Lyra observou Tyla desaparecer para dentro do prédio. Helena, por sua vez, dava a volta pela marquise, caminhando em direção ao edifício dos voluntários. 
     

    Lyra bufou, as mãos se abrindo e fechando num gesto nervoso. Não sabia se ia atrás de Tyla ou se corria para tirar satisfação com Helena. O coração já batia rápido demais para que conseguisse pensar com clareza.
     

    As lembranças vieram como socos: o ataque que sofreu na disputa de Rei da Colina e a dor onde o rosto havia sido quebrado que ainda a incomodava, o susto do atentado no beco. A raiva começou a ferver, densa, queimando sob a pele. Não poderia deixar aquilo impune.
     

    Tyla já subia as escadas. Helena estava prestes a desaparecer de vista.
     

    — Desgraçada… — murmurou, a voz baixa e carregada de veneno. — Deixe minha amiga fora disso…
     

    Os olhos se estreitaram. Decidida, atravessou correndo o espaço sob a marquise. Resolveria dois problemas de uma vez.
     

    Helena acabara de virar para entrar no prédio, sumindo por um instante. Quando Lyra contornou o pilar, a viu, de costas. 
     

    — Helena! Sua vagabunda! — gritou, a voz ecoando no pátio vazio. 
     

    A loira se virou bruscamente ao ouvir seu nome. O movimento foi rápido, mas o suficiente para Lyra ver o instante exato em que os olhos dela se arregalaram ao reconhecê-la avançando.
     

    Lyra parou a poucos passos de distância. Não havia pensado no que dizer, as palavras não vinham, só a raiva, quente e densa, pulsando no peito e nublando todo o resto. Helena, sempre rápida para perceber uma vantagem, sentiu a hesitação e agarrou a oportunidade. Ditava o rumo de conversas como quem jogava um jogo que já conhecia de cor.
     

    — Ora, ora… o que quer comigo, tributo? — disse, carregando na falsa surpresa, a voz melosa como veneno dissolvido em mel. — Estou ocupada, sabia? Espero visitantes. Ser vista com gente da sua laia pode me prejudicar.

    Em vez de acalmar Lyra, cada palavra foi um sopro para o incêndio que ardia dentro dela.
     

    — Sua vagabunda! — explodiu Lyra. — Não basta vir atrás de mim, quer prejudicar meus amigos também?
     

    — Amigos? Ah… a meretriz — respondeu Helena, o tom ainda mais açucarado e falso, como se quisesse provar o quanto controlava a situação. — Meus assuntos com ela não te dizem respeito, escória. E, mesmo que dissessem… não me importaria.
     

    Lyra avançou mais um passo, entrando no raio de ação da loira. Helena relanceou os olhos para as câmeras de segurança, calculando que estava protegida por elas.
     

    — Do que a chamou? — perguntou Lyra, a voz baixa e dura.
     

    — Ah… você não sabia? — Helena sorriu com crueldade. — Ela era uma puta na corte da minha família. Pena que você e ela escaparam desse destino. Teria adorado ter você como meu bichinho de estimação.
     

    A frase penetrou fundo, cortando qualquer controle que restasse. A lembrança de Aliah, o início de todos os seus problemas, se misturou à imagem daquela herdeira mimada cuspindo insultos.
     

    Lyra abaixou a cabeça, dobrando os joelhos, mantendo os olhos cravados em Helena. Então, num movimento seco, usou toda a força de suas pernas e tronco para lançar-se contra ela. No último segundo, Helena tentou recuar, mas a testa de Lyra encontrou seu queixo com um impacto brutal.
     

    O som oco ecoou no pátio coberto. Helena desabou, e Lyra caiu sobre ela. Gotas quentes de sangue respingaram na pele pálida da loira.
     

    Lyra levou a mão à própria testa, sentindo o corte aberto pelo choque. O sangue já escorria, misturando-se à respiração acelerada.
     

    — Vagabunda… — sussurrou, e a raiva parecia ter corpo próprio, queimando por dentro como se quisesse sair pela pele.
     

    Sentou-se no peito dela, prendendo-a no chão. Helena estava atordoada, o maxilar deslocado ou quebrado. Lyra deu tapinhas no rosto da inimiga até ela recobrar a consciência. 
     

    Quando os olhos da Sylaris voltaram a focar, a cena que viu foi quase um pesadelo: Lyra, o rosto completamente vermelho de sangue, sentada sobre ela, sorrindo de forma quase insana. 
     

    — Não basta vir atrás de mim… quer pegar minha amiga também? Quer que ela me traia, é? Sua puta nojenta… 
     

    O soco veio pesado, com todo o peso do corpo. A cabeça de Helena bateu no chão, arrancando dela um som estranho e gutural. 
     

    Lyra ergueu a mão para outro golpe, mas algo atingiu suas costas com violência, arrancando-lhe o ar, sentiu queimar. Foi arremessada para o lado e rolou pelo chão. Dois rapazes, os tributos que andavam com Helena, tinham chegado. 
     

    Tentou se levantar, mas uma fisgada no lado direito do corpo a travou. O loiro armou um chute na sua cabeça. Lyra se protegeu com o antebraço, mas o impacto ainda a atingiu no rosto. Um estalo alto soou em seu braço. 
     

    Caiu de novo, a cabeça batendo no chão, a visão turvando. Mas manteve os dentes cerrados. 
     

    Tudo doía, o lado direito, o braço, que pendia mole, o rosto. Sentia o corpo pesado, como se não fosse dela, recusando-se a colaborar.
     

    Os dois rapazes ergueram Helena. O rosto dela já estava deformado, um inchaço grande e arroxeado marcando onde o maxilar havia sido partido.
     

    Segura pelos capangas, Helena olhou para Lyra no chão. Tentou cuspir. Uma massa vermelha caiu no chão.
     

    — Matem-na — ordenou, a voz arrastada pelo maxilar ferido. 
     

    Os rapazes hesitaram. 
     

    — Olha o que essa cadela fez comigo! — gritou Helena. — Eu quero ela morta! 
     

    Eles hesitaram novamente.
     

    O coração de Lyra disparou. Não teria como se defender. Não daquela vez. Apalpou atrás dos aplicadores de aether, não achou nada. Perdidos na confusão. 
     

    Nunca imaginou que sua história pudesse terminar ali, numa briga daquelas. 
     

    Helena, impaciente, arrancou uma faca das mãos do tributo careca. Foi nesse instante que Lyra entendeu a dor estranha no lado direito. O porque de seu corpo estar tão estranho. Já tinha sido atingida antes. Já estava ferida. Esfaqueada.
     

    — N… não… — tentou dizer, mas a voz não passava de um sussurro.
     

    A lâmina entrou fundo em seu abdômen. O movimento seguinte foi um rasgo lateral, abrindo a carne. 
     

    A dor queimava como fogo vivo.
     

    O som dos passos se afastando misturou-se ao pulsar de seu próprio sangue. 
     

    Não morra… — ordenou a si mesmo. Algo mudou dentro dela naquele instante, não sabia o quê, mas sentia que tinha mudado.
     

    Pensou em quem poderia salvá-la. Aedena veio à mente como um clarão. 
     

    Com as últimas forças, projetou seu pensamento para a professora, como nas aulas de telepatia. Rezou para que fosse suficiente. 
     

    E apagou. 
     


    Não muito longe dali, em uma das salas de aula, um grupo heterodoxo de alunos se encontrava reunido. Eram três legados, nove voluntários e vinte tributos. O único ponto em comum entre eles era frustrante: até aquele momento, nenhum havia conseguido consolidar um núcleo aethérico.
     

    — Isso, já usaram sua dose de aether — dizia a professora Aedena, a voz firme e sem espaço para hesitação. — Ele corre em suas veias. Abre suas consciências. Sintam o calor… sintam ele se reunindo no peito, acumulando-se, pedindo para nascer.
     

    Ela percorria o ambiente com olhos atentos, cada respiração sua carregando expectativa. Odiava perder alunos. Sabia que, quando chegavam àquele estágio sem formar o núcleo, as chances de sucesso despencavam. Os voluntários voltariam para suas Casas, os legados retornariam às suas Legiões e os tributos seriam realocados nas entranhas do Império, moldados ao trabalho que suas capacidades permitissem.
     

    — Não basta sentir — continuou Aedena, cortando o ar com as palavras. — Vocês já estão cheios de aether. Ele é a ferramenta da sua vontade para moldar o corpo. Vocês devem querer. Visualizar. O desejo sobre as dúvidas. Agora não é hora de titubear diante de si mesmos.
     

    Um dos voluntários grunhiu, o rosto tenso. Aedena se aproximou de imediato. Observou. Respirou fundo. Um sopro de alívio escapou, o núcleo dele estava, enfim, dando sinais de se consolidar.
     

    Mas, ao mesmo tempo que a satisfação lhe aqueceu o peito, uma sensação diferente irrompeu. Estranha. Familiar de um jeito incômodo. Tinha muito, muito anos que não sentia algo como aquilo. Era como aquele pressentimento que a atravessava quando enviava suas garotas para missões perigosas, suas Cor Pungens, suas adoradoras na seita. Um chamado que não ouvia há muito, muito tempo.
     

    Então, de repente, a sensação morreu. Como se seu coração tivesse perdido um compasso.
     

    — Lyra… — o nome escapou por seus lábios em um murmúrio. — Ela está morrendo.
     

    Aedena não disse mais nada. Não explicou. 8Simplesmente girou nos calcanhares e disparou pela porta, deixando seus alunos sem entender por que a instrutora que nunca abandonava a sala havia sumido no meio do exercício.
     



     

    Lyra não sabia onde estava. Sentia-se perdida, como se sua mente estivesse tentando agarrar um mundo que não obedecia mais às regras conhecidas. O céu acima dela parecia errado, tingido por cores que não deveriam coexistir. Abaixo… sim, havia algo abaixo, a terra, mas era sombria e ameaçadora, como se observá-la por muito tempo fosse perigoso.
     

    “Terra… abaixo?”, pensou, o coração acelerando. Só então percebeu: estava flutuando, alto, muito alto. O corpo leve, sem peso, como se tivesse sido libertada de qualquer vínculo físico. As estrelas, no entanto, eram o que mais a inquietava. Brilhavam de um jeito diferente, quase artificial, parecendo menos como astros e mais como portais abertos na escuridão, cada um levando a algum lugar distante e impossível.
     

    E então, ela sentiu. Mais do que viu. Uma presença única, avassaladora, que fazia todas as outras desaparecerem. Era como a sensação de estar sob o olhar de um pai, protetor, mas inflexível, vigilante como uma montanha e severo.

    Muito, muito ao longe, além do que qualquer visão mortal deveria alcançar, ela avistou seis rupturas colossais. Delas, criaturas escapavam em um fluxo constante, formas escuras, tão negras que se destacavam até mesmo contra o próprio negro do vazio.
     

    Um arrepio percorreu seu ser. Ela já tinha experimentado algo parecido antes… na primeira aula de Aedena. Quando seu corpo parecia ter ficado para trás e sua consciência, livre, atravessava um lugar desconhecido. Mas agora, tudo era mais intenso,  as cores, os sons, até o peso das sensações.
     

    “Onde estou?”, perguntou-se, sem esperar resposta. As lembranças voltaram como flashes: a briga, as lâminas, o corte profundo, o frio no corpo. Depois, Aedena sobre ela… chorando? Tecendo algo com o poder que Lyra mal compreendia. Seria aquilo um sonho? Ou… já teria cruzado a linha entre a vida e a morte?
     

    Foi então que percebeu. Um fino fio prateado saía de sua testa, estendendo-se até a terra lá embaixo, desaparecendo na escuridão. Hipnotizada, estendeu a mão para tocá-lo. Os dedos atravessaram a linha como se fosse feita de fumaça e luz. A curiosidade venceu o medo, e, sem que entendesse como, seu corpo começou a deslizar ao longo daquele fio. A velocidade aumentou até que o espaço ao redor se tornasse um borrão.
     

    Quando parou, estava suspensa sobre uma cena. Um quarto de hospital. Ou talvez uma sala de cirurgia. Dois médicos trabalhavam com urgência sobre um paciente imóvel, enquanto três enfermeiras se moviam ao redor como engrenagens precisas de uma máquina. O chão estava manchado por uma poça escura, provavelmente sangue que escorrera da mesa. A gravidade da situação era óbvia até para quem assistia de tão longe.
     

    Ela não conseguia ver o rosto do paciente. Tentou se inclinar, mudar o ângulo, descobrir quem era… mas uma voz a interrompeu.
     

    — Não, Lyra — disse, suave, amistosa, mas com firmeza. — Não faça isso. Não será bom para você.
     

    Virando-se, Lyra encontrou uma silhueta brilhante ao seu lado. A luz que emanava daquela figura era cálida, quase reconfortante, e não havia traço algum de hostilidade nela, apenas uma presença que parecia antiga e familiar.
     

    — Quem é você? — perguntou, a voz soando mais curiosa que temerosa. — Por que não posso ver o paciente na cama?
     

    — É para evitar um choque, Lyra. — A resposta veio serena, mas com um peso oculto. — Essa visão poderia te afetar mais do que imagina.
     

    Sem perceber, Lyra foi se afastando do quarto de hospital, acompanhando a figura luminosa como se estivesse sendo conduzida.
     

    — Quem é você? O que quer comigo?
     

    — Sou seu amigo, Lyra. Não me reconhece?
     

    O brilho pareceu recuar, e, aos poucos, formas ganharam contorno. O rosto exótico, os cabelos longos…
     

    — Rin?
     

    A figura soltou uma risada breve, mas não confirmou.
     

    — Eu queria te mostrar algo, Lyra. Duas coisas, na verdade… mas você fechou tão bem a sua mente que não consegui alcançar você antes.
     

    Ele se aproximou mais, e a luz ao redor dele pulsou como se reagisse ao próprio pensamento.
     

    — Uma das coisas que queria mostrar poderia te ferir profundamente. Não vou fazer isso. Queria… mas não posso. Só posso deixar um aviso: há algo verdadeiramente maligno sendo gestado no subterrâneo deste lugar. Cuidado, Lyra. Muito cuidado.
     

    — Mas… o quê? — insistiu, inclinando-se levemente para a frente, na esperança de arrancar mais alguma palavra.
     
    — Já disse mais do que deveria sobre esse assunto. Não quero causar sua morte. — A voz dele endureceu um pouco, mas sem perder a doçura. — Tenho outra coisa para compartilhar.
     

    Ele avançou, estendendo a mão. O gesto era um convite silencioso.
     

    Lyra hesitou apenas um instante antes de imitá-lo, tocando a ponta dos dedos na mão de Rin. No mesmo segundo, uma onda de energia atravessou seu corpo. Ela arqueou a cabeça para trás, sem dor, mas tomada por uma intensidade quase insuportável. Não era como receber informações… era como se um fragmento de algo vivo e vasto tivesse sido depositado dentro dela, impossível de traduzir em palavras humanas.
     

    Percebendo sua confusão, Rin explicou:
     

    — É uma chave, Lyra. Para algo que esteve perdido neste planeta por muito, muito tempo… e que agora começa a despertar. Não é nosso inimigo.
     

    — Não estou entendendo…
     

    — Isso vem de uma era anterior ao Império. Dormiu por incontáveis eras, mas o inimigo sobre o qual te alertei… está acordando-o. E nem sabe o que está fazendo.
     

    — Mas por que me dar isso?
     

    — Porque não sei se minha alma vai conseguir se recompor a tempo. Você precisa mais dessa chave do que eu. — A voz dele vacilou por um momento, como se a confissão lhe custasse algo. — Em breve serei levado para longe… vou deixar de ser um domador. Eles vão me transformar em um oráculo.
     

    Lyra se surpreendeu. Os Oráculos ocupavam o mais alto escalão dentro da igreja do Demiurgo, figuras raras e quase míticas, escolhidas para servir como voz e intérpretes de sua vontade. Eram eles que transmitiam suas palavras e ordens, como se cada sílaba viesse diretamente da divindade.
     

    — Como pode ter tanta certeza? — perguntou, ainda se recuperando da informação.
     

    — Porque aqui… a única coisa que posso fazer é ouvir.
     

    Por um instante, o silêncio pareceu engolir tudo. Então, Rin deu um passo para trás.
     

    — Agora volte, Lyra. É hora de voltar.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota