Capítulo 3 | O Olhar do Sacerdote(1)
O último som humano de Brontes morreu em sua garganta, substituído por um rugido que abalou o mármore do anfiteatro. Não era o grito de um homem, mas o barrito de uma força primal, um som tão grave e poderoso que parecia emanar da própria montanha, fazendo o chão tremer e pequenas pedras dançarem nas bancadas de pedra.
Seu rosto era uma paisagem de horror: a pele esticada de forma antinatural sobre uma estrutura óssea que já não era humana, repuxando seus lábios em um esgar permanente e achatando seu nariz em uma mera protuberância abaixo do centro de sua testa.
Brontes, o Ciclope, era uma paisagem de horror sob a luz pálida da lua, seu olho único do tamanho de um escudo, pulsando com um brilho doentio e faminto.
E ali, onde a testa deveria estar, o olho único, agora do tamanho de um pequeno escudo, pulsava com um brilho opaco e nauseante. Era uma luz que parecia sugar o ar e a vontade, um farol que sondava o oceano da mente esperando para abocanhá-lo.
O exército de escravos mentais apenas observava, seus rostos vazios virados para eles em um silêncio sepulcral.
Brontes deu um passo à frente, e o chão gemeu sob seu peso. Ele não se apressou. Ergueu um braço do tamanho de um tronco de árvore e apontou para os intrusos. Não disse uma palavra, mas a ordem foi dada.
Como um, o mar de corpos hipnotizados começou a se mover.
Não era a investida caótica de uma turba enfurecida. Era algo pior. Eles avançavam em um ritmo lento e deliberado, uma onda de maré humana que se espalhava para cercá-los. Seus rostos permaneciam vazios, mas suas mãos, antes ocupadas em empilhar ouro e vinho, agora se fechavam em punhos ou agarravam as ferramentas de seu trabalho ritualístico. Pás, picaretas, martelos… armas improvisadas nas mãos de marionetes.
— O que fazemos? — A voz de Magno era um sussurro tenso ao lado de Hermes, suas adagas brilhando debilmente. — Não podemos matar essa gente!
Hermes varreu o anfiteatro, mapeando a situação, e seus olhos se chocaram com o de Brontes. O brilho opaco parece se estender, transformando-se na própria noite. A lua ao fundo, pareceu mudar de cor para o deus caído, ficando naquele mesmo tom de roxo que o olhar do ciclope. O céu, perdia suas estrelas esbranquiçadas, se espiralando numa negritude insinuante.
Sua consciência vacilou por um instante, curto, mas considerável para alguém que encarnava a própria velocidade. Ele piscou, assustado. Uma realização aterradora brilhou em seu olhar.
— Não olhe no olho dele! — Hermes rosnou em resposta, o corpo já em movimento, puxando Magno para trás de um dos pilares de mármore caídos que pontilhavam a arena. — Tente incapacitá-los! Pernas, braços! Não podemos deixar que nos encurralem!
A primeira onda os atingiu. Um velho, cujas costas curvadas testemunhavam uma vida de trabalho duro, avançou com uma pá, o gume de ferro mirando a cabeça de Hermes. O deus caído se esquivou com uma fluidez que desmentia sua exaustão, girando para dentro do golpe. Em vez de usar a lâmina de sua xiphos, ele bateu com o pomo da espada na nuca do homem, que desabou no chão, inconsciente.
Magno, por sua vez, era uma raposa saltante. Ele se movia com uma economia de movimentos nascida nas vielas de Therma. Uma jovem mulher avançou com um martelo, e ele, em vez de aparar, jogou um punhado de terra e cascalho em seus olhos. Enquanto ela hesitava, cega por um instante, ele a desarmou com um golpe rápido no pulso e a empurrou para o meio de outros dois que se aproximavam, criando uma confusão momentânea.
Era uma dança desesperada e sem fim. Para cada aldeão que eles derrubavam, três outros tomavam o seu lugar. Eles não sentiam dor, não sentiam medo. Eram apenas extensões da vontade do Ciclope, um enxame que os empurrava cada vez mais para o centro da arena, expondo-os.
Brontes observava a luta de sua posição elevada perto do dólmen, um sorriso cruel se formando em seu rosto deformado. Ele parecia se deliciar com a contenção de seus inimigos, com a nobreza que os forçava a lutar com uma mão amarrada às costas. Finalmente, pareceu se cansar do jogo.
O olho gigantesco se contraiu, e a luz nauseante em seu centro começou a se intensificar, a convergir. O ar na frente do monstro começou a ondular, a chiar como água em uma chapa quente.
Os ouvidos de Hermes, sensíveis, tremeram com um assobio, um sibilado. Ele arregalou os olhos.
— Cuidado! — Hermes gritou, empurrando Magno com toda a força para o lado.
Eles se jogaram no chão no exato momento em que uma torrente de pura força explodiu do olho do Ciclope. Não era um raio de luz, mas uma onda de calor invisível e devastadora que atravessou a arena. Onde atingiu, o chão de mármore se liquefez, borbulhando em uma poça de rocha derretida antes de endurecer em um vidro negro e fumegante.

O som foi o de um trovão seco, um estalo que deixou seus ouvidos zumbindo e encheu o ar com o cheiro de ozônio e pedra queimada.
— Pelos deuses… — Magno ofegou, o calor da explosão cresting os pelos de sua nuca.
Eles espiaram por cima da pedra. Brontes estava imóvel, o olho fechado por um momento, uma fina camada de fumaça subindo de sua pálpebra gigantesca. Mas a pausa foi breve. Assim que o olho se abriu, os aldeões, que haviam parado durante o ataque, retomaram sua marcha inexorável.
Encurralado, sentindo a pressão da horda que se reagrupava e o poder aterrorizante do monstro, Hermes sentiu um calafrio de desespero. A memória da batalha contra a aberração de Eros veio à sua mente. A força, a velocidade… ele precisava daquilo. Sua mão foi para a moeda de Tânatos em seu bolso. Ele a agarrou, o metal frio contra sua pele suada. Fechou os olhos, ignorando o caos ao seu redor, e buscou o poder que residia ali, o coro de almas aprisionadas, a energia da própria morte. Ele puxou, suplicou, ordenou em sua mente.
E encontrou apenas o silêncio.
A moeda permaneceu um pedaço de metal inerte. Fria, mas vazia. A energia que ele havia usado para rasgar as fileiras de Kyros, para executar Gérion… havia se esgotado. A prisão de almas estava faminta por mais mortes, e ali, naquele campo de batalha onde ele se recusava a matar, ela não lhe oferecia nada.
Ele estava sozinho. Um mortal, com um corpo ferido e uma espada na mão.
— Hermes! — O grito de Magno o trouxe de volta à realidade, um segundo antes de um aldeão robusto quase esmagar sua cabeça com uma marreta.
A batalha recomeçou, mas agora, para Hermes, era diferente. A última rede de segurança havia se rompido. Não haveria poder divino, nem milagre profano. Havia apenas a luta, a dor e a astúcia. E, pela primeira vez em muito tempo, um medo genuíno e incerto.
…………
A verdade o atingiu como um balde de água fria: não haveria resgate divino. A moeda em seu bolso era apenas um peso morto, uma lembrança de um poder que o abandonara no momento mais crucial. Ele rangeu os dentes.
— São muitos, desbotado! — Magno gritou, a voz tensa enquanto ele se esquivava de um golpe de martelo que abriu uma fenda no chão de mármore. — Não vamos aguentar pra sempre!
— Continue se movendo! Não deixe que ele tenha um alvo claro! — Hermes respondeu, sua voz um comando ríspido.
A batalha se transformou em um vórtice de caos controlado. Hermes e Magno se tornaram dois vultos que brincavam no limiar entre vida e morte. Eles não lutavam para vencer, mas para sobreviver, usando o próprio enxame de aldeões como um escudo móvel contra o olhar do Ciclope.
Hermes era um vendaval de eficiência brutal. Ele se movia com uma velocidade que ainda beirava o sobrenatural, desarmando, empurrando, usando o pomo de sua xiphos para golpear juntas e tendões. Cada movimento era calculado para incapacitar sem matar, uma dança de misericórdia e violência que exigia uma concentração absoluta.
Magno era o caos personificado. Ele não tinha a técnica de Hermes, mas possuía uma astúcia nascida nas ruas que era igualmente eficaz. Ele rolava sob os braços dos atacantes, usava seu chlamys para desorientar um grupo, e suas adagas eram borrões de aço que desviavam armas e cortavam as cordas dos cintos, fazendo tangas caírem e criando aberturas cômicas e desesperadas no meio da carnificina. Os aldeões controlados, não tentavam reerguer suas vestes, mas tropeçavam nelas, formando pilhas de hipnotizados.
Eles eram a ordem e o caos, trabalhando em uma harmonia disfuncional e desesperada para se manterem vivos.
Do seu pedestal perto do dólmen, Brontes observava com uma fúria crescente. Aqueles insetos se recusavam a ser esmagados.
— Corram, pequenos homens! — ele trovejou, a voz ecoando pela arena. — Atrasem o inevitável! Seus corpos alimentarão a minha forja!
Seu olho gigantesco se fixou em Magno, que acabara de fazer três aldeões tropeçarem uns nos outros. A luz doentia começou a pulsar.
— Magno! — o grito de Hermes foi o único aviso.
O gatuno se jogou para o lado, rolando no chão, no exato momento em que a onda de calor pulverizou o metal das ferramentas jogadas ao lado da barricada de corpos. Ele teve a impressão de que o calor o seguia por um instante.
Quando se levantou, viu o rastro de mármore pulverizado e derretido traçado a um metro de si. Seus olhos se arregalaram.
Enquanto o olho de Brontes se fechava para se recuperar, Hermes notou. Não era apenas um piscar. O gigante estava completamente cego por dois, talvez três segundos inteiros. Uma eternidade em uma batalha.
“Se continuar assim, não vai restar lugar para nos esconder”, pensou Hermes, o suor escorrendo por seu rosto sujo de fuligem. “Droga, preciso fazer alguma coisa”
A horda de aldeões, impassíveis ao chão queimado, voltou a avançar. Eles estavam encurralados, um ciclo de defesa desesperada e esquivas por um fio. Precisavam de uma abertura, uma forma de quebrar o padrão.
— Hermes, desse jeito vamos acabar cansando! — Magno gritou, ofegante, aparando o golpe de uma picareta com suas adagas cruzadas. — E quando isso acontecer…
Ele não precisou terminar. Hermes sabia. A exaustão era a aliada do Ciclope. Eles não tinham como avançar, quando o ciclope fechava o olho, a multidão cobria o caminho, agindo como uma barreira humana.
Foi então que o olhar de Hermes passou pela batalha e se fixou na entrada do anfiteatro. Ali, imóvel em meio ao pandemônio, estava a figura encapuzada. Ignorado pelo Ciclope, intocado pela multidão, ele era uma ilha de silêncio em um oceano de violência. O ‘andarilho’, parecia fitar o ciclope diretamente, sem vacilar. Completamente parado, impassível.
Um pensamento, nascido do mais puro desespero, começou a se formar na mente de Hermes. Uma aposta terrível, uma estratégia que poderia custar tudo.
Ele precisava chegar até Magno.
Com um grito, Hermes avançou, não para longe, mas em direção à horda, abrindo caminho com uma ferocidade renovada. Ele derrubou dois homens com um golpe giratório usando o lado chato de sua lâmina e se jogou ao lado de Magno, que lutava para conter três atacantes ao mesmo tempo.
— Magno! O velho! — Hermes ofegou, a voz baixa e urgente. — Ele é a nossa chave!
Magno o encarou, a confusão em seus olhos.
— O quê? O velho? Ele nem se mexe!
— Ele não precisa. Brontes, sim. — Hermes explicou, a ideia se solidificando. — O Ciclope não o vê como uma ameaça, está ignorando. E ele parece imune ao olhar. Precisamos forçar o confronto.
Hermes se esquivou de outro raio de calor que abriu um sulco fumegante no chão. A estratégia estava clara, mas a execução era quase impossível. Precisavam de uma isca, de uma abertura grande o suficiente para colocar o plano em ação. E só havia uma maneira de fazer isso.
Ele olhou para Magno, que havia corrido para o outro lado do anfiteatro para escapar do raio de calor. Seus olhos se encontraram e, sem uma única palavra, eles assentiram.
Hermes se separou dele, correndo abertamente na direção oposta, em direção ao centro da arena. Ele se tornou o alvo.
— GIGANTE! — Hermes berrou, a voz cheia de um desafio que ele não sentia. — Sua mira é tão fraca quanto a fé do seu mestre!
A provocação funcionou. O olho de Brontes se fixou nele com um ódio absoluto. A horda de aldeões mudou de direção, convergindo para Hermes. Ele sorriu, um esgar sem alegria. Era agora ou nunca.
Ele esperou, o coração martelando contra as costelas. O olho do Ciclope brilhou com uma intensidade final. O ar começou a chiar.
— VELHO! — O grito de Hermes rasgou o ar, um comando, uma prece, uma sentença. — AVANCE!
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