Acordei cedo no dia seguinte. Não sentia fome, apenas uma leve abstinência de cafeína, como um zumbido discreto na nuca. Comi algumas barras de cereal que havia trazido comigo, as minhas favoritas eram de chocolate com amêndoa. Eram gostosas o bastante para comer e mais do que o suficiente para manter o meu corpo. Então, eu estava, dentro do possível, preparado fisicamente para uma longa caminhada naquele dia.

    Do lado de fora, uma neblina fina subia do mar e cobria os telhados e embarcações do porto. O sol mal aparecia no horizonte, mas o céu matutino já estava com seus belos tons de âmbar e lilás. Jiahao já me aguardava diante da porta da livraria, com duas mochilas de couro aos pés. Sem dizer nada, ele me lançou uma delas.

    — O que é isso? — perguntei, ao tentar reposicionar a alça no ombro.

    — Suprimentos. — Sua resposta foi seca e direta. Parecia um comportamento comum dele, não que eu me importasse muito em receber respostas educadas.

    Toda aquela situação ainda me era estranha, eu não podia deixar de desconfiar de intenções ocultas naquela generosidade.

    — Juro para você, se estiver me levando para uma embosca, eu não matarei apenas você.

    — Não confia em nós? — Ele levantou a sobrancelha com um leve sorriso nos lábios.

    — Ainda tenho minhas dúvidas.

    Saímos da cidade imediatamente, e começamos nossa silenciosa caminhada até região montanhosa do sul. Nossa caminhada foi silenciosa, exceto por instruções esporádicas de Jiahao: “cuidado com essa raiz”, “pise ali”, “apoie-se naquela pedra”. Fora isso, ele caminhava como se estivesse sozinho, e eu fazia o mesmo.

    A trilha nos levou colina acima. A paisagem local era bem bonita e agradável. Flores silvestres em todos os cantos da trilha, e o belo som dos pássaros da manhã traziam uma tranquilidade rejuvenescedora. Enquanto subíamos, vez ou outra, ao olhar para trás, eu podia ver a cidade e o mar, e aos poucos elas encolhiam na minha visão.

    Jiahao possuía um ritmo de caminhada bem rápido, e eu estava contente com isso, não era um problema para mim acompanhá-lo, assim chegaríamos rápido a nosso objetivo.  Quando o sol alcançou o ponto mais alto do céu, ele quebrou o silêncio.

    — Não está cansado? Podemos parar, se quiser.

    — Estou ótimo. Nenhum problema — respondi, eu estava bem confortável.

    Meu casaco poderia parecer quente, porém ele era muito fresco, tanto que eu ainda não havia suado durante toda a caminhada.

    Jiahao assentiu com a cabeça, observei a surpresa em seu rosto, embora ele não tenha comentada mais nada sobre isso. Seguimos em frente. A estrada começou a estreitar, até que chegamos na entrada de uma trilha que levava para o interior da floresta, havia uma placa na entrada, com ideogramas ilegíveis para mim.

    Ele ignorou a placa, e seguiu reto para a mata fechada.

    — O que está escrito aqui? — questionei, ao parar na frente da placa, ao tentar decifrá-la.

    — Nada importante, vamos. — Ele se distanciou, e desapareceu entre as árvores.

    Apressei o passo para acompanhá-lo e, quando voltei a estar lado a lado, insisti:

    — Se não fosse importante, não teria uma placa.

    — Apenas um aviso. Para os viajantes evitarem esta trilha por conta de animais selvagens. — Sua voz era calma, não demonstrava nenhuma preocupação. Ele mantinha o mesmo trote ritmado, com serenidade.

    Me tranquilizei por um momento, até raciocinar novamente sobre o comentário dele. Animais selvagens estão em todo local da natureza, então, qual o motivo de um aviso?

    Continuamos a trilha até que, por entre as árvores, surgiu uma cachoeira escondida no coração da mata. O local era deslumbrante. A água, cristalina, revelava os peixes nadarem livremente entre as pedras, enquanto o som constante da queda d’água trazia uma paz difícil de descrever.

    — Chegamos… — Jiahao expressou, e um sorriso nostálgico surgiu em seu rosto.

    Soltei minha mochila entre as pedras e me ajoelhei à beira do riacho. Lavei o rosto com a água gelada, e, no mesmo instante, senti meus sentidos se aguçarem. Lefkó, saiu da minha mochila, rastejou até uma pedra próxima, se acomodou ali, e enrolou-se em si sob a luz do sol. Parecia satisfeita com o ambiente.

    — Você trouxe seu mascote? — Jiahao balançou a cabeça com desaprovação.

    — Não ia deixar ela sozinha, ela ficaria solitária.

    — Tem certeza de que esse é o melhor lugar? — Não pude esconder meu incômodo com a escolha.

    — Conheço bem essa área. Apenas confie em mim.

    — Tudo bem… — Cedi, ainda contrariado, e começamos a preparar o acampamento.

    Jiahao cuidou das tendas, enquanto eu me ocupei de reunir lenha, limpar o terreno e garantir que tudo estivesse seguro. Montamos tudo em uma clareira próxima à cachoeira, onde a vegetação era mais espaçada. 

    Assim que terminamos de arrumar tudo, Jiahao iniciou meu treinamento.

    — Engula isto. — Ele me entregou uma pílula de coloração acinzentada, do tamanho de uma pequena noz.

    — O que é isso? — examinei a pílula contra a luz, desconfiado.

    — Vai ajudar a abrir seus meridianos, permitindo uma melhor condução do Qi. Para absorver corretamente, você terá que meditar a noite toda. Assim que ingerir a pílula, vá para aquela rocha, no meio da cachoeira, encontre uma posição adequada e comece a meditar, é de vital importância que você não durma.

    — E se eu dormir?

    — Você cai na água — respondeu com uma risada baixa.

    Cocei a cabeça, ainda desacreditado dos métodos dele. Encarei Lefkó, que me olhou de volta e balançou a cabeça para cima. A pílula era segura para consumo.

    Ela não tinha cheiro nem gosto, embora tenha deixado um resíduo estranho e amargo na minha boca.

    Saltei com cuidado entre as pedras escorregadias até alcançar aquela que Jiahao havia indicado. Sentei-me ali, tentando encontrar uma posição minimamente confortável, embora a rocha fosse dura, irregular e nada acolhedora. Fechei os olhos, e tentei deixar a mente limpa, apenas o som tranquilo da água em minha mente. Era muito difícil, em poucos segundos, minha mente divagava para outros assuntos.

    — O que eu faço? — perguntei em voz alta, sem abrir os olhos. — Tem alguma posição certa? Cruza as pernas? Junta as mãos? Estica o pescoço?

    — Apenas encontre uma postura que não machuque — respondeu Jiahao, a voz vinda de algum ponto próximo. Ele parecia meditar também. — Ainda estamos no início. O objetivo é abrir seus meridianos, permitir que o Qi flua. Não se preocupe com formalidades agora. Sente-se. Feche os olhos. Esvazie a mente. Sinta a paz ao seu redor. Torne-se um com a natureza.

    Falar era fácil. Para alguém com a mente inquieta como a minha, aquilo era um processo lento e quase torturante. “Paz interior” não era exatamente uma expressão familiar para mim. Relaxar parecia mais difícil que qualquer combate.

    Mas me esforcei. Respirei fundo. Firmei a postura. Deixei que o som da água se tornasse um mantra. E, pouco a pouco, algo começou a mudar.

    Não era uma sensação nova, era uma velha conhecida minha.

    Minhas pálpebras pesaram, o corpo afrouxou, bastou um instante de fraqueza, e tudo escureceu.

    Eu dormi.

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