Continuei o caminho, o corredor começava a ficar mais estreito, e a inclinação mais acentuada. Lentamente, o vapor da caverna anterior se dissipou, e a aparência do túnel começou a mudar. As paredes de pedra deram lugar a vigas de madeira, quase apodrecida. Eu tinha a impressão de que, a qualquer momento, tudo poderia desabar.

    — Quem era ele? — questionei para Lefkó, enrolada no meu pescoço.

    Eu me referia ao homem do lago, o mesmo que ela havia devorado momentos antes.

    — Parece que ele não tinha muitas memórias. Não posso lhe responder com clareza — ela respondeu, o corpo agora gelado na minha pele.

    — E quanto à esfera? O que era aquilo?

    — Já disse antes. Um núcleo de Qi. — Ela soou impaciente, mas dessa vez sem sarcasmo.

    Apontei a lanterna para frente. Parecia ser o fim do túnel. Diante de mim havia uma escada de madeira gasta, degraus rachados, e o que parecia ser um alçapão.

    Subi com cautela, e quando empurrei o alçapão, um bafo frio entrou, com o cheiro de poeira velha e madeira úmida. A luz da lanterna revelou um porão estreito, repleto de caixas de madeira cobertas por panos esfiapados. Teias de aranha pendiam como cortinas.

    Aproximei-me das caixas, vários potes de barro estavam guardados cuidadosamente, decidi abrir um deles. Era uma bebida, de coloração diferente, havia um fraco cheiro de arroz.

    — Huangjiu — comentou Lefkó, com um certo desinteresse.

    — E isso seria?

    — Vinho amarelo, feito de grãos de arroz.

    — Não tem cheiro de vinho — repeti, ao cheirar o pote novamente.

    — É porque não é o tipo de vinho que você conhece.

    — Ótimo, vou levar tudo. — Levantei a carta do Mágico e, num piscar de olhos, todo o estoque sumiu, absorvido para dentro dela.

    Com as caixas fora do caminho, pude ver melhor o porão. O teto baixo, as paredes de madeira reforçadas. Então, um questionamento inundou minha mente: 

    — Estamos em uma adega? Não entendi o proposito desse túnel.

    — Deve ser uma saída de emergência, um túnel secreto para fugir do templo — esclareceu Lefkó.

    — Então, aonde estamos? — A resposta dela apenas me deixou mais confuso sobre tudo.

    Havia uma segunda escada, desta vez de pedra, que levava ao piso superior. Foi quando percebi: ainda estávamos na vila.

    Saí para a rua silenciosa. O cenário era o mesmo, casas abandonadas, vento frio, mas algo havia mudado. No alto do templo, a cachoeira que jorrava da boca do dragão não tinha mais o tom turvo e doentio. Agora, a água era cristalina, cintilava sob a luz do sol, como se tivesse sido purificada.

    — Lefkó, isso tem alguma relação com a esfera? — perguntei, ao coçar a cabeça.

    — Com certeza. Quebrar a esfera deve ter provocado essa mudança.

    — Devo me preocupar?

    — Acredito que não, Thomas.

    Ainda assim, minha confusão só aumentava.

    — Continuo sem entender por que Jiahao nos enviou aqui.

    — O Qi desse vale é poderoso. Um cultivador experiente não teria dificuldade em absorvê-lo durante a meditação.

    Isso era algo que eu não era, um cultivador. Tudo o que eu tinha ao meu dispor era um punhado de cartas mágicas.

    — Você disse que a saída estava no templo… — murmurei, frustrado. Aquele lugar me dava um pouco de calafrios, e eu queria sair imediatamente.

    — E está. Você apenas escolheu o túnel errado.

    — Então a culpa é minha? — A encarei, tive que manter meu autocontrole para não tentar agarrá-la naquele momento.

    — Sim — afirmou sem hesitação.

    — É muita cara de pau, viu…

    O ar ficou subitamente mais frio. A atmosfera mudou, pesada, opressora. Senti a presença antes mesmo de me virar. Um rugido ecoou atrás de mim, grave, ameaçador. Não houve tempo para pensar: o peso da criatura caiu sobre meu corpo, enquanto eu me virava.

    Levantei o braço esquerdo, e empurrei o queixo do animal para cima, para evitar que as presas da fera. Eu lutava com esforço, e eu mal conseguia entender o que estava acontecendo. Com a mão direita livre, dei um forte soco no olho do animal.

    Ele recuou com um gemido baixo, e liberou-me. Aproveitei a abertura, o empurrei para longe, e me livrei do peso esmagador.

    Só então pude vê-la com clareza: um tigre colossal, com quase quatro metros de comprimento. Eu não sabia explicar como havia suportado sua investida, menos ainda como conseguira afastá-lo com um único golpe.

    Coloquei a mão no baralho, e logo peguei a carta que eu sempre deixava no topo, para momentos desesperadores como esse:

    — Carruagem! — proclamei sem pensar duas vezes.

    A arma prateada surgiu em minha mão. Apertei o gatilho, e disparei todas as doze munições.

    Os projéteis ricochetearam na grossa pele do animal. Não foi nada efetivo.

    — Lefkó! Alguma ideia genial? — O felino parou de se debater, e me encarou, os olhos amarelos exibiam ódio e raiva.

    — É uma besta mágica. Nenhuma lâmina ou bala normal vai feri-lo — respondeu ela, rastejando pelo chão; havia sido arremessada do meu pescoço na primeira investida do animal. — A única maneira é atingir o Dantian dele.

    — Que diabos é isso? — indaguei novamente. 

    Antes que Lefkó respondesse, o tigre avançou outra vez. Encaixei a pistola entre os dentes dele, forçando a boca para cima para evitar a mordida. Tentei repetir o golpe no olho, mas ele já esperava. A pata atingiu meu tórax como um martelo, felizmente, meu casaco revestido impediu o ferimento fatal.

    Ele sacudiu a cabeça, tentando arrancar a arma das minhas mãos. No processo, a pistola voltou à sua forma original, meu baralho. E agora o tigre estava com ele preso entre as presas.

    — Solta a carta tigrinho! — afirmei. Sem as cartas, eu estava praticamente indefeso.

    Para minha surpresa, ele até “obedeceu”… mas do pior jeito possível. Balançou a cabeça e arremessou a carta para longe, e a fez deslizar pela rua poeirenta.

    Nem tive tempo de reclamar, era uma situação que exigia minha máxima concentração. Corri e girei o corpo, e tentei montar nas costas da fera. O tigre se contorceu, e tentava se defender, ao morder meu braço. Felizmente para mim, as presas dele apenas arranhavam o tecido reforçado do casaco.

    — Será que um mata-leão funciona com você? — murmurei, ao tentar enroscar braço em volta do pescoço dele.

    No todo, a ideia não era ruim. Nenhum de nós dois conseguia ferir o outro, então talvez eu vencesse. Mas eu teria a força necessária para vencer um animal daquele tamanho?

    Era díficil, eu era in

    — É um tigre… — murmurou Lefkó.

    Suspirei irritado. Não estava muito no clima para aquelas piadinhas dela.

    — Dane-se — exclamei, ao apertar os olhos do animal em fúria.

    O rugido que veio em seguida quase me ensurdeceu. Ele se debateu em agonia, com todo esforço para me tirar de cima dele. Foi o momento perfeito para eu me lançar para trás, rolar pelo chão e agarrar a carta da Carruagem pela segunda vez.

    O papel brilhou em minhas mãos, e retornou à forma de pistola. Mirei por um segundo, entretanto, no meu íntimo, eu sabia que seria inútil. Aquelas balas não passariam pela pelagem espessa.

    — Carruagem. — pronunciei, e a arma se dissolveu em faíscas douradas, e alongou-se até ganhar uma nova forma. 

    Em poucos instantes, eu troquei de arma. Agora eu segurava uma lança, com ponta de aço reluzente e frio.

    Segurei firme, sentindo o peso familiar. O tigre se preparou para saltar outra vez, tentei acertar sua barriga, enquanto ele flutuava no ar.

    Inútil.

    Nem mesmo fez um corte no animal.

    Ele caiu sobre mim, com força, enquanto tentava morder meu pescoço. Eu segurava a haste com ímpeto, e colocava contra as presas dele. 

    Se eu não iria conseguir feri-lo das formas convencionais, então tentaria uma nova abordagem.

    — Carruagem… — proclamei, esperava que pela última vez naquela luta. Eu não estava disposto a novas tentativas.

    A lança mudou de forma. O cabo retraiu-se lentamente, as fibras de madeira se retorcendo até ganharem o brilho metálico do ferro forjado. O aço surgiu vivo, pesado e sólido em minhas mãos. A estrutura lembrava a da pistola, mas havia algo de distinto: um cilindro preso acima do corpo principal, longo e robusto, quase como se fosse um rifle experimental.

    Se eu não iria conseguir perfurá-lo com os métodos tradicionais, então que eu o matasse de uma maneira mais criativa.

    — Queime! — Segurei o gatilho da arma, diretamente para a garganta do animal.

    Um jato incandescente explodiu à frente, e o ar quente fez minha visão embaçar. As labaredas envolveram o felino, que saltou de lado numa tentativa fútil de escapar. Era incapaz de fugir, o fogo consumia sua pele.

    O rugido dele tornou-se um grito prolongado, misto de fúria e dor. As chamas ficaram marcadas nas paredes de pedra das casas abandonadas. O cheiro de combustível e de carne queimada tomou conta do ambiente.

    Quando finalmente o fogo cessou, o tigre ainda permanecia em pé. Suas listras estavam marcadas com fuligem, porém sua pele se manteve intacta. Os olhos amarelos ardiam ainda mais intensos, e exibiam todo a sua raiva e furor contra mim.

    — Você é imortal? — murmurei, entre o cansaço e a incredulidade.

    A carta da Carruagem havia se mostrado ineficaz diante de uma criatura tão sobrenatural. O rugido que se seguiu foi o mais poderoso de todos, um trovão que fez o chão vibrar sob meus pés. Parecia estar furioso, apesar de não estar ferido, ainda sentia dores dos meus ataques.

    — É por isso… — sussurrei, ao deslizar a mão para dentro do casaco. — Que sempre guardo uma carta na manga.

    Os músculos do tigre se tensionaram, pronto para o salto final. Eu, por outro lado, já segurava a carta que reservava apenas para momentos decisivos.

    O animal preparou-se para saltar, enquanto eu ainda pronunciava o nome da carta para invocar o seu poder.

    — Dez de Espadas… — pronunciei, e ergui a mão para frente, estendida ao alcance das presas do tigre.

    Meu corpo implorava para recuar, cada instinto berrava para fugir. Mas a mente permaneceu firme, e dominou o medo.

    — Desapareça.

    As presas roçaram minha pele, e deixaram um corte superficial na minha mão. Sangue escorreu, no fim, isso não importava para o desfecho da batalha. No instante em que o toque da carta encontrou o corpo da fera, sua forma colossal desfez-se em cinzas.

    O vento carregou o pó, e o espalhou pela rua silenciosa.

    — Tu és pó… — murmurei, ao observar a última fagulha desaparecer. — E ao pó voltarás.

    Preparei-me para continuar meu caminho, antes que meu corpo obedecesse, eu escutei o som de algo cair no chão. Aproximei-me do objeto, uma brilhante perola de cor esbranquiçada, semelhante à esfera da caverna. Era pequeno, do tamanho de uma bolinha de gude.

    Segurei-a na mão, com um certo receio do seu propósito.

    — Núcleo de Dantian. — Lefkó subiu pelo meu corpo, e aconchegou-se novamente ao redor do meu pescoço.

    — Isso é mesmo um Núcleo de Dantian? — perguntei, ainda desconfiado.

    — Não tem exatamente a aparência tradicional, mas sim, não há dúvida. É o núcleo vital do tigre.

    — E o que eu faço com isso? — Pressionei levemente o objeto, e testei sua dureza, eu esperava que o objeto reagisse de alguma forma.

    — Para cultivadores, é um tesouro sem preço. Ainda mais vindo de uma besta mágica. O Qi contido aí dentro poderia sustentar anos de treinamento.

    — Não sou um cultivador… — Levantei-me, e continuei meu caminho. Olhei para o núcleo de Dantian uma última vez, e preparei-me para arremessar o objeto para longe. — Isso é inútil para mim.

    — Não faça isso… — interrompeu Lefkó, ao dar uma leve pressão no meu pescoço. — Isso pode ser uma boa moeda de barganha. Devemos guardá-la com sabedoria.

    Dei um suspiro, ao colocar o núcleo no meu bolso, e sentir o seu peso desaparecer sobre o meu casaco.

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