Índice de Capítulo

    No instante em que o comando de Hermes ecoou pela arena, duas ações ocorreram em uma sincronia caótica e perfeita. A primeira foi a explosão de força vinda do olho de Brontes. A onda de calor partiu, não na direção de Hermes, mas no espaço vazio que ele acabara de deixar ao rolar desesperadamente para a frente, passando por baixo da onda de calor destruidora.

    A segunda ação foi o movimento.

    Imune ao caos, indiferente à sua própria segurança, o andarilho obedeceu. A figura encapuzada, que até então fora apenas uma estátua de silêncio, deu um passo à frente. Seus movimentos eram rígidos, cambaleantes, mas inabaláveis. Seus passos rápidos, quase saltos, encontravam tropeços em um ponto ou outro, como se a pessoa que os dava estivesse desacostumada a andar, ou correr.

    Ele caminhou diretamente para o gigante cego, que ainda se recuperava de seu próprio ataque.

    Brontes abriu o olho, a surpresa e o horror tomando conta de suas feições ao ver o homem encapuzado avançando, completamente ileso e indiferente ao seu poder. Com um rugido de fúria e confusão, o gigante descartou seu ataque à distância, seu olho ainda não estava plenamente recuperado do último. Mas isso não seria um problema.

    Ele atacou com as próprias mãos, um gesto de pura e bruta força.

    — MORRA! — ele berrou, e seus braços, grossos como pilares, mergulharam para a frente, as palmas unidas numa lança.

    Ele atravessou o peito do andarilho com um som úmido e surdo, esperando sentir a resistência de ossos se partindo e carne se rasgando. O que ele encontrou foi a solidez de pedra antiga. Suas mãos perfuraram a túnica e a carne morta, mas ficaram presas, fincadas no torso como estacas em um carvalho petrificado.

    O impacto da investida fez o capuz do andarilho voar para trás, revelando seu rosto pela primeira vez. Era pálido, a pele levemente acinzentada, com traços finos e serenos, mas os olhos… os olhos estavam vazios, opacos, desprovidos de qualquer centelha de vida. O Ciclope olhou para baixo, para suas mãos enterradas no peito de um homem que não sangrava, que não gritava, que apenas o encarava com a indiferença de um cadáver. O cadáver de Sêneca.

    Um som gutural de puro terror escapou da garganta do monstro. Ele tentou puxar as mãos, mas Sêneca, com uma força que não pertencia aos vivos, agarrou os pulsos do gigante, suas mãos pálidas se fechando como grilhões de ferro. Brontes estava preso. Ancorado à sua vítima.

    MAGNO, AGORA! — O grito de Hermes foi o sinal.

    Com o monstro imobilizado, a chance deles havia chegado. Hermes disparou pela direita, a adrenalina cantando em suas veias, ignorando a dor em seu corpo. Pela esquerda, Magno avançou, seus movimentos ágeis e silenciosos.

    Saltaram ao mesmo tempo, suas lâminas brilhando sob a lua. Com um movimento sincronizado e brutal, cravaram suas armas no olho gigantesco e pulsante.

    Um som úmido e nauseante ecoou, e o Ciclope soltou um uivo de agonia tão alto que fez as pedras tremerem. A luz em seu olho se apagou, substituída por um jorro de icor negro que escorreu por seu rosto deformado como lágrimas de piche. 

    Com a cegueira do monstro, o controle sobre os aldeões se estilhaçou. A conexão se partiu. Por toda a arena, eles pararam, piscando, a confusão e o horror começando a retornar a seus rostos enquanto olhavam para as armas improvisadas em suas mãos e para os corpos caídos ao redor. Alguns gritaram. Outros desmaiaram. Felizmente, nenhum havia morrido.

    Brontes, cego e urrando de dor, arrancou as mãos do peito de Sêneca com uma força final e desesperada, e caiu de joelhos.

    Hermes não perdeu tempo. Ele avançou, o cansaço e a dor esquecidos por um instante. Ele fincou a ponta de sua xiphos no ombro do gigante, usando a lâmina para forçá-lo ao chão. O monstro tombou para trás com um baque que fez a terra tremer, imobilizado.

    — Quem é o seu Mestre? — Hermes exigiu, o rosto a centímetros do da criatura mutilada, o fedor de sangue e enxofre subindo de suas feridas.

    Brontes apenas gargalhou, um som borbulhante de sangue e ódio que jorrou de seus lábios rasgados. — Vocês… não sabem… o que é… o Fim…

    — As moedas! — Hermes pressionou a lâmina, fazendo o gigante urrar. — O que são elas? Responda!

    O Ciclope cuspiu um jato de sangue. Hermes desviou com o pescoço e rangeu os dentes. 

    — São a chave… a canção que irá refazer este mundo apodrecido… — Ele olhou na direção de Hermes com sua órbita vazia e sangrenta. — E você carrega uma das notas sem sequer saber a melodia, Arauto tolo. Kuhahahahahaha-

    Ele gargalhou.

    A menção ao seu antigo título fez Hermes vacilar por um instante. Aquele monstro sabia mais sobre ele do que ele próprio compreendia sobre a situação. Sua fúria se misturou a um calafrio de incerteza. Ele olhou para Sêneca, que agora se aproximava lentamente, o buraco em seu peito uma ferida escura e sem sangue.

    — O velho! — Hermes rosnou para Brontes. — O que ele é? Por que você o temeu?

    Ao sentir a proximidade de Sêneca, o ar pareceu escapar dos pulmões do ciclope por um momento. Ele cessou sua respiração, como se contemplasse algo.

    — Tolo… Não é temor — Brontes engasgou, o corpo tremendo. — Ele é um dos Ecos… uma alma antiga acorrentada a um propósito que nem mesmo ele lembra… mas o Mestre o despertará! E quando o fizer…

    Antes que Brontes pudesse terminar sua profecia delirante, um pio agudo e cortante veio de cima, um som que fez o sangue de todos gelar. Do céu noturno, mergulharam duas figuras. Asas de couro, garras afiadas, corpos de mulher com a fealdade de aves de rapina. Harpias.

    Elas guincharam, um som que parecia rasgar o próprio ar, e atacaram. Ignoraram completamente Hermes e Magno, que se prepararam instintivamente para o combate. Seu alvo era um só. Com uma velocidade incrível, as criaturas cravaram suas garras na carne do Ciclope caído.

    — NÃO! — Hermes gritou, tentando avançar, mas uma das Harpias o golpeou com a asa, a força do impacto o jogando para trás.

    Com um esforço poderoso de suas asas, as criaturas ergueram o corpo gigantesco de Brontes do chão. Enquanto subiam para a escuridão, o Ciclope, mesmo cego e moribundo, virou a cabeça em sua direção, um último grito de desafio e promessa ecoando pela noite.

    VOCÊS IRÃO SE ARREPENDER DE IR CONTRA O FIM!

    As criaturas e sua carga desapareceram no céu, deixando para trás um anfiteatro de silêncio, corpos e perguntas sem resposta.

    …………

    A poeira assentou lentamente no anfiteatro de mármore, revelando uma cena de silêncio e devastação sob a primeira luz do amanhecer. 

    Ao redor, os cidadãos de Thasos despertavam de seu longo pesadelo, piscando contra o sol nascente como se o vissem pela primeira vez. Eles se levantavam, confusos, olhando para as pás e picaretas em suas mãos, para os rostos de seus vizinhos, e para os três estranhos manchados de sangue e fuligem no centro de tudo.

    O primeiro a se mover foi o velho pescador que Magno havia trazido a Hermes. Ele se aproximou, hesitante, os olhos passando do buraco no peito de Sêneca, ao rosto cansado de Magno repleto de sujeira e então para Hermes. Não havia medo em seu rosto, apenas um assombro profundo e reverente. Ele se ajoelhou.

    — Os deuses… — Ele falou, a voz trêmula — Os verdadeiros nos salvaram!

    O gesto foi como uma represa se rompendo. Um por um, depois em grupos, os outros aldeões se aproximaram. Eles viram o ouro e o vinho empilhados para o sacrifício. Feixes de memórias piscaram em suas mentes, aos poucos, entenderam o destino do qual haviam sido salvos, e o medo deu lugar a uma onda avassaladora de gratidão. Eles não fizeram perguntas. Não precisavam. Ajoelharam-se diante de Hermes, Magno e do silencioso Sêneca, ovacionando-os não como homens, mas como salvadores divinos. O buraco no peito do homem que seguia de pé ajudava a compor a narrativa.

    O gesto foi como uma represa se rompendo. Um por um, depois em grupos, os outros aldeões se aproximaram. Eles viram o ouro e o vinho empilhados para o sacrifício, entenderam o destino do qual haviam sido salvos, e o medo deu lugar a uma onda avassaladora de gratidão. Eles não fizeram perguntas. Não precisavam. Ajoelharam-se diante de Hermes, Magno e do silencioso Sêneca, ovacionando-os não como homens, mas como salvadores divinos.

    A recompensa foi uma torrente. Despiram o altar profano de Brontes, trazendo o ouro e os melhores vinhos para os pés de seus libertadores. O mercado, antes apático, agora fervilhava de vida, cada comerciante oferecendo o melhor de seus produtos: pães frescos, odres de água limpa, frutas, bandagens e ervas medicinais. Os suprimentos, antes difíceis de obter, agora lhes eram dados de graça, com sorrisos e agradecimentos.

    Magno, pela primeira vez em muito tempo, parecia em casa. Ele mancava pelo porto, uma vareta improvisada como bengala, distribuindo tapinhas nas costas e aceitando canecas de vinho, o sorriso de raposa de volta ao seu rosto, embora tingido por uma melancolia que nunca o abandonaria completamente.

    Ele havia salvo aquelas pessoas. Todas elas. Talvez, mais por mérito de Brontes do que dele, mas isso não importava.

    — Devíamos ficar mais um pouco, desbotado — disse ele a Hermes, que supervisionava o carregamento dos suprimentos no veleiro. — Nunca fui tão popular. As pessoas aqui me amam.

    Hermes o encarou, vendo através da fachada. Ele sabia o que Magno queria de verdade e a facilidade com que percebeu isso, o fez sorrir.

    — Eles ficarão bem, não se preocupe.

    O sorriso de Magno vacilou por um instante, percebendo que foi completamente decifrado sem qualquer dificuldade.

    — E se o caolho voltar? Eles merecem um pouco de paz.

    — Ele não deve voltar, e nós já fizemos o suficiente por aqui — Hermes respondeu, a voz rouca, pesando os fardos que carregavam — Eles já tem paz, é a nossa vez de encontrar agora.

    Ao lado deles, Sêneca observava o mar. Os aldeões, em sua gratidão, haviam-lhe dado roupas limpas. Ele não usava mais o capuz esfarrapado, mas uma túnica simples, de um azul escuro, que o fazia parecer menos um espectro e mais um peregrino cansado, contemplando o fim do mundo.

    Relutantemente, Magno concordou. Com os porões do barco abarrotados de ouro, vinho e provisões suficientes para meses, eles se prepararam para partir. Os cidadãos de Thasos se alinharam no cais para se despedir, um adeus silencioso e solene.

    O veleiro deslizou para fora do porto, impulsionado por uma brisa suave da manhã, deixando para trás uma ilha de cinzas e um novo céu a contemplar.

    Por dois dias, a viagem foi tranquila. O mar estava calmo, o céu, de um azul límpido. Magno contava histórias exageradas, Hermes mantinha sua vigília silenciosa, e Sêneca… Sêneca permanecia o mesmo enigma imóvel. Na tarde do terceiro dia, no entanto, o mundo mudou.

    Uma névoa estranha começou a se formar no horizonte, rastejando sobre a superfície da água. Não era uma névoa marítima comum. Era espessa, de um branco leitoso, e se movia contra o vento de forma antinatural. Hermes rodou o leme rapidamente, tentando evitar o encontro direto.

    Não adiantou, em minutos, ela os engoliu por completo.

    O mundo se tornou um casulo de silêncio e umidade. A visibilidade caiu para poucos metros. O som das ondas foi abafado, o sol se tornou um disco pálido e impotente acima deles.

    Magno sacou suas adagas, os olhos varrendo o branco impenetrável. Sua visão não alcançava mais que um metro à frente.

    — Que diabos é isso?

    Hermes não respondeu. Ele estava de pé na proa, o corpo tenso, a mão no cabo da espada. 

    Ele sentia algo naquela névoa. Uma pressão no ar, uma energia que fazia os pelos de sua nuca se arrepiarem. Era uma sensação familiar, um poder que ele conhecia, mas que não conseguia nomear, como a melodia de uma canção que vem à mente em notas picotadas, incapaz de ser identificada. A energia de um Deus. 

    Mas qual? A presença era antiga, poderosa, e indecifrável. Sua natureza era um mistério.

    O barco flutuava à deriva em direção ao coração do nevoeiro. Logo, ele desapareceu, para que ninguém mais o encontrasse.

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