Índice de Capítulo

    “Naquele final de tarde, condenou sua alma a se dividir.”

    Izandi, a Oniromante

    Um medista, talvez o chefe do castelo — Bert não lembrava e nem fazia questão de lembrar (nunca precisou de verdade de um medista) —, abriu a boca do rei e despejou uma mistura de pós de ervas e coisas com cheiro forte. Deveria tê-lo feito no mínimo tossir, mas quem tossiu e pigarrou foi o príncipe aos braços do pai.

    “Não entendo”, pensou Bert. Até então, já testemunhara a morte de pessoas conhecidas. No Torneio de Ferro, um de seus amigos mais íntimos teve a espada rompida no último segundo, tendo o peito rasgado. Foi uma derrota, todavia uma morte honrosa. “Melhias morreu sorrindo”, se lembrou. Bebeu um barril do vinho azedo que Melhias tanto gostava em sua homenagem e…

    — Pai… — sussurrou Silale. A garota tinha corrido toda aquela distância quase em choro, todavia, estava parada a dois passos da porta.

    “Desculpa?”, pensou em falar.

    — Ond… — murmurou o rei. Sua voz entrecortava fez Howan se levantar de chofre, agarrando as bordas da cama. O rei abriu os olhos poucos segundos depois. — Onde estou…

    — Vossa Majestade. — O ministro dos conselhos se aproximou do rei, projetando sua sombra velha em cima do rei.

    — Pai, sou eu! Sou eu! — interrompeu o príncipe.

    — …pai? — questionou o rei. — Sim… uma menina… — Olhou para o teto. Perceberam que seus olhos estavam distantes. Eram como duas joias que brilhavam em um tom turvo. — Nialle me deu uma menina…

    — Sou eu, pai! — gritou o príncipe de novo, mas seu grito estava fraco. Imaginou Bert o rapaz chorando, engolfando ranho mesmo com uma coroa na cabeça. — Seu filho…

    — Sua filha está aqui… — sussurrou Silale, presa naquele lugar distante. Bert se aproximou dela. Teria escondido-a atrás das suas costas. “Ela não gostaria”, concluiu.

    — Ah… Sim… Nialle estava grávida de novo… Minha senhora era forte. Joris, ainda está aí? Nialle melhorou de saúde? Vi-a tossindo ontem. Jurei… ter visto… coff! coff! sangue… — Bert viu o cobertor se movendo na região das mãos antes gordas do rei. — …Estou morrendo.

    — Não, meu rei! — respondeu o velho Cyreck, quase chorando junto. — Não está! Os melhores medistas do reino estão todos aqui!

    — Não minta para mim, Cyreck. Conheço meu corpo. Não passarei desta noite.

    — Não irá, pai! — Howan jogou sua mão por debaixo do cobertor, o ergueu suavemente e agarrou a mão do pai. Silale ficou parada. “Vai lá”, pensou Bert. “Chora junto dele.” — Eu finalmente aprendi o que você me diz desde sempre… Eu… Vou te dar orgulho, eu sei disso, e quero que você viva para isso!

    — Nialle — sussurrou o rei. “O velhote nem te ouviu”, zombou Bert. — Onde… ela está…? Desejo ver minha pérola…

    Ministro Joris Cyreck se abaixou e tentou falar com a maior suavidade que conseguiu. “Não deve ser muito difícil falar que a esposa dele morreu há mais de dez anos.” Bert ergueu os olhos para fora do quarto. Os médicos continuavam a ir e vir, e agora os ministros do conselho menor do rei estavam todos do lado de fora.

    Petti Dirc tinha os olhos marejados, secando-os com o lenço, mas Stev Bolthen estava com os olhos mais ruivos que os cabelos, olhando para tudo. Assim que viu Bert o fitando, fechou o rosto numa carranca e se concentrou no rei.

    — Entendo… Onde está nossa… filha…

    Howan fez uma carranca irada e olhou para trás. Silale empalideceu e engoliu em seco, cerrando os dedos dentro dos outros.

    — Ela está ali, meu pai. Não tem coragem de olhá-lo nos olhos!

    — Meus filhos… não faltaria coragem nos meus filhos… Nialle tinha para vender e dividir… Onde ela está mesmo, senhor Joris?

    — Ela…

    — Onde está meu irmão Better?

    Uma das Irmãs dos Perfumes deixou um jarro perfumado despencar e se quebrar no chão. Todos empalideceram. Até Bert. Não esperava ouvir aquele nome ali. Ninguém esperava.

    — Sua filha… Onde está Theolor? Eu não o vejo aqui. Estávamos no Vale, nós quatro. Eu, meu amigo Theolor, Better e Jeihann. Sim… ele tinha trago consigo as donzelas dos Wirnis… Eu e Theolor nos apaixonamos por elas. Altas, esguias… Sim, Better se irritou com nossas piadas idiotas. Devem tratar donzelas com respeito, seus imbecis, ele disse a nós dois. Na verdade, eu percebi… naquela hora que ele também estava encantado… Elas eram muito mais belas que sua esposa… Eles conseguiram ter um filho? Tentavam há anos… Sim, eles tiveram…

    — Pai, Better nos traiu. Está morto, ou mais longe que a morte de nós…

    Com um vulto, a magra mão do rei atingiu o rosto do príncipe com força para fazer as gotas de lágrimas voarem em várias direções. O garoto não caiu no chão — foi empurrado até quase bater numa escrivaninha. Ela se desfez como se desmontasse, quebrando várias em várias talhas voadoras. Sua bochecha não só estava vermelha como também sangrava pela testa, boca e costas, mal conseguindo respirar.

    Os ciles correram até o príncipe com tanta urgência que alguns se bateram nos outros.

    Já Bert engoliu em seco. Tinha esquecido daquele detalhe, aquele pequeno detalhe tão importante que nunca deu atenção por causa de sempre vê-lo doente. Tal como era, o rei quase morto à sua frente era um Abençoado. O homem que esmagou um general eztrieliziano com mãos nuas… “Puta merda…”, grasnou consigo, metade alegre e metade triste. Alegre por ver toda aquela força num corpo destruído…

    Triste por ele estar destruído. O quão bom seria lutar contra o Flor do Dragão? Uma luta de socos, genuína? Até a morte? O que poderia extrair disso e guardar no seu palácio?

    — Nunca… mais fale isso de novo, criança idiota… Onde estão meus filhos… — Devolveu o olhar para o teto. — Onde estão eles, Cyreck? Disse-me que tinha filhos, não? Nialle me deu filhos. Onde ela está? Onde está minha menininha com olhos afiados? Eu a vi, eu lembro…

    — Estou aqui, pai — sibilou, baixinho, fracamente. Bert torceu o pescoço, olhando para Stev Bolthen mais uma vez.

    — Era um menino, meu rei — afirmou Joris Cyreck, abaixado e austeramente. — Você o batizou como Howan, em homenagem ao seu primo. Aquele que se sacrificou para proteger nosso homens quando caímos em tramoias do Império…

    — Ah…

    “Alguém só acaba com a dor desse velho logo”, pensou Bert. Queria dizer aquilo em voz alta, mas não o fez. Havia limites que até ele reconhecia.

    — Sim… eu lembro… Howan… Onde ele está? Já sabe andar?

    Phai — falou o príncipe. Bert não achava que ele se levantaria depois daquilo. Com a estatura, tinha certeza que teria morrido com o pescoço quebrado. Seria uma história a ser contada, pensava. No entanto, o garoto se pôs de pé, com metade do rosto totalmente roxa. — Eu vo te mosthar que conxigo, viu… Ilei pro Conxelho eu mesmo, amanhã ilei paltil… — cuspiu um dente e uma massa de sangue. — Eu… consigo… ser bom… Por ela…

    O rei, no entanto, estava dormindo de novo. Seu peito emagrecido ia e voltava calmamente, cadenciado e fraco. Os ciles e as ordenadas-sérvis de Curiai e Aiutai voltaram a preparar seus unguentos e perfumes medicinais.

    — Bert — sussurrou uma voz feminina; fraca. Sentiu os dedos magros da garota puxando sua manga enquanto ela olhava para baixo. — Me leve para meu quarto, por favor.

    — As suas ordens.

    Petti Dircs meneou a cabeça e abriu espaço para sua passagem.

    — Estarei rezando por seu pai, Sua Alteza — falou o homenzinho que mal batia no peito de Bert. Não imaginava que aquele baixinho fosse um homem tão sentimental

    — Agradeço por suas preces, senhor Dircs. — Ela fungou. Seu rosto era pálido como uma pedra de marfim. — Estarei rezando por ele agora… — Olhou para Bert de soslaio. — Se me dão licença, preciso partir…

    Stev Bolthen se pôs na frente dos dois. Ele prestou uma longa vênia à princesa, olhando Bert nos olhos com aqueles olhos quase ruivos. “Vai querer brigar?”, pensou. Stev era alto como uma árvore e pesado como um cavalo, tudo que o cavaleiro castanho desejava num homem, no entanto, agora era com o esmaecido e baixo rei que desejava agredir e ser agredido de volta. Não sabia se o perdoaria se tentasse. Talvez até o matasse.

    — Minha princesa, não polparei esforços para proteger o reino na ausência de seu irmão — ele disse. Fez um sorriso gentil, então abriu espaço.

    — Seu esforço é bem-vindo, mas, por favor, converse sobre isso com meu irmão.

    — Princesa — sussurrou Bert, baixinho, quase sem mexer a boca. Ela ouviu e começou a andar. Suas costas tremiam, cada vez mais.

    Os ombros rosados na pele de marfim seguiram um caminho cada vez mais tortuoso, ondulando suavemente. Seu quarto era no final do corredor, à frente dos escritórios do rei. No entanto, ela virou na escadaria à esquerda e desceu os degraus rapidamente. Mudança de planos, ela sussurrou antes de descer.

    Bert a seguiu, como deveria fazer como cavaleiro. Sua juramentada entrou na alcova novamente, onde as velas já tinham sido acesas pelos servos, e os símbolos de porcelana dos quinze deuses, secas e limpas, brilhando à luz das velas de cera de abelha. Silale apagou cada uma das mais próximas, e a alcova pouco a pouco ficou escura como o lado de fora das janelas fechadas.

    — Bert, entre.

    Ele o fez. Caminhou vagarosamente. Nunca gostou de estar em locais como aquele — o do castro dos Beesh, os na Cidade de Ferro, os em qualquer outros. Não se dava bem com eles — com aquelas estátuas de quinze deuses que pescrutavam sua alma. O piso era como o de fora da escadaria, todavia, os poucos bancos eram brancos como o dia. Com a pouca luz que vinha de fora da alcova e pelas janelas, eram quase invisíveis, escondidos no final de tarde.

    — Silale, me desculpe pelo que fiz mais…

    — Bert — interpôs, com o rosto escurecido, fechado. Seus lábios tremiam e seu peito ia e vinha com tanta velocidade que parecia estar prestes a estourar. No entanto, ela não se permitiu. Adentrou ainda mais a longa alcova, apagou as últimas velas, e somente Bert conseguiu vê-la lá dentro, sentando de joelhos cobrindo a face em um dos cantos ao lado do altar.

    Bert se pôs de joelhos na frente dela e cobriu suas mãos com as luvas grossas das suas. Ela não mostrou o rosto. O escondeu mais profundamente entre suas coxas e vestido.

    — Me beije — pediu, com a voz tão trêmula que Bert sentiu-se culpado em obedecê-la mais de uma vez.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota