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    A infusão de ervas soltava um vapor tênue, espalhando pelo ar um aroma terroso e acolhedor, como se o frio lá fora fosse apenas um pesadelo antigo. As chamas tímidas projetavam sombras nas paredes da cúpula de gelo, fazendo com que o abrigo parecesse respirar junto deles.

    Aisha estava sentada, envolta no sobretudo que ajudava a espantar o frio. As mãos ainda tremiam, mas menos do que antes. Os olhos, fixos na borda do recipiente fumegante, pareciam mirar além, atravessando o fogo, como se tentassem alcançar alguma lembrança perdida ou um medo que ela não ousava confessar.

    O Guardião estava próximo, mas respeitosamente distante. Não havia arrogância em sua postura. Nem imponência. Apenas silêncio. Ele não a observava como um soldado avaliando uma recruta, nem como um guardião examinando uma ameaça. Era o olhar de um homem… alguém que parecia estar reaprendendo como se conversa com outro ser humano.

    — Por que você atravessou a barreira? — perguntou, sem rodeios, mas com a voz mais baixa do que o habitual, como se receasse a resposta.

    Aisha demorou a responder. Os lábios se entreabriram, mas o som não vinha. Por fim, a voz saiu, rouca, mas firme:

    — Achei que seria uma chance — disse. — Uma chance de fugir daquele lugar. Ou ao menos de provar que eu era mais do que esperavam. Mais do que me deixavam ser.

    As palavras escaparam dela como se tivessem sido guardadas tempo demais. Ela se encolheu sob o sobretudo, como se pudesse se esconder da própria confissão. Os tremores diminuíam, mas a lembrança do peso da armadura e da expectativa em seus ombros parecia maior do que qualquer frio.

    Ian ficou em silêncio por alguns instantes, como se tentasse processar cada palavra. Ele não desviou os olhos dela, mas também não a pressionou. Apenas esperou.

    — Você sabia que era o terceiro desafio? — perguntou, por fim.

    — Não. — Aisha respirou fundo. — Me disseram que era uma missão de honra. Descobri aqui… que era, na verdade, um sacrifício disfarçado.

    Um riso irônico escapou dela, breve, como quem ri de algo que dói mais do que deveria.

    — Sabe o que é engraçado? Provavelmente o comandante achou que estava mandando o meu irmão para a morte… queria ver o rosto dele quando tirei a armadura.

    Ian assentiu, sem mostrar surpresa, mas os olhos dele brilharam de uma forma diferente, como se reconhecesse a sensação.

    — E agora? — ele perguntou. — Quer voltar?

    Ela ergueu os olhos para ele. Dourados, firmes como pedra.

    — Não.

    O silêncio se instalou novamente. Não era desconfortável, mas denso, como se as chamas do fogo queimassem também palavras que nenhum deles ousava dizer.

    Ian se encostou à parede curva do abrigo. Por um momento, parecia mais pesado, como gelo rachando sob o sol.

    Os votos dos Guardiões ecoavam em sua mente, imutáveis, cruéis, frios. nada poderia atravessar a barreira e sair com vida. Nada. Era uma lei gravada em sangue. Mas ela estava ali. Viva. Teimosa. Inteira, apesar de tudo.

    O fogo crepitava, e o som das fagulhas enchia o espaço vazio. Ian quebrou o silêncio com um sussurro que parecia mais uma confissão:

    — Você não quer voltar…

    — Não há nada lá — disse Aisha, firme. — Só correntes douradas e nomes que nunca foram meus.

    Ian fechou os olhos, deixando escapar um suspiro que parecia carregar mais peso do que deveria. Quando falou, a voz estava frágil, como se tremesse por dentro:

    — Houve alguém… que também não tinha mais para onde voltar.

    Aisha ergueu o olhar. O nome veio como uma prece esquecida:

    — Jyn.

    Ela não reagiu com palavras. Apenas o ouviu. Cada sílaba dele parecia abrir cicatrizes antigas. Aisha não precisava perguntar mais. Entendeu o bastante.

    O silêncio que se seguiu não era de desconforto. Era outro tipo de silêncio. Mais humano, cortado pelo crepitar do fogo.

    Ian a encarou de volta, por fim, e disse:

    — Você me lembra ela. Não pela aparência. Mas pela força que a dor forçou em você.

    Aisha desviou o olhar. O sobretudo em torno de seu corpo parecia mais pesado, como se carregasse junto as palavras dele.

    — Então… o que vai fazer? — perguntou.

    Ian se ergueu. Devagar. O corpo parecia um campo de batalha antigo demais, cheio de cicatrizes invisíveis. Caminhou até a entrada do abrigo. Do lado de fora, a neve caía devagar, um vazio branco que começava a engolir a paisagem. O vento rugia, e a claridade da tempestade parecia apagar todas as cores.

    Dentro dele, uma batalha acontecia, e a mana ao redor respondia a isso.

    Ele olhou para Aisha.

    O olhar firme. A alma em ruínas por reviver memórias que preferia enterrar. Aisha o olhava com um misto de gratidão e incerteza, como um condenado esperando uma sentença mais branda.

    E então ele viu. Não apenas uma semelhança. Mas a repetição de uma tragédia. A mesma coragem descartada. A mesma mulher ignorada por um mundo cego. A mesma injustiça se repetindo, diante dele.

    Os punhos se fecharam.

    — Isso é injusto — sussurrou, como se desafiasse os próprios deuses. — Isso é… cruel demais.

    Aisha o olhou.

    — Você não precisa me salvar. Eu vou conseguir me virar sozinha.

    Ian respirou fundo, e respondeu baixo, quase um lamento:

    — Eu sei. Mas talvez… eu precise salvar o que restou de mim.

    O fogo estalou, como se aprovasse aquelas palavras.

    Por alguns segundos, nenhum deles disse nada. Aisha observava a sombra dele contra a entrada do abrigo, e pela primeira vez pensou: ” Que estranho… desse jeito ele parece mais um homem do que uma lenda…”

    Então ele falou, mudando o humor da noite:

    — Há uma cidade.

    Ela arqueou uma sobrancelha, intrigada.

    — Quando parti, era só um amontoado de lonas. Na época, chamavam de Assentamento da Névoa.

    — Névoa? — ela repetiu, estranhando o nome.

    — É. Névoa. — Um pequeno sorriso escapou de Ian. Não era humor. Era lembrança.

    Ele se virou para ela.

    — São doze dias de caminhada. Se quiser… eu te levo pode ser um bom ponto para recomeçar.

    Ela hesitou. Por um instante, parecia que o silêncio da cúpula pesava mais do que as paredes de gelo. Olhou para ele, os olhos dourados vacilando entre desconfiança e aceitação.

    Havia algo novo ali. Algo pequeno. Talvez um traço de gratidão.

    E para Ian, era o bastante.

    Ele sabia que, ao dizer aquilo, estava quebrando o voto.

    Mas pela primeira vez em muitos anos, sentia que Jyn teria sorrido…

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