Capítulo 21: Acidente?
Ao som estridente do apito, Lyra parou. As pernas queimavam como se estivessem em brasa, e cada respiração era uma dor seca nos pulmões. Os mesmos cinco quilômetros de todos os dias pareciam, hoje, o dobro. Cuspiu no chão uma saliva grossa e amarga, mas manteve o corpo em movimento, os passos lentos, controlados, como havia aprendido.
Lembrava-se do conselho do veterano.
— Não para, Imara — alertou a colega ao lado. — Anda e respira.
A garota tinha vomitado nos dois últimos dias.
Lyra não sabia dizer se seu cansaço era por falta de sono, desgaste físico, ou o simples acúmulo de dias idênticos, impiedosos. Então lembrou, era apenas o terceiro dia desde que chegara ao Domatorum.
O tempo parecia dobrado ali.
Com os olhos atentos, vasculhava o entorno, tentando identificar quem a observava. Porque havia sempre alguém. A ameaça do dia anterior ainda ecoava em sua memória. Tentava identificar possíveis inimigos nos olhares, nos silêncios pesados.
Como se pudesse ler os pensamentos de Lyra, Rin se aproximou em silêncio, os passos tímidos, mas firmes. Respirava de forma tão tranquila que parecia que a corrida fora só um leve aquecimento, para ele, era mesmo.
— Por que eles te odeiam tanto? — disse de repente, sem encará-la. — Eu sinto a raiva deles. Eles querem machucar você.
Lyra levantou a cabeça, surpresa com o tom direto. A pergunta não vinha carregada de julgamento, mas de uma estranha lucidez.
— Quem? — perguntou, mais por reflexo do que por entendimento.
Mas Rin já se afastava, em direção a Calder. Lyra foi atrás, o passo acelerado, puxada pela urgência de uma resposta.
— Quem? — insistiu, mais alto, segurando o braço do garoto. Vários alunos ao redor se viraram para olhar.
Antes que Rin respondesse, Calder interveio.
— Esquece, Lyra — disse, afastando delicadamente a mão dela do braço do garoto. — Ele só fala quando quer. Parece distraído, mas é atento. Muito inteligente, muito sensível também. Mas ele só fala, e olha nos olhos, quando quer.
Lyra bufou, frustrada. Soltou Rin e deu um passo para trás, o coração ainda acelerado. Mal teve tempo de processar antes que o novo apito soasse, convocando todos para a próxima rotação de atividades.
Naquele dia, o sargento Miles estava com os Legados. Brianna, a mulher de expressão dura e cabelos ruivos presos em um coque apertado, assumia os tributos.
— Vamos para a área de areia — anunciou ela, com voz firme. — Hoje vamos brincar de “rei da colina”. Acelerado.
O grupo do dormitório oito seguiu no trote junto aos demais. Os instrutores observavam como predadores frios, em silêncio.
Chegaram à área de areia, onde o terreno havia sido dividido em vinte e cinco círculos, com pouco mais de três metros de diâmetro cada um. Estavam desenhados com precisão no chão, prontos para o exercício.
— Atenção! Fila única. Os cinquenta primeiros para dentro dos círculos — ordenou Brianna. — Dois por vez. O objetivo é simples: tirar o adversário para fora do círculo. Sem golpes contundentes. Assim que um vencer, a vaga é liberada para o próximo na fila.
Ela ergueu o tablet com os dados de avaliação.
— Serão três rodadas de trinta minutos. Quando o apito tocar, faltarão cinco minutos para o fim. Quem estiver dentro do círculo ao final de cada rodada receberá pontos.
Ela olhou para todos ali com um sorriso viperino nos lábios vermelhos.
— Sim! As pontuações para os calouros começam hoje.
Era o início oficial da marcação de desempenho dos calouros. Pela primeira vez, o esforço de cada um seria quantificado. Registrado. Valia as cobiçadas primeiras posições do quadro.
— Às suas marcas… já!
O apito soou com violência, e a dinâmica começou.
A fila andava rápido. Mais rápido do que Lyra antecipava. As disputas nos círculos eram quase instantâneas, empurrões, quedas, escorregões na areia. Gritos abafados. Tensão crescente.
A ansiedade subia, espessa como fumaça. O coração de Lyra batia com força no peito. A adrenalina disparava. Olhava ao redor e percebia: os mais magros e franzinos estavam sendo jogados para fora sem grande resistência. Os mais pesados, os mais largos de ombro, começavam a dominar os espaços.
A pouco mais de três pessoas à frente, Branth se posicionou, tinha chegado sua vez.
Ele parecia uma muralha: pescoço grosso, peito largo, músculos pulsando sob o macacão colado ao corpo. O braço esquerdo deformado, maior, era uma arma viva. O oponente nem teve tempo de reagir. Branth o jogou para fora com um único movimento. Depois, olhou para onde Lyra e os outros estavam e ergueu os braços, como quem queria dividir sua conquista.
Kara gritou seu nome, vibrando.
Logo depois, Calder entrou. Um giro de quadril bem executado e o adversário perdeu o equilíbrio, caindo na areia.
A fila agora era apenas ela. Não havia mais ninguém na frente.
O círculo mais próximo se esvaziou.
A adrenalina explodiu. O mundo silenciou. Os ouvidos de Lyra pareceram entupir. Não ouvia mais as vozes, nem os gritos, nem os passos. Apenas via o círculo à sua frente. Um espaço limitado. Delimitado. Uma arena.
Ela respirou fundo, deu um passo. Depois outro.
E entrou.
A sensação da areia subia por suas botas. O vento parecia ter parado. O círculo era pequeno, muito menor agora que ela estava dentro dele. Do outro lado, um garoto que ela ainda não conhecia pelo nome. Magro, mas de ombros largos e atlético, tinha uma expressão agressiva. Estava ofegante, o cabelo grudado na testa suada, e as mãos fechadas em punhos.
Ela tentou avaliar rapidamente: mais alto, talvez com mais alcance, mas desequilibrado e cansado. Tinha pressa nos olhos.
Com um leve aceno de cabeça, começou.
Ele partiu primeiro, direto, tentando pegá-la de surpresa com um empurrão frontal. Lyra recuou no tempo exato, sentindo os calcanhares roçarem a borda do círculo. Era estreito demais para erros. Um passo em falso e estaria fora.
Ela girou o corpo para o lado e aproveitou o embalo dele para aplicar um empurrão lateral no ombro. O garoto cambaleou, mas não caiu. Recompôs-se rápido, e agora vinha mais cuidadoso.
Ela respirou fundo. Lembrava das instruções de Rob: centro de gravidade, uso do corpo, força nas pernas. Tinha aprendido esgrima, mas precisava de uma base sólida, equilibrada. Quando as espadas se cruzavam, uma das táticas era desequilibrar o oponente.
O garoto avançou de novo, tentando segurá-la pela cintura. Lyra usou o próprio avanço dele para envolver seus braços por fora. Posicionou-se para receber o impacto de lado, com o quadril.
Assim que colidiram, ela grunhiu, fazendo o máximo de força possível com as pernas, se colocando levemente abaixo dele, girando para usar o impulso do próprio ataque do rapaz.
Ele caiu de lado e rolou, parte do corpo ultrapassando a borda. Lyra também caiu, mas estava dentro.
— Fora! — gritou uma voz masculina, marcando a eliminação.
Lyra se levantou, arfando. O peito subia e descia num ritmo descompassado, mas ela não sorria. Apenas olhou em volta, tentando entender o que havia acontecido. Sentia a pulsação no pescoço, nas têmporas, mas antes que pudesse saborear qualquer coisa, outro adversário já se aproximava.
Dessa vez, era uma garota de cabeça raspada. Tinha o olhar de quem não gostava de perder. E agora, Lyra era o alvo.
Ela ergueu os braços, respirou fundo e se preparou novamente. Sentia os músculos pesados, braços e pernas reagindo mais devagar do que queria. Lutar de verdade, gastar todas as forças de uma vez só, sob o efeito da adrenalina, era muito mais desgastante do que qualquer treino controlado. O cansaço se acumulava rápido e cobrava caro.
A garota rosnou, literalmente, e se lançou sobre Lyra, tentando agarrar seu cabelo. Lyra, apesar de magra, carregava nos ombros, braços e costas a força de anos de trabalho pesado. Ela evitou a investida por instinto, o corpo respondendo antes da mente. Lembrou-se do ataque anterior, do modo como o rapaz havia avançado, cego pela intenção. Abaixou seu centro de gravidade e provocou.
— Que foi? Vai me dizer que não consegue lidar nem com uma magrela cansada?
A oponente estreitou os olhos, irritada. A expressão raivosa que carregava se deformou ainda mais. E, como Lyra previa, se jogou de novo, com mais fúria do que técnica.
Lyra estava pronta.
Agarrou-a pela cintura e girou com ela, usando a própria força e descontrole da garota contra ela. Em um movimento limpo, quase automático, soltou-a no momento exato. A garota foi lançada para fora do círculo e caiu aos pés do instrutor, batendo com os joelhos na areia.
— Droga! — gritou, se levantando bruscamente, espanando a areia do uniforme. Ainda furiosa, saiu marchando em direção ao fim da fila.
O instrutor olhou para Lyra e fez um sinal de positivo com a cabeça. Parecia, no mínimo, impressionado.
O coração de Lyra esmurrava seu peito. Respirava curto, superficial. Todo o seu corpo pedia descanso. Ela queria cair decostas, fechar os olhos e não levantar por um bom tempo. Mas ficou de pé. Porque o próximo tributo já entrava em seu círculo.
Ela estreitou os olhos.
Era o garoto de cabeça raspada da noite anterior. Um dos que a ameaçara.
A luta começou devagar. O garoto de cabeça raspada a observava com um sorriso enviesado. Caminhava em círculos, fechando lentamente o espaço ao redor de Lyra como um predador paciente. Seus pés se arrastavam com calma pela areia, quase como se estivesse saboreando a espera.
— Vai, Lyra! — gritou Imara, encorajando do fundo da fila.
Lyra não teve tempo de responder. O careca avançou de repente. Rápido, preciso, com a postura de quem já tinha feito aquilo muitas vezes.
Ele a agarrou pelo pulso e pela nuca, prendendo seus movimentos com brutalidade. O toque não era apenas firme, era dominador. Quente. Intimidador. Algo dentro de Lyra se revirou, uma repulsa instintiva contra aquele tipo de contato, contra aquele tipo de força.
Então ele puxou. Com um movimento seco e violento, desequilibrou Lyra e quase a jogou de cara no chão. Mas parou antes. Soltou. Recuou um passo, como se estivesse se divertindo com o jogo. Deixou que ela se equilibrasse de novo, apenas para vê-la cair de outro jeito.
O sorriso em seu rosto era de puro prazer.
Lyra sentiu um aperto no estômago, uma náusea que subiu pela garganta. Sabia que ele não queria apenas vencer. Ele queria quebrá-la.
Quando ela tentou se aproximar outra vez, ele fingiu que ia segurar seu braço, mas o que veio foi um tapa forte, certeiro, direto na nuca.
O mundo escureceu por um segundo. Um zunido encheu seus ouvidos. Ela cambaleou, mas não caiu. Sentia o ardor da pele, latejando. Seus dedos, por reflexo, cravaram no pulso dele, arranhando com força. A pele dele cedeu.
— Argh! — xingou, puxando a mão de volta. Dois arranhões profundos marcavam seu braço.
— Cadela! — rosnou, com ódio escorrendo da voz.
Ele voltou para cima dela, agora sem o menor disfarce. A máscara de controle se fora. Só restava raiva. O segundo tapa veio mais rápido, mas Lyra já esperava. Tentou proteger-se com o antebraço. Doeu, mas foi menos do que poderia ter sido.
Mesmo assim, ele não parou. Avançou com tudo, usando o corpo como aríete. Jogou o ombro contra o rosto dela com violência cega.
Lyra mal viu o impacto chegando.
Sentiu o mundo desaparecer no instante em que seu rosto foi esmagado. Houve um estalo seco, e depois, nada.
Seu corpo caiu como uma boneca quebrada. O nariz partido, o rosto um borrão de sangue. Ela não se mexia.
O instrutor ao lado ergueu uma bandeira vermelha, sem pressa. Um gesto simples, seco, quase mecânico. Do outro lado do campo, dois assistentes atravessaram a areia carregando uma maca.
Com precisão militar, recolheram o corpo desacordado de Lyra. Seu rosto era uma máscara de sangue. Um dos braços pendia frouxo para fora da maca, balançando conforme a pressa dos passos.
— Levem-na para a ala hospitalar — ordenou o instrutor, sem alterar o tom. Como se estivesse pedindo que recolhessem ferramentas jogadas no chão.
Então virou-se para o rapaz de cabeça raspada, ainda ofegante. Estalou a língua, num gesto breve de desaprovação. Não disse nada sobre limites, não o puniu. Apenas um som seco entre os dentes.
Mas antes que o silêncio se prolongasse, outro jovem já avançava para o círculo.
— Continuem — disse o instrutor, voltando a andar calmamente pela beira da arena.
Nada havia parado, nem pararia.
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