Capítulo 48: Sobre as costas dos gatos (1)
“Os antigos Rieqes de Norq’Riq nunca tiveram algo como uma ‘coroa’. A espada era o símbolo de seu reinado divino.”
Izandi, a Oniromante.

Seus pés estavam soterrados pela neve e afundavam-se mais a cada passo; memórias ressurgiam na cabeça. O caminho para o Templo do Leão tinha sido feito dezenas de vezes na sua vida: quando nasceu, quando atingiu seu primeiro ano, quando chegou aos cinco, quando sangrou, quando descobriu sua gravidez de um pai que não conseguia recordar uma letra de qual era seu nome… No entanto, era sempre levada na carruagem cheia de cavesões treinados; agora eram seus pés quem pisavam a terra há mais horas do que sabia contar.
Mesmo assim, não parava.
“Poderia me jogar desta altura”, pensou com um desejo alegre. Assim, poderia encontrar seu filho nas Ilhas Quentes. Seus punhos cerraram e deglutiu o ar rarefeito com uma carranca feia no rosto de doninha. Temeu que pudesse resistir. Vivi dois meses com a garganta aberta e costelas furando o coração, dissera a mulher imensa no seu pranto. “Devo… ter certeza… da morte… Meu Krazii.”
Pensar no sorriso do filho morto era a única coisa que a confortava.
O manto de leão que mal cobria seu corpo foi tecido as pressas e de restos, percebeu. Era pequeno demais, cheio de trapos, e seus pelos estavam hirtos, quase tão duros quanto as nuvens que jorravam rios e rios de neve abaixo do horizonte. Nuvens terríveis, mais escuras do que o próprio céu da Noite. Os vigias celestes não estavam visíveis, engolidos por tantas nuvens sombrias… Talvez a Cidade ao sopé da montanha já tivesse sido devorada pela neve…
— Siga… — sussurrou para si.
Sua barriga soltou um grunhido monstruoso de fome.
Mas continuou a andar.
Vez ou outra, tropeçava em alguma pedra escondida ou caía de exaustão. Seu corpo rolava, rolava e rolava por centenas de metros. Naqueles momentos, com seu corpo quase coberto de neve, tentava descansar um pouco… “Siga…” E então, pé sobre a neve, marchando, até que algo pudesse a ver. Até que pudesse ver a feiura do Castelo dos Leões, que pudesse ver a muralha de Gelo-Velho, ou qualquer outra coisa…
Ver o velho Tihimil, Draziz… Mirta…
“Ela saberia… como me matar… Ela é inteligente… diferente de mim…”
— Siga…
Até o momento que seus joelhos não aguentaram mais. Com um baque abafado, seus joelhos afundaram-se na névoa. O manto despencou ao chão, afundando na neve junto com suas mãos… O céu estava escuro. Era tudo escuro, seu mundo estava em trevas e tanta escuridão e dor quanto poderia estar. “Krazii…”
Quando olhou para frente, no entanto, finalmente conseguiu respirar.
Como se um caminho de árvores, várias rochas altas em arco serpenteavam um curto caminho mais inclinado que os demais, rumando… tendas altas e ovais de couro de baleia. Centenas de pontos luminosos vermelhos ardiam nos seus olhos em meio ao quase negrume alvinegro.
Descendo mais, Faina reparou nas chamas ardendo ao redor das tendas — dezenas de tendas rodeando o máximo de fogueiras possível, com ainda mais pessoas as rodeando, observando a neve derreter antes de tocarem nas chamas e se protegendo do frio assassino. Cobrindo a nudez o melhor possível, continuou a andar e trocar seu olhar cansado com os que tinham olhos melhores.
Alguns começaram a gritar, outros, a chorar. Alguns não repararam, outros, correram para longe.
Em poucos minutos, um grupo de pessoas cobertos com o dobro do peso em roupas grossas se aproximou de Faina.
— Rieq? — gritou um dos homens. Com os olhos cansados, Faina demorou para perceber que era Imanyn, filho de Skjá… — É a Rieq! Ela retornou! Está viva! Tragam-lhe roupas e comida!
Ela suspirou e fechou os olhos por um instante. “Desde quando ele era tão baixo assim?”, pensou, vendo-o se aproximar e se ajoelhar. Faina suspirou de novo, mal tendo forças para deixar o manto sobre a pele manchada pelo sem cor da mãe e as manchas azuis que maculavam sua pele como uma segunda coleção de marcas de nascença. Imanyn se jogou na sua frente, impedindo-a de cair…
— Me deixe… morrer…
No outro segundo, sentiu o gosto de hidromel condimentado misturado com uma sopa quente cheia de legumes cozidos. Não conseguiu mastigar nada, todavia, engoliu.
…Ao abri-los, Faina teve dor nos olhos — um braseiro aceso ardia e esquentava, soltando fumaça para o teto balançante da tenda. Havia pesos cobrindo-a, confortáveis… Seu pescoço doía, virado em direção ao chão. Ao redor dos braseiros, vários homens e suas esposas estavam amontoados dentro de cobertores grossos tentando dormir; outras, alimentavam seus filhos no seio, enquanto uns e outros aumentavam o número de crianças abaixo de seus cobertores ou sem nenhum pudor.
Mais perto, algumas tricotavam roupas. Faina respirou baixinho. Sensações confortáveis acima e abaixo do corpo quase a fizeram sorrir, mas falharam em tirar o rosto desorientado e de irremediável tristeza. Estava deitada entre uma cama de macias peles de lobo e o dobro — triplo — de peles felpudas.
E entre as peles, rapidamente percebeu os finos caracóis de ônix da cabeça de sua única amiga, que fazia de seus fungados mais altos que o volume das brasas. Faina encostou os braços cansados sobre a grossa amalgama de pelagens de ursos e cavesões que cobria as costas da amiga…
— Faina!? — gritou em voz de sussurro, voltando os olhões desesperadamente negros para a amiga. Faina piscou por um leve segundo, mal conseguindo ver direito a feição morena da amiga, todavia foi o suficiente para fazê-la chorar. Um fungar baixo, seguido de outro alto…
Mirta entrançou o corpo de Faina com um abraço de corpo inteiro, deixando suas lágrimas despencarem no pescoço da branca. Faina não soube como reagir… Logo, sua clavícula ficou encharcada de lágrimas e ranho…
— Shh… — fez, passando a mão suavemente pelos caracóis lindos. “A dor no meu coração alastrou-se para a cabeça”, pensou Faina. Aos seus olhos, naquele único instante, o negro das espirais de cabelo eram pequenos fios louros quase brancos. — Shhh… Não precisa chorar… — “Ah… Por quê?” — Não precisa chorar…
— Faina… — Apertou suas mãos nas peles que serviam de cama. O rubor de constrangimento na face pequena de Mirta estava acompanhado de um sorriso alegre. Ela olhou para o céu e falou na língua das Ilhas Coral, então devolveu o olhar para Faina. — Final…mente… — Ela fungou uma última vez, então seu olhar foi trocado por um rosto sério. “Minha amiga e conselheira”, se lembrou com um gosto amargo. — Você… não faz ideia do quanto sofri… esperando que acordasse… Imaginei… que tinha morri…
“Eu te causaria dor se morresse”, concluiu. O que será de sua amiga, Mirta, caso vá-se? Não tinha aquela assombração dito-lhe isso? Como se toda a força que tinha se esvaísse, Mirta cedeu e abraçou o corpo nu da amiga mais uma vez.
— As servas estão finalizando roupas para você, ay Rieq… — sussurrou, sua voz entrecortada pelo choro e soluço. Ela se levantou da cama, deixando as cobertas todas para Faina. Alisou seu vestido de sacerdotisa, piscou suavemente e terminou: — Vou arranjar comida, ay Rieq. Descanse, por favor.
Faina assentiu e esperou, mordendo a língua… sem forças o suficiente para aquilo. Mirta retornou para a grande tenda um pouco depois. Atrás delas, um escravo carregava uma malga, outro carregava uma panela e um terceiro trazia um pequeno pote com cheiro de mel rosa. Bebeu a sopa quase sem mastigar e engoliu todo o mel, deixando sua boca lambuzada de um rosa grudento. “Pare, me deixe morrer…”
Porém, comeu tudo.
Mirta piscou mais uma vez, devolvendo a colher aos escravos. Uma das mulheres gemeu alto como um cavesão, e a sacerdotisa pôs-se de volta entre os mantos.
— Como se sente, Faina? — sussurrou, cobrindo-a com os braços.
— …Viva…
— Que bom…
— Você… quem… levou meu… Krazii… para o…
— Sim — ela respondeu, sem rodeios ou qualquer coisa. — O Pai-da-Neve ordenou. Disse que era… necessário descendência para curá-la…
“Ah…”
— Me perdoe… — Mirta chorou, piscando seus olhos dolorosamente e franzindo o cenho como se para evitar despencar em tantas lágrimas que não conseguiria mais falar. Faina apertou-a contra seu peito, que agora era muito maior do que a cabeça da estrangeira… era maior. “Eu estou maior”, concluiu. Já havia pensado na possibilidade enquanto descia a Montanha. Muitas vezes, tanta neve que despencou dos céus tinha acobertado pedras, e quando seus pés afundaram, continuava alta demais até para elas. — Se tivesse pensado mais rápido, talvez, talvez…
— Shh — interpôs Faina, afagando-a mais uma vez. “Você está bem… Está bem…” — Tudo bem… Eu te amo. Não fez… nada…
Mirta engoliu as lágrimas e fechou o rosto.
— Você desmaiou de novo… por quase uma semana…
Em seguida, tentou contar a Faina o que aconteceu, o que pôde olhar daquela tênue distância. Foi como a assombração lhe contou. No momento que a lança atravessou seu corpo, alguém disparou a fecha, depois outra, então era o clangor do metal de vulcão contra as peças lisas dos Caras-Queimada, muito mais resistentes e afiadas.
— Lá de cima, mal consegui ver quantos eram. No entanto, imaginei que, contando com as crianças e mulheres, eram no máximo duzentos — ela falou, com sua voz meio abafada pelo seio de Faina, que não deixava que saísse de lá. — Foi um caos… — soluçou. — Eu vi a carcaça da batalha quando eles invadiram a Cidade dos Vladein… todavia, aquilo foi uma monstruosidade. Os filhos mais velhos de Skjá Vladein derramaram o primeiro sangue enquanto Chefe Tihimil tentava resgatar você, chorando de luto pela lança que…
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