— Hm… parece que eu perdi mesmo.

    Os ombros relaxaram, como se todo o peso do mundo, antes sustentado com unhas e dentes, finalmente tivesse encontrado repouso.

    E diante de si, o resultado final é inevitável.

    Tão singelo quanto as flores que nascem no horizonte, outrora inverno, agora primavera, um fim que se disfarçava em renascimento.

    Os olhos, cansados, miraram o vazio como quem contempla um espelho.

    Não havia dor, apenas serenidade, o tipo de paz que é conquistada.

    Aceitando… apenas aceitando.

    Por mais genial e poderoso que fosse, a demasia de seus planos o arrastara para um desfecho que nunca desejou.

    A mente que tantas vezes se erguera contra o impossível agora se via naufragada em seu próprio excesso. As engrenagens que giravam em sua cabeça, outrora fonte de sua glória e autoridade, haviam se tornado correntes… e ele, prisioneiro de si.

    Mas é sempre assim, não somos donos do primeiro ato, tampouco do último.

    Somos apenas viajantes entre uma cortina que se abre e outra que se fecha, intérpretes de um papel que raramente escolhemos.

    — Perdeu! — Retirando a corda do pescoço de quem havia executado — Quais as últimas palavras?

    Um sorriso forçado lhe tomou a face.

    Mascarando…

    O olhar, porém, cintilava com um brilho estranho, como se zombasse da própria situação.

    Da palma de sua mão, o Caos se infiltra pela pele como praga, uma doença que não mata, consome.

    As veias se tornaram rios escuros sob a carne, e cada batida do coração espalhava mais daquela essência corrosiva.

    O corpo estremecia, mas não cedia; flores negras, invisíveis e etéreas, pareciam brotar dali, abrindo-se no ar como um jardim, feito de veneno e beleza.

    — Eu…

    Suspirou, lento.

    — …Espero que você se ferre! Que saboreie o próprio fracasso, mais uma vez!

    Não recuou. Não importava a situação.

    O sorriso firme, frio, sustentava sua resistência.

    Seria uma troca solitária… o fim suspenso entre dois inimigos, cada respiração soando como um veredito.

    O ar se condensava entre eles, carregado de ameaça, e a sombra da morte se insinuava como uma cortina prestes a descer.

    Mas então, um vulto negro se ergueu às costas do malfeitor, recortando-se contra a visão do senhor gelado.

    Não era apenas um vulto, mas uma presença que rasgava a atmosfera pesada, impondo um novo eixo ao desenrolar da cena.

    — Seria justo… se eu não estivesse com ele!

    A voz quebrou o silêncio com insolência, quase rindo do pesol que antecedia.

    Widerseel surgiu, como quem invade um palco em plena tragédia, apoiando as mãos na cintura. Seu olhar, carregado de um brilho fanfarrão, destoava cruelmente da solenidade do instante, como uma gargalhada em um funeral.

    O contraste era tão violento que o ar pareceu vacilar: enquanto um representava a dignidade austera da resistência, o outro trazia a irreverência quase blasfema, desarmando o sentido da cena.

    — Ah, aliás… bela fuga você deu, mestre, hein?

    — Há quem ainda te siga… — foi a última revelação, como um segredo que ninguém mais teria o direito de ouvir, antes que se tornasse apenas parte da espiral negra que o vilão absorvia.

    Não gemeu. Não gritou.

    Aceitou, como quem mergulha em um abismo já conhecido, sem luta, sem súplica.

    E então, no instante em que o choque entre o ser e o não-ser se consumou, o mundo pareceu suspirar em agonia.

    Toda a neve e o gelo daquele andar cederam. Montanhas brancas, outrora imponentes, desmancharam-se como meros grãos de sal diante da água. Os cristais de frio que sustentavam o cenário se quebraram em silêncio, não em estrondo.

    Derreteram, se pulverizaram, reduzidos a pó.

    O ar tornou-se pesado, carregado de partículas que nada mais eram do que a memória de um mundo extinto.

    Cada floco que antes repousava sobre a terra agora se transformava em cinza luminosa, levada por ventos que vinham de lugar nenhum.

    Sem o pilar que os sustentava, tudo o que um dia representou ruiu.

    As formas perderam sentido, as estruturas dissolveram-se em vazio, e até o silêncio soou como algo frágil, prestes a quebrar.

    E então o céu, esse teto imóvel que parecia eterno, não resistiu: rasgou-se, abriu-se como uma fenda, revelando não apenas o próximo andar, mas a inevitável marcha do destino.

    Como fragmentos de vidro despencando, perderam o peso na metade do caminho… terminando frágeis, dissolvidos a quilômetros do solo.

    O ar se enchia de cintilações breves, como se cada pedaço refletisse um lampejo daquilo que um dia fora, memórias quebradas flutuando no vazio.

    No meio do silêncio rarefeito, a voz do destruidor rompeu:

    — Vieram ao meu encalço?

    Widerseel deu um passo à frente, equilibrando o nervosismo com um sorriso torto.

    — Ehr… é… — tentou descontrair, ajeitando as mãos na cintura — Estamos ou não juntos?

    O outro permaneceu imóvel, a expressão indecifrável, um hm… que soava mais como juízo do que hesitação.

    Inclinou o corpo para frente, quase impaciente.

    — Então? Vazamos… ou lidamos com as sombras daqui?

    O contraste entre eles se fazia gritante… um, cercado de uma aura austera, fria, que parecia pesar sobre o espaço em ruínas; o outro, inquieto, como uma faísca tentando acender em meio ao breu.

    O olhar ansioso percorreu o vazio ao redor.

    Não havia inimigos para fazer frente.

    Apenas um espaço corroído, respirando como uma ferida aberta, onde fagulhas de caos ardiam no ar…

    Não como chamas de fúria, mas como brasas de um luto que doía mais que qualquer outro sentimento.

    Cada partícula parecia carregar o eco de algo perdido para sempre.

    — Não… não vamos ser agressivos — a voz saiu firme, mas baixa, como quem dita sentença a si — Seria desperdício. Além disso, não estou em condições. Se os outros estiverem aqui, recrute-os. Poupe os demais.

    O silêncio entre uma fala e outra era denso, como se até o espaço aguardasse a escolha. Widerseel coçou a nuca, desviando os olhos do abismo ao redor, tentando disfarçar a inquietude.

    — Certo. — murmurou, quase engolindo a palavra, mas logo arqueou uma sobrancelha, deixando escapar a dúvida que não conseguia calar — E se…

    Ele não completou.

    — Aí sim… mate-os!

    Quando se virou, interrompendo seu servo, uma energia irrompeu de seu peito — azul mesclando-se ao negro, como se duas existências disputassem o mesmo corpo.

    Não estava apenas se unindo a outro Rei: estava reclamando para si um dos oito fragmentos.

    Não poderia mover-se no tabuleiro como um mero peão diante de jogadores que manipulavam o jogo.

    Para desafiá-los, precisava transcender, ainda que já fosse o ápice de sua própria raça.

    — Tá…

    — Até que minha essência se funda à dele… terei de esperar. Meu interior lutará até o último instante para não ceder. Entende?

    — Ah… uma batalha de essências…

    Não era muito diferente do que dizia, mas a sensação ia além.

    Era uma dor impossível de ser suportada por outro, apenas alguém que absorveu o vazio e a solidão poderia compreendê-la…

    — Está de acordo?

    E então, deu-lhe as costas.

    Ao redor, tudo agora jazia submerso em água, como se o andar inteiro tivesse afundado em um oceano infinito.

    — Sim! Sim! Vou atrás de Erdwahn e dos outros.

    Curiosamente, aquela promessa lhe trazia uma estranha sensação de alívio, como se o peso tivesse se dissolvido junto às ondas.

    — Fica melhor assim… cobras amam o calor, afinal.

    É… as coisas não terminaram tão bem.

    A derrota foi sentida em todos os outros andares. Os Sete restantes estremeceram diante de um abalo sísmico: a primeira frente havia falhado.

    O grande lorde do gelo, capaz de conter a imensidão do vazio, não contava com a astúcia do mal.

    Quer dizer…

    Nem todas as jogadas devem ser ditas.

    As verdades, por vezes, não cabem em palavras diretas, mas se revelam nas entrelinhas, no silêncio entre um gesto e outro, no olhar que hesita e logo desvia.

    Entrelinhas…

    Após algum tempo, entre meia hora e quarenta minutos de resistência, seu corpo já gritava o que sua boca se recusava a confessar.

    O limite não era mais uma linha distante, mas um muro diante de si.

    — Isso foi… cansativo… — murmurou, a voz embargada, ao deixar os joelhos cederem.

    O som do impacto no chão reverberou como se o mundo tivesse ouvido sua derrota íntima.

    As mãos, estendidas diante de seus próprios olhos, mostravam agora sinais inconfundíveis: a pele outrora viva começava a endurecer, a se tornar translúcida, fragmentos de luz congelada se infiltrando sob a carne.

    Cristais, belos e cruéis, brotavam como flores de inverno.

    — Você… não desiste… — a frase saiu entre dentes, não se sabia se dirigida ao inimigo, ao próprio destino ou ao gelo que o abraçava sem pressa.

    Aos poucos, não apenas os dedos, mas os pulsos, os braços, os ombros — todo o corpo se rendia à lenta invasão.

    O frio não apenas queimava; substituía.

    Cada fibra, cada nervo, tornava-se parte de uma escultura em formação, tão delicada quanto inevitável.

    Ao erguer os olhos, percebeu que nevava, mesmo após tudo ter chegado ao fim.

    Um sorriso o atravessava. Não era felicidade, nem infelicidade, o que transbordava… apenas algo além. Um sentimento que não cabia em palavras humanas, como se fosse feito da própria matéria que sustenta as memórias.

    — Você estava à frente de mim…

    De novo…

    De…

    Novo…

    A voz quebrou no ar, congelando-se na última sílaba.

    Assim como sua visão, transformou-se em um mero fragmento cristalino, perdido na imensidão das águas, submerso em um silêncio que parecia eterno.

    Esquecido…

    Mas não totalmente.

    Ainda vivo na memória daqueles que agora vivem por suas palavras, lembranças que se tornam brasas em corações distantes, ecos que atravessam o tempo e recusam o esquecimento.

    Pois mesmo quando a forma é apagada, o que se disse, o que se ousou sentir, permanece como neve que nunca derrete.

    — Hã? — freou seu servo sobre a copa de um pinheiro seco — O caos do mestre…

    — Ele sumiu… — Erdwahn interveio, surgindo das sombras, o olhar afiado como uma lâmina. Sua voz não era de preocupação, mas de constatação — Talvez tenha desmaiado, não?

    E assim, cercando-o, vieram as demais presenças. As sombras se adensaram, tomando forma humana e desumana ao mesmo tempo. Eram eles: os sete desertores, aqueles que haviam traído seu juramento como guardas do exílio e, no processo, sido corrompidos pela loucura sem nome… o feto maldito que os devorara de dentro para fora.

    — Não… o mestre? — murmurou, quase em súplica, olhando por sobre os ombros, como se esperasse uma silhueta surgir a qualquer instante.

    — Está preocupado? Você?

    — Não, não! — mordeu os lábios, emburrado, desviando o olhar — Suricato, não seja chato!

    — Tá! Aliás… o que ele te passou?

    — Ehr… — revirou os olhos, como quem evita entregar um segredo. Desceu lentamente, os pés flutuando sobre as águas claras e translúcidas que refletiam um céu rachado em luzes mortas — Vamos recrutar algumas sombras… Se não quiserem, deixemos em paz; se quiserem forçar, é bala neles!

    — Bala neles? — Suricato piscou, confuso. A expressão franzida o deixava ainda mais ridículo — Que linguajar é esse?

    — Nada, nada! Mas você entendeu, né, Suricato?

    — Entendi… cobra…

    Os dois se viraram para a frente. E notaram o detalhe incômodo: os demais já não estavam ao lado deles.

    O braço direito e o braço esquerdo do inimigo do mundo… separados, como peças soltas de um tabuleiro cósmico.

    — Será que isso vai dar certo, hein?

    — O quê? O recrutamento?

    — Não! — suspirou, exasperado — Falo desse plano mirabolante… Acabar com tudo? TUDO!?

    O olhar do parceiro brilhou em súbita lucidez, como se visse mais longe do que deveria.

    — Ele é capaz… Não sei, não sei bem quando, mas desde um instante comecei a compreender como ele enxerga tudo isso… Esse falso equilíbrio que inferioriza nossa espécie, que nos torna uma subespécie derivada das demais… quando, na verdade, fomos os primeiros a existir! — os olhos ardiam de convicção — Não acha?

    Suricato ficou quieto por um instante, medindo a própria resposta. Finalmente, murmurou:

    — É complexo… mas, de certa forma, o que me fascina não é o entendimento dele, nem sua visão sobre isso… É o fato de que ele é o Absoluto entre nós. Será… que um dia seremos como ele?

    O silêncio pesou. Até o vento pareceu estancar sobre as águas mortas.

    — Como não! Parecidos? Talvez… — respondeu por fim, a frase solta como um sopro de dúvida e esperança misturados.

    E ao longe, as fagulhas de caos ainda ardiam, como se escutassem cada palavra.

    O fim era só o começo…

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