Capítulo 7 — Raposa astuta
O comércio, fundamentalmente, funciona com oferta e demanda. Contanto que tenha duas partes ou mais envolvidas, pode ser acordado.
As pessoas precisam de conforto, proteção, comida. Muitas coisas. Tudo isso pode ser comercializado.
Eis o poder do dinheiro: a facilidade de conseguir comprar.
Por que ir cortar a lenha para ter combustível no frio, se pode pagar pra quem cortou e não ter de fazer o esforço?
Vai aproveitar o calor, sem ver a mão sangrar pelos calos do machado.
Por que ficar acordado à noite, temendo as feras, se pode ficar em uma cidade com a proteção dos guardas e de grandes muros?
Esse é o ponto.
É seguro dizer que uma sociedade tem como base o comércio. É simplesmente auto-sustentável. O fazendeiro produz trigo e o vende ao padeiro; mas o fazendeiro sente fome, logo, compra o pão.
Um trabalha para produzir o que o outro precisa. Por isso se chama sociedade.
— Dois ferrins pela carne seca, três pelo vinho. — um comerciante disse, com um sorriso fino.
— Três ferrins por um vinho? Não pode diminuir um pouco?
— Não, não posso. — respondeu, com a atitude amigável desaparecendo. — Se tá caro, não compra.
Em seguida, balançou a mão. Como se espantasse uma mosca irritante.
— Suspiro… Três ferrins é meu dia de trabalho!
— Então não beba!
Tsk!
Vendo que não iam chegar a um acordo, o homem cedeu aos desejos, pegando o vinho.
Saiu correndo!
— Ei! — o comerciante gritou em plenos pulmões. — Ladrão! Ele fugiu sem pagar!
O burburinho da caravana abafava o chamado. Mas não para todos.
Havia homens responsáveis pela proteção da mercadoria e também dos comerciantes. Mercenários pagos.
Existiam muitos perigos pelo mundo; havia bestas, saqueadores e ameaças desconhecidas. Uma caravana desprotegida seria apenas uma presa fácil. Naturalmente, guildas aceitavam contratos de proteção.
Contanto que pudesse pagar, a maioria das coisas era possível.
Esse grupo de mercenários estavam a trabalho da guilda Indomáveis. Tendo sua base mais ao centro do reino, mas com filiações espalhadas. Uma guilda de médio porte.
— Cacete, odeio trabalhar. — um dos mercenários bufou. Mantinha os braços cruzados sobre o peito.
— Mas tem que ir, é sua vez. — um de seus colegas disse. Estava no chão, descascando uma tangerina com os dedos.
Agiam como se fosse uma situação normal do cotidiano. Talvez fosse. Quantas vezes já não lidaram com situações parecidas?
O ladrão corria em desespero, esbarrando em gente, chutando barris, derrubando caixas.
— Cuidado!
— Que caralho!
Onde ele ia, ouvia-se reclamações das pessoas.
— Ele vai escapar. — disse, já pegando um gomo.
Seu colega respondeu com um avanço. Tinha trabalho a ser feito.
— E lá se vai ele. — Continuou, comendo a tangerina. — Hmm… doce.
…
Como poderia um homem, sem treino, competir com um combatente? Ele já estava pra ser pego.
“Merda! … Não, calma. É assim que tinha que ser.”
Ele já estava suando frio e com o batimento cardíaco acelerado. Mesmo assim, estava sorrindo.
— Sai da frente! — Esbravejou, empurrando uma senhora para abrir caminho.
— Desiste, homem. Você não vai escapar! — o perseguidor aconselhou, pegando a senhora antes de cair no chão.
— Você não entende! — gritou. — Eu tenho que corr…
O mundo girou, antes de cair.
Um pé no meio do caminho. Derrubou ele na hora.
“Porra! Quem foi o desgraç…?”
A cabeça doía, mas ele reconheceu o homem na frente dele. Era Roderick.
Ostentava uma carranca de poucos amigos.
— Situação? — perguntou, curto e direto.
Apenas uma palavra, mas o mercenário entendeu.
— Furto. Fugiu sem pagar.
O vinho já tinha molhado a terra. Os cacos da garrafa espalhados pela grama. A fragrância ainda pairava no ar.
Por um momento, o olhar de Roderick perdeu a cor. Então murmurou:
— Que desperdício de um bom vinho.
Uma sombra em sua expressão, como se recordasse de algo distante. Mas a máscara dura voltou logo em seguida. Olhou o ladrão como quem já viu aquela cena muitas vezes.
— Você está preso. — disse, firme. — Será julgado.
…
— Espera aí. Esse é um assunto nosso. — O mercenário interviu. — O homem aí fugiu sem pagar.
Dito isso, começou a andar para apreender o culpado.
O ladrão já sorria em seu coração, antes de ficar pálido.
Roderick esbofeteou o mercenário!
O dorso da mão acertou-lhe a face; não pela força, mas pelo desprezo.
— Que porra é essa?! — rugiu, sacando a espada.
A bochecha doía. Queimação no lado direito do rosto.
— Baixa isso. — Roderick falou casualmente. — Se não vou dar outro tapa no lado esquerdo.
Ele apontava o dedo indicador para a própria bochecha esquerda, zombando do mercenário. Mas a carranca séria ainda estava lá.
— Você não tem medo das consequências?!
Embora fosse um mercenário ainda era, afinal, um jovem. Entre seus 20 anos. Tinha seu orgulho.
Mas quem disse que Roderick se importava?
Bocejou como resposta.
O que ele tinha de anos de serviço, o mercenário não tinha de vida.
A essa altura, já havia atraído a atenção de olhares curiosos. Alguns transeuntes, mercadores e guardas. Mesmo Kael e Elian estavam lá.
Elian já tinha ajudado com os afazeres da padaria, então Alzira o liberou. Kael, como sempre, estava livre.
— Quem é esse?
Kael levantou a sobrancelha pela pergunta, mas logo a compreensão o atingiu. Elian mal saía de casa até ultimamente.
— Roderick Wall. — continuou, despretensiosamente. — Capitão da guarda. Ele é tipo… o braço direito do Varn.
Enquanto trocavam palavras, o mercenário ainda esfregava a bochecha ardida. Ouvia a conversa, como se fosse um ultraje não estarem prestando atenção nele.
O ladrão, por sua vez, permanecia caído no chão, respirando alto — parecia torcer para que Roderick esquecesse dele.
— … Legal. E quem seria esse?
— Elian, sério? — Kael bateu com a palma da mão no próprio rosto. — Cara, você tem que saber onde vive. É básico!
Elian deu de ombros. Aguardava uma resposta.
— Varn é tipo o ‘cabeça’ daqui. — bufou. — O cara manda em tudo.
— Aquela surra que você levou? — continuou. — Os três eram filhos dele.
Elian omitiu a parte de quem eram seus agressores a sua avó, até porque nem ele mesmo sabia. Mas com Kael ele comentou. O jovem não demorou muito para juntar as peças. Conhecia bem as pessoas.
“Então é isso…” , Elian pensou brevemente antes de ser tirado de seus devaneios.
— Não me ignore, patife! — o mercenário gritou. Chamou a atenção de muitos, menos de quem ele queria.
Risos misturados de comentários poderiam ser ouvidos.
— Coitado, está sendo completamente ignorado.
— Hmp! Um forasteiro querendo impor alguma coisa…
— Mãe, aquele cara ta vermelho como um tomate! — uma criança comentou, apontando o dedo inocentemente, apenas para a mãe o repreender logo em seguida.
O mercenário rangeu os dentes. Dando um passo a frente, levantando mais a espada.
— Me enfrente! — vociferou, avançando.
Isso pegou a multidão de surpresa.
Nesse ponto, alguns dos guardas de Brumalva haviam se reunido, mas eles estavam tranquilos. Quem não gostaria de um bom show?
“Idiota”, muitos deles pensaram.
Como um homem de fora poderia conhecer o capitão da guarda? Ele só poderia amaldiçoar sua má sorte.
O ladrão, vendo o conflito se escalar rapidamente, rastejou para longe. Era apenas um ninguém, não se atrevia a estar no meio.
Mas o que ele viu, tirou-lhe o fôlego.
Muito rápido.
O mercenário estava em uma estocada feroz, mas foi ineficaz.
Roderick desviou pela esquerda, agarrando-lhe o pulso.
— Muito lento.
Nesse momento, muitos guardas desviaram os rostos, como se pudessem prever o que aconteceria.
O mercenário exibia uma expressão de surpresa.
A joelhada subiu com violência.
Crack!
Bem nos ovos!
Muitos dos homens assistindo perderam a cor, outros instintivamente cobriram suas partes baixas.
Kael e Elian estavam com caretas, como se pudessem sentir a dor.
O mercenário ficou pálido. A dor excruciante na virilha o fez tombar, levantando um pouco de poeira.
O que se seguiu foi um gemido alto.
— Ah! Ahh! — rolava no chão, com a espada escorregando de suas mãos. — Seu maluco doente do caralho!
O desconforto na virilha fez com que ele nem percebesse o chute que o atingiu no lado esquerdo do rosto. Os olhos viraram, nocauteado.
— Quieto.
Honra? Não existe esse tipo de coisa. Apenas vencedor e perdedor. Frivolidades como a honra não existiam para ele.
“Hmm? … acho que um chute é diferente de um tapa.” , pensou enquanto se lembrava do aviso que deu antes.
— Tanto faz. — murmurou, dando de ombros.
Virou seu olhar para a multidão perplexa. Não se importava menos com a situação. Parecia estar procurando alguém.
Seu olhar e o de Elian se encontraram.
Breve, mas significativo. Um homem calejado pelo mundo, construído pelas dificuldades. Olhos cinzentos, sem cor. Do outro lado, olhos inocentes, vibrantes. Uma flor branca em um vaso de barro, mantida com carinho em solo fértil. Ignorante sobre os arredores que suas raízes não alcançam.
Mas a ironia é que, se prestar atenção, o vaso está rachado.
Roderick então focou seus olhos em um sujeito.
“Achei.”
Duas moedas então voaram. Uma mão rapidamente as pegou.
Era o comerciante de antes.
“Dois marcos!”, a surpresa em sua expressão quase fazia seus olhos saltarem, rapidamente esquecendo do conflito que ocorreu.
O vinho à venda custava três ferrins. Um marco comprava três vinhos e ainda sobrava. E pensar que ele recebeu dois!
A voz de Roderick o trouxe de volta à realidade. — Você aceitou, então.
— Ha?
— Eu disse que você aceitou. — bufou, falando alto. Queria que todos escutassem. — Isso é mais que o suficiente para cobrir o furto.
Coçou a barba por fazer antes de continuar:
— Vou querer um desses vinhos que você vende também.
Isso foi um evento feliz ao vendedor. O destino trabalha em linhas tortas. Uma situação desagradável se transformou em boa sorte.
— Mas é claro, meu bom senhor. — disse, juntando as mãos em concha e se curvando. — Sua magnanimidade é radiante!
Sorria calorosamente.
Dito isso, se apressou em sair. Não tinha mais assuntos a tratar. E também não queria dar sorte ao azar, o ‘cliente’ poderia se arrepender da ação.
A mudança em sua expressão quando se virou foi notável.
“Foda-se, fiz minha parte!”, pensou enquanto ia embora.
As pessoas o seguiram como exemplo, se afastando. Outros permaneciam, como se esperassem ver mais. Elian e Kael também estavam para ir, mas quando Elian se virou, chocou-se com alguém.
— D- desculpa, senho-
Foi interrompido. Quando foi ver, já estava olhando pro chão. Uma força exercia pressão sobre sua nuca.
Era a mão de Kael.
— Nos desculpamos pelo incómodo. Por favor, perdoe meu amigo. — disse, se curvando.
Ele tinha feito Elian se curvar também.
“Esse cara tem um talento nato de causar problemas!”, pensou enquanto mantinha os olhos fechados.
— Hmph, moleque… — levantou a mão para dar um tapa.
— Pare. — Roderick interviu. — Esse garoto é meu subordinado.
Elian podia sentir o vento do golpe se aproximando, mas o impacto não veio.
“Subordinado?!”, ele e Kael pensaram ao mesmo tempo.
Isso foi muito repentino!
— …Seu subordinado, heh?
— Sim, meu subordinado. — respondeu, firme. Então pousou o olhar sobre Elian. — Garoto, vá buscar meu vinho.
Vendo a oportunidade, Kael pegou Elian e saiu dali o mais rápido que podia.
E daí que as coisas pareçam fluir em um rumo inesperado? Se a vida te dá uma oportunidade, você agarra!
Era assim que Kael agia.
Aquilo era um assunto de gente grande.
Quanto ao ladrão de antes, reconheceu o homem que chegou.
“Estou salvo!”, sorria com o pensamento.
O sujeito era baixo e tinha roupas apertadas — como se não conseguisse aceitar o fato de que estava acima do peso. O cabelo liso chegava a altura do pescoço quase inexistente, escondido pela gordura.
Era o líder da caravana mercantil, Beltrão Moura. Um comerciante poderoso e com muitas conexões.
Olhava com desprezo para o homem caído no chão que sorria em sua direção.
“Como pode? Um negócio tão simples e esse inútil arruinou.”
A primeira parte do plano era causar problemas na caravana, iniciado por um dos cidadão de Brumalva.
Não foi difícil encontrar um candidato para a tarefa. Um marco foi o suficiente.
Sabendo dividir os custos financeiros, um marco bastava para alimentar uma pessoa por uma semana inteira!
A segunda parte do plano era usar a situação a favor e forçar a mão de Varn na negociação de minérios. Sua caravana não veio apenas para vender, mas para comprar também, pelo menor preço possível, e depois revender.
O dever de um comerciante é obter o maior lucro possível em uma negociação!
Mesmo isolada, os recursos minerais de Brumalva eram abundantes.
Quanto ao seu parceiro de crime contratado, seria fácil fazer que ‘sumisse’.
Não era uma ideia perfeita, mas funcional. E quem seria capaz de ver através de suas intenções naquele fim de mundo?
Mas ele não poderia estar mais errado. Este homem de olhos azuis acinzentados conseguiu ver através de seus esquemas.
E não apenas isso. Ele também conseguiu com facilidade derrotar um oponente formidável. Um mercenário de uma guilda de médio porte não era simples.
Aos seus olhos, Roderick era como uma joia jogada na lama.
As pessoas o chamavam pelo seu título de “raposa astuta”, graças a sua sagacidade. Mas mesmo ele deveria admitir que subestimou Varn Talrick.
Se ele era uma raposa astuta, ter tal subordinado apoiando-o tornava Varn um predador superior!
Estava com inveja.
Mesmo que o plano original tivesse falhado, recrutar este homem ainda seria uma situação vantajosa.
— Diga-me, capitão, está interessado em ser contratado por mim? — Disse, com grande interesse. — Não importa o valor que Varn te paga, eu cubro. Posso até multiplicar!
A resposta veio seca. — Não quero seu dinheiro.
Ao ouvir isso, Beltrão tinha uma expressão sombria. Isso complicava as coisas. Olhou para um dos mercenários, assentindo.
Roderick estava ordenando que um guarda levasse o criminoso para uma sarjeta quando uma flecha cruzou o ar.
Vendo o desenrolar da cena, os que tinham ficado rapidamente correram. Sobrando apenas os guardas.
O ladrão exibia uma expressão incrédula quando foi atingido no pescoço, tendo sua vida ceifada.
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