do salão, havia uma mesa oval de reunião e, à frente dela, de pé, observando a cidade com um copo de uísque nas mãos, estava Charles Choi
Ao seu lado, um homem de cabelos brancos curtos e óculos finos, com um terno impecável e olhos que transbordavam autoridade. Era o Comissário-Geral de Tóquio, um dos homens mais poderosos da polícia japonesa. Seu nome era Masaru Kitamura, conhecido pelos seus discursos sobre segurança nacional, mas também por suas ligações nebulosas com o submundo.
— Eu sempre admirei essa vista — disse Charles, erguendo o copo. — Tóquio parece tão… vulnerável lá de cima. Como uma peça de porcelana prestes a cair da estante.
Masaru sorriu de leve.
— Você sempre teve um talento para metáforas teatrais, Charles.
— E você sempre teve talento para fechar os olhos na hora certa — retrucou Charles, se virando para ele. — Por isso estamos aqui. Porque você sabe que tem muito a ganhar com esse arranjo.
Masaru se aproximou da mesa e sentou-se com elegância.
— Conte-me, então, como vai funcionar o teatro dessa vez.
Charles se serviu de mais um pouco de uísque e se sentou de frente para o aliado.
— Primeiro, meus homens vão causar o caos. Um ataque direto. Algo grande. Uma invasão contra a Hunides. Eles vão revidar, obviamente. Vai ser rápido, explosivo, cinematográfico. — Ele gesticulava como se estivesse dirigindo um filme. — A mídia vai relatar “confrontos intensos entre gangues juvenis”.
— E então? — perguntou Masaru, girando um anel de ouro no dedo.
— Então você entra.
Charles apoiou o copo sobre a mesa oval e, com um leve suspiro, disse:
— Está na hora de você saber de tudo, Masaru. Sem meias palavras. Este não é apenas um movimento contra a Hunides. É a reconstrução da ordem urbana. Um reset.
O Comissário cruzou as pernas e ajustou os óculos finos. O leve tilintar do gelo no copo de Charles era o único som que preenchia a sala.
— Fale — disse Masaru, frio. — Mas certifique-se de que cada palavra valha o risco.
Charles apoiou os antebraços sobre a mesa, inclinando-se para frente como se estivesse prestes a ensinar uma lição a um discípulo.
— A Hunides cresceu demais. Influência nas escolas, nos bairros periféricos, nas redes sociais… e o pior: moral popular. Eles se tornaram heróis underground. Isso é inaceitável.
— Para o governo? Ou para você? — Masaru arqueou uma sobrancelha.
— Para ambos. Mas principalmente para mim — respondeu Charles, sem hesitar. — Eles arranharam minha reputação, esvaziaram meus bolsos e ainda roubaram gente do meu lado. Aquele garoto, o tal de Jakson… ele está reunindo antigos nomes. Gente que você ajudou a derrubar anos atrás.
Masaru pigarreou, desconfortável.
— E qual é a sua proposta? Eliminar todo o núcleo?
— Exato. E mais — disse Charles, erguendo um tablet e o colocando sobre a mesa. A tela acendeu, revelando um mapa tridimensional de Tóquio. Marcas vermelhas indicavam posições específicas: subsolos, becos, armazéns, escolas técnicas, todos associados direta ou indiretamente à Hunides.
— Esses são os pontos de entrada. Já temos homens infiltrados em metade deles. Quando o ataque começar, não será apenas uma “briga de gangues”. Será um expurgo. Uma limpeza.
Masaru apertou os lábios, tenso.
— Isso vai virar manchete no mundo todo. E você quer que eu jogue minha farda no fogo para encobrir isso?
— Não para encobrir — Charles se inclinou ainda mais. — Para conduzir.
Silêncio.
— Você aparecerá como o salvador. O pacificador. O comissário que destruiu a maior organização criminosa da última década. A mídia já está alinhada. Pautas prontas. Repórteres pagos. Hashtags compradas. Quando os tiros começarem, eles estarão lá, com drones, câmeras e narrativas.
Masaru fechou os olhos por um momento. Sentia o peso das decisões já feitas. Quando os reabriu, havia um brilho gélido neles.
— Quando?
— Quarenta e oito horas. Meia-noite, no sábado. Tudo sincronizado. Começamos pelo Hotel da Hunides.
Hotel Hunides — Sala de Reuniões Privada, 12h40 da tarde
Enquanto a elite da cidade tramava sua destruição, Jakson observava a cidade da janela do décimo segundo andar do Hotel Hunides. O calor batia no vidro, mas o frio em seu estômago era de outra natureza.
— Algo está errado — murmurou ele.
Atrás dele, em uma longa mesa de mogno escuro, estavam seus aliados mais próximos, Lince, Nayra e Domi
— Eu revisei os últimos relatórios — disse Domi, mexendo em um laptop. — Interferência de sinal nas câmeras externas. Drones sobrevoando em horários incomuns. Temos alguém nos vigiando.
Jakson assentiu.
— Eles estão preparando algo. Muito maior do que imaginamos.
Toma socou levemente a mesa, frustrado.
— Vamos atacar primeiro? Mostrar que ainda temos poder?
— Não — retrucou Jakson. — Isso é exatamente o que eles querem. Um erro, e seremos taxados de terroristas juvenis. O que precisamos agora é de prova. De antecipação.
Lince permanecia sempre calado, ergueu os olhos.
— Ou de uma armadilha.
Todos se viraram para ele.
— E se fizermos parecer que estamos vulneráveis? Deslocar os principais nomes para outro ponto da cidade. Deixar o hotel com uma falsa liderança. Quando eles atacarem…
— …nós contra-atacamos — completou Jakson, com um sorriso sombrio. — Gosto disso.
Domi digitava freneticamente.
— Já vou começar a simular a movimentação. Mas precisamos de tempo. E de aliados que ainda estejam dispostos a sangrar por essa causa.
Jakson virou-se novamente para a janela.
— Então vamos convocar o conselho. Os velhos nomes. Até os exilados. Se eles querem guerra… terão.
Rua Kamuro — Apartamento de Kira, 13h10 da tarde
Kira Hashimoto havia abandonado o estúdio sem que ninguém notasse. Agora, em seu apartamento de luxo, com as cortinas cerradas e o som de jazz antigo preenchendo o ambiente, ela mexia em uma caixa de ferro, trancada a sete chaves, sob o assoalho da sala.
Com um clique, a caixa se abriu.
Documentos. Fotos. Cópias de contratos. Vídeos.
Tudo que ela guardava como trunfo silencioso contra Charles Choi.
— Você vai cair, Charles… — murmurou ela, seus olhos brilhando com uma mistura de dor e vingança. — E será pela sua própria arrogância.
Pegou uma das fotos: Charles, apertando a mão de um líder de facção conhecido por tráfico humano, num jantar em Hong Kong.
Depois, um vídeo: Masaru entrando no GHV às escondidas às 2h da manhã.
Ela conectou um drive à lateral do notebook e começou a copiar os arquivos.
— Agora… só preciso do momento certo.
Seu celular vibrou. Era uma mensagem codificada.
“Já estão em movimento. Tempos sombrios vêm aí.”
Kira respirou fundo. Sabia que estava sozinha. Sabia que se caísse, cairia sozinha. Mas não importava. A verdade era a sua arma. E se o mundo não fosse capaz de engolir a verdade, então ela faria o mundo engasgar com ela.
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