— Que porra você fez? — Roderick tinha um tom frio.

    A situação se desenrolou de uma maneira que ele não esperava. Isso ia além de qualquer escrúpulo moral ou ético.

    Quando você é um estrangeiro, é esperado seguir as regras do local em que está.

    O que Beltrão Moura fez foi basicamente desafiar a ordem vigente!

    Com que convicção ele se apoiava para agir tão despretensiosamente? 

    tsk!

    “Como vou lidar com essa merda?”

    Roderick estava intrigado.

    A guarda já estava pronta para combate; mãos pousadas sobre espadas e lanças, aguardando ordens para desembainhar.

    — É assim que Brumalva trata seus convidados? — Beltrão claramente não deixou passar a atitude hostil dos homens ao redor.

    A voz era firme, mas por dentro das roupas suor frio escorria. Calculou a situação para eliminar o ‘peão’ que poderia  prejudicar seu plano. Claramente sabia das consequências de suas ações, mas isso se escalou além do que imaginou.

    Tinha dois mercenários de elite ao seu lado, o deixando menos incomodado. Gastou um valor alto para os contratar nessa viagem. Mas se encontrava em menor número.

    “Eu exagerei?”

    Não podia evitar a preocupação. Se apoiava no seu poder e influência como comerciante, mas ainda era um homem fraco.

    Roderick não respondeu imediatamente. — Apenas quando os ‘convidados’ abusam da hospitalidade.

    Enquanto isso, sangue ainda fluía lentamente do pescoço do sujeito. A flecha tinha atravessado completamente.

    “Esse arqueiro não é um qualquer”, pensou ao analisar o corpo.

    O impacto foi brutal. Estourou a traqueia. No chão, vermelho rubro.

    Um guerreiro experiente mede a força do seu oponente por pequenos gestos. Mesmo indivíduos talentosos poderiam perecer em batalha pela falta de experiência. Roderick era uma prova viva.

    A divagação dele durou apenas instantes, antes de Beltrão o trazer de volta ao momento:

    — Capitão da guarda, não seja insensato. Isso é apenas um pequeno “inconveniente”.

    Se um conflito estourasse, geraria perdas. Queria evitar.

    — Há quanto tempo não visito Brumalva? — continuou. — Sempre trazendo produtos de qualidade? Céus! 

    — Por um preço. — Roderick rapidamente rebateu. — Vantajoso pra você também.

    Beltrão respirou, nervoso.

    — Claramente, capitão. — gesticulava com as mãos, impaciente. — Eu não sou um santo, mas um comerciante. Entretanto é uma situação boa para todos, não? Um ganha-ganha.

    Ele ajeitava as roupas, antes de prosseguir:

    — Minha relação com Brumalva é firme. Longa. — parou por um momento, deixando suas palavras ecoar. — Quantos se arriscariam aos perigos do trajeto? Quantos se empenhariam em trazer o que vocês precisam?

    Voltou a dar uma pausa, tomando um fôlego. Aproveitou e deu uma olhada geral aos arredores. A guarda apresentava olhares complexos, hesitantes.

    Muitos dependiam das mercadorias entregues por ele de tempos em tempos.

    Era o que ele queria!

    “Está funcionando!”,

    Aquela situação acendeu uma ousadia no peito.

    — Veja o cenário como um todo, capitão. — sugeriu. — Como eu me sentiria, como líder da caravana, tendo meus produtos roubados?  Ah! Frustração tomou conta de meu coração! 

    Quem poderia me culpar por defender o interesse dos meus sócios?

    Sorria sutilmente. 

    “E agora, o que você fará, capitão? A razão está ao meu lado!”

    Roderick estava sendo colocado contra a parede.

    Ou era o que ele achava.

    — Frustração não te dá o direito de assassinato, Moura. — rebateu, seco. — A defesa de seus interesses termina onde começa a lei de Brumalva.

    Realmente, o que ouviu fazia sentido. Diferente dele, o comerciante  sabia usar as palavras.

    Ele era apenas um veterano calejado pelo tempo. Um ignorante de conhecimento.

    Mas e daí? Se era apenas um guerreiro, agiria como um.

    Era o capitão da guarda. Seu dever era promover a ordem. 

    — Você não apenas matou um homem já detido, como passou por cima de nossas leis. — disse, enquanto se aproximava.

    Ele ignorou os mercenários. Estava agora na frente de Beltrão. O homem podia sentir o hálito de Roderick.

    — Sabe o que me parece? — riu brevemente com a ideia. — É como se eu fosse na sua casa e fodesse com sua esposa, com você assistindo. O que acharia?

    Alguns dos guardas tentaram disfarçar o sorriso com uma tosse; outros apertavam o punho das espadas, prontos para um conflito.

    “Que porra de comparação é essa?!”, Beltrão pensou.

    Em um momento, estava no controle da situação; no outro, estava acuado.

    O queixo rechonchudo tremia. Vermelho de raiva.

    — E- essa linguagem!…

    — É a única que você entende, Moura. — interrompeu, aproximando-se ainda mais. — Você não veio para fazer negócios. Veio para foder. Foder com nossas leis, preços… e sair mais rico.

    Suas narinas quase se tocaram.

    A mão de Roderick levantou. Beltrão fechou os olhos, mas não veio um impacto; no lugar, uma direção.

    Apontava para o homem morto.

    — A ‘hospitalidade’ que você falou foi paga com sangue. — prosseguiu. — E agora que você cagou ainda quer que eu limpe sua bunda?

    Quando terminou de conduzir sua linha de raciocínio, riu. Riu alto.

    Aos seus olhos, a ocasião era hilária. 

    Muitos eram como Beltrão. Achavam que o dinheiro resolvia tudo. Que, apenas com dinheiro, poderiam governar sobre tudo e todos.

    Não poderia estar mais errado. Alguns homens não podem ser controlados com dinheiro.

    Roderick era um desses raros casos.

    — Afaste-se. — uma voz grave disse. — É suficiente. 

    Moreno. Alto. Em torno dos dois metros. Braços cruzados sobre o peito robusto. Carregava um enorme martelo de guerra em suas costas.

    Um dos dois mercenários ao lado de Beltrão.

    Seu parceiro tinha como arma um arco, acompanhado de um punhal na cintura. Cobria o rosto com um pano preto. O arqueiro de antes.

    Ambos tinham excelentes posturas militares.

    A guarda estava mais tensa. 

    O jogo mudou, não se tratava apenas de ‘mostrar’ as consequências de um erro, mas avaliar riscos e tomar o melhor caminho.

    — E quem define o que é suficiente? —  Roderick olhava firmemente para o homem. — Você?

    Não estava intimidado. Mostrar fraqueza era como sangrar na frente de um tubarão.

    O mercenário não respondeu de imediato. Em vez disso, olhou para Roderick, para a guarda, o homem morto. Avaliava a situação.

    — O “suficiente” é onde meu contrato termina e meu instinto de sobrevivência começa. — respondeu. — Meu contrato é proteger, não começar algo que inviabilize negócios futuros entre minha guilda e Brumalva.

    Beltrão empalideceu. — V-você não pode! Eu paguei!

    — Você pagou para proteção, não suicídio. — retrucou rapidamente. — Você cometeu um erro e não vou o seguir pra morte.

    Deu um passo para frente, seu parceiro o seguiu junto. Uma ameaça velada. Apesar dos pesares, ainda estava em missão. 

    — Capitão, vamos conversar um pouco. — seu tom mais profissional. — Um conflito não é vantajoso pra ninguém. A princípio, apenas um ladrão foi morto. Não tem motivos para escalar  o ocorrido e transformar isso em um banho de sangue.

    Diferente de Beltrão, este homem falava uma ‘língua’ que Roderick entendia.

    O tempo havia passado rápido. O sol estava pra se por.

    As sombras de todos os envolvidos ali estavam se alongando e se fundindo à escuridão.

    Um suspiro escapou dos lábios de Roderick.

    A verdade é que sua cabeça doía. Preferia lidar com o frio do aço, o suor da batalha. Tramas, interesses negociáveis e jogos mentais não o interessavam. Politicagem não era seu forte.

    Sua boca estava seca. Só queria encher a cara depois de lidar com uma situação tão estressante.

    Mas não podia. Não agora. Tinha trabalho a ser feito ainda.

    — Isso vai além da minha autoridade. — disse, olhando para Beltrão e depois para o mercenário. — Vou levar esse assunto para o senhor Varn.

    O homem negro assentiu, quase imperceptivelmente.

    — Uma decisão sensata, capitão.

    Estava satisfeito. Cumpriu seu dever. Evitou um problema maior, levando esse assunto à autoridade máxima, e seu contratante estava protegido. Quanto aos negócios, já não era um problema dele.

    Roderick ignorou o elogio. Fez um gesto brusco com a mão direcionado aos homens ao redor

    — Guardas, recuem. — ordenou. — Vigiem a caravana. Ninguém entra ou sai sem minha permissão.

    — Sim, capitão! — disseram alto.

    — E alguém limpe essa merda. — Roderick apontava para o corpo. — Cuidem do outro que eu nocauteei mais cedo também.

    Sobre o corpo, sangue já tinha coagulado e o solo havia absorvido o líquido. Quanto ao homem, ainda respirava.

    — Quanto a vocês… — continuou. — Me sigam. 

    Quando eles saíram de cena, uma estranha paz se seguiu, dissipando o clima tenso de antes e tirando suspiros carregados de significados dos homens. Eles tinham seus motivos para servir como guardas, mas ninguém realmente queria morrer.

    — Merda, achei que aquilo ia explodir.

    — Eu também. — outro comentou. — Minhas pernas doem de ficar em pé por tanto tempo… 

    — Vocês nem parecem homens! — um jovem disse. — Tenho certeza que nosso capitão conseguiria lidar bem com o problema. Só precisamos seguir as ordens.

    Seus colegas o olharam como se ele fosse idiota.

    — Você é muito ingênuo, garoto. — um guarda mais velho tinha uma voz cansada. — Roderick é um macaco velho, experiente, mas não invencível. Somos apenas homens comuns com armas, mas aqueles mercenários? Eles são a coisa real. Mesmo o capitão teria problemas.

    — Sim, o velho Alfred tem razão. — outro continuou. — Na verdade, acho que nosso capitão lidou bem com a situação. Se ele fosse fraco, teria que ceder a pressão. Estarmos todos vivos e bem é graças a ele.

    O mais jovem não parecia satisfeito, mas alguém tocou em suas costas amigavelmente.

    — Não fique assim, garoto. — o velho aconselhou. — Esses homens estão em uma liga bem diferente da nossa. Aliás… você é um menino ainda. Tem energia. Cumpra as ordens.

    Todos eles se dispersaram rapidamente, deixando ele só para lidar com aquela bagunça. 

    Os olhos do cadáver o olhavam, como se zombassem da situação. O mercenário caído não dava sinais que ia levantar por conta própria.

    “Merda”


    O ar da sala pesava a ponto de sufocar. Beltrão suava e os mercenários não estavam muito melhores. Na verdade, pareciam mais tensos. Eram fortes, capazes. Sabiam disso. Muitos contratos foram concluídos com uma proeza aceitável. Cada um dos dois eram forças reconhecíveis. Muitos senhores adorariam ter subordinados como eles. 

    Mas agora, se tivessem ciência da situação, não teriam seguido as ordens de Beltrão.

    Diante do poder de apenas um homem, tudo se tornou sem valor .

    — Estes vinhos que você traz são realmente deliciosos. — tomou um gole. — Me faz lembrar velhos tempos…

    Estava sentado em uma mesa de orvalho antigo. De um lado, ele e Roderick, este último em pé; do outro, Beltrão  ocupava um assento. Os mercenários também estavam em pé.

    Era um cômodo naturalmente escuro e frio, mesmo com a luz da lareira. Alí eram realizadas as refeições.

    Tinham pratos postos sobre a mesa.

    — A comida não é do seu agrado? — o tom de voz era nebuloso.

    — N-não senhor! — Beltrão respondeu. — Só não estou com fome no momento.

    Não pareceu ser a resposta correta.

    Um estalo de dedo se seguiu.

    As velas na mesa foram acesas ao mesmo tempo. Iluminou melhor a figura insegura do líder da caravana.

    — Eu achei que você estivesse com fome, por isso mandei preparar muita comida. — comentou, desapontado. — Você parecia faminto com aquele seu esquema na caravana…

    Beltrão Moura teve um calafrio forte. Quem não conhecesse o homem, pensaria que realmente se tratava de um anfitrião preocupado com seu hóspede.

    — Senhor Varn, é um mal entendido! Um mal entendido! — tentava se justificar balançando as mãos. — Tramar contra o senhor? Impossível!

    As mãos grudavam uma na outra por causa do suor.

    Estava no olho do furacão. Um movimento errado e sairia da zona de segurança. Tinha que jogar de acordo.

    Varn não moveu um músculo. Seus olhos escuros, profundos como poços sem fundo, não se afastaram de Beltrão. O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante do que qualquer gritaria.

    — “Parecia” — Varn disse. — É uma palavra interessante, “parecia”, não acha? Um homem “parece” muitas coisas. Um comerciante “parece” honesto. Um plano “parece” infalível. Um cadáver “parece”…

    Ele fez uma pausa deliberada, tomando outro gole lento de seu vinho.

    — inconveniente.

    A última palavra dita pesou no coração do comerciante. Era uma das falas dele!

    Há muito se arrependeu do que tinha feito. Mexeu com um monstro que não deveria ter sido incomodado!

    “O quanto ele sabe?!”, pensou com pavor.

    Mas Varn parecia ler seus pensamentos.

    — Tudo…

    Olhou para o vinho. Conseguia ver algo.

    “Oh, Mariel… que falta me faz.”

    Um momento de divagação, antes de continuar. — Tudo que você construiu, muito se deve à revenda dos minérios daqui.

    Varn começou a comer. Ignorando a urgência do assunto.

    A luz das velas tremiam.

    O som da mastigação só era interrompido pelo crepitar do fogo. Os homens no local, mesmo Roderick, evitavam até respirar alto demais.

    Depois de algumas garfadas, bebeu o vinho.

    — Você só come aquilo que consegue comer. — empurrou o prato pra longe.

    Estava cheio.

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