Capítulo 38: Uma nova missão
Raphael andava de um lado para o outro na ponte de sua nave. Algumas pessoas nomeavam elas, ele não. Sabia que era uma propriedade da igreja, um instrumento de seu trabalho.
Mantinha as mãos cruzadas atrás das costas, como se o movimento pudesse acelerar o tempo. Seus dois pilotos mantinham a nave em órbita estacionária, flutuando ao lado de um imenso reator de salto, uma estrutura colossal e cromada, de formato elíptico, cuja presença dominava o espaço ao redor. Era uma relíquia de eras passadas, resgatada das ruínas e restaurada à funcionalidade graças ao aether.
Ao lado do reator, pairava uma estação espacial gigantesca, maior que uma lua média. Dali se estendia o coração comercial e administrativo daquele setor, o ponto de controle imperial. Quase todos os braços do poder estavam representados ali: setores da Igreja do Demiurgo, delegações de legiões imperiais, agentes da guilda dos psíquicos e dos calculadores, todos reunidos sob a sombra daquele núcleo de autoridade.
Naves pequenas, como a de Raphael, não possuíam capacidade para viajar acima da velocidade da luz. Para atravessar os vastos domínios do Império, precisavam usar reatores como aquele. E, antes disso, era obrigatório receber autorização imperial para trocar de setor. Por isso, ele estava ali, preso na mesma órbita havia quase uma semana.
— Alguma novidade? — perguntou, com a impaciência filtrada na voz.
— Nada, excelência — respondeu um dos pilotos, sem tirar os olhos dos monitores. Ele quis acrescentar que avisaria no instante em que o status mudasse, mas achou mais prudente guardar silêncio. Conhecia bem o humor de Raphael.
O inquisidor desviou o olhar para um dos painéis que mostrava a área comum, onde Alina e Vida passavam o tempo. Vida parecia mais tranquila do que nos dias anteriores, sentada e concentrada em olear a espada que havia tomado da mulher em Terraria. Alina, por sua vez, não demonstrava incômodo algum pelo fato de a mais jovem ter ficado com o troféu. Apenas murmurara:
— Prefiro minhas adagas.
As duas conversavam pouco em público, alheias ao estresse que corroía Raphael. A indiferença delas o irritava.
Ele já havia remetido o relatório para seus superiores. A missão em Terraria rendera alguns achados, mas também um beco sem saída. Nenhuma pista concreta da seita. Interrogara alguns alvos, descobrira pouco de útil, apenas a existência das cápsulas de êxtase ligadas à 4ª Legião.
Ver o Tribuno Damocles, o atual líder dessa legião, seria uma oportunidade única. Mas Raphael sabia que dificilmente teria acesso direto a ele. Ainda assim, a ideia de voltar à Via Láctea, de pisar nos mundos onde o Império nascera, o atraía como um ímã.
O silêncio foi quebrado.
— Excelência — chamou o piloto. — Temos uma resposta. Uma chamada da arquidiocese.
— Estabeleça a ligação, ande logo.
— É encriptada, excelência. Selo oficial da Igreja.
— Mande para meus aposentos. Vou receber lá.
— Sim, senhor.
Raphael deixou a ponte de comando e seguiu pelos corredores até seus aposentos. Sentou-se à escrivaninha, ligou o terminal. Na tela, piscava o ícone do olho de aether, símbolo da Igreja.
Ele tocou o selo. A imagem de um homem de meia-idade surgiu, vestindo as roupas tradicionais de um bispo: túnica branca, chapéu cônico vermelho. Os olhos azuis e frios, marcados por décadas de caça a heresias, contrastavam com os cabelos totalmente brancos.
Uma voz grave encheu o ambiente:
— Inquisidor Raphael, que a paz do Demiurgo esteja convosco — disse o arcebispo, erguendo a mão para fazer o sinal dos três dedos.
— Arcebispo Connis, que o Demiurgo o acompanhe sempre — respondeu Raphael, retribuindo o gesto.
— Descobertas interessantes, inquisidor. Sinto que estamos fechando o cerco sobre a seita Yeh’Isus. A apreensão das cápsulas de êxtase levanta sérias dúvidas sobre a postura da Quarta Legião. Há tempos tentamos associá-los a comportamentos heréticos, e parte do Senado já se mostra receptiva à nossa narrativa… mas ainda carecemos de provas concretas para isolá-los de vez…
— Sinto hesitação em vossa voz, excelência — observou Raphael, estreitando os olhos.
Connis apoiou as mãos sobre a mesa, como se pesassem mais do que deveriam.
— Fui proibido de prosseguir nesse rumo de investigação… e surgiu outra questão, talvez ainda mais urgente.
— Como assim?
— Os Yeh’Isus não são fanáticos irracionais; não representam uma ameaça imediata. Acreditamos que temos algo mais premente.
Ele respirou fundo, como se as próximas palavras tivessem sabor de ferrugem.
— O inquisidor Jonas e a matriarca que o acompanhava foram assassinados em Tactur-2, um planeta fabril. Os corpos ainda estão lá, aguardando análise. Fica a dois dias de sua posição atual.
— Quer que eu assuma a investigação que ele conduzia?
— Sim, e também a apuração do assassinato. Essa morte… é mais importante agora do que pressionar a situação da Quarta Legião.
Connis tocou a tela, enviando o arquivo. Um discreto sinal verde acendeu no terminal de Raphael.
Raphael não veria a Via Láctea desta vez, nem poderia desfrutar da presença do tribuno Damocles, mas, iria com certeza aplicar mais um pouco da justiça imperial aos hereges, que nesses tempos, pareciam aparecer como baratas.
Quando Lyra abriu os olhos, a primeira coisa que percebeu foi que não estava em seu quarto no dormitório. O colchão sob ela era mais macio, convidativo demais. O teto, de um branco impecável, refletia a luz suave que vinha de algum ponto fora de seu campo de visão. O silêncio ali era estranho, quase absoluto, como se o mundo lá fora tivesse sido colocado em espera.
Levantou levemente a cabeça e confirmou: estava na enfermaria do hospital. A claridade a incomodava. A garganta estava seca.
Então a lembrança veio como uma onda súbita, esmagadora: a facada, a dor lancinante no braço, o sangue. Um gemido rouco escapou de sua garganta, como se não falasse há dias. Olhou para o braço, estava engessado. A coceira começou assim que registrou a imagem.
O som de uma cadeira arrastando-se veio de trás da cama. Ela se virou devagar e, ao ver quem estava ali, ficou surpresa.
— Tyla…
Tentou se mexer, mas um repuxo agudo no abdômen a fez enrijecer.
— Ai… — a voz saiu quase num sussurro.
— Não se mexa tanto, sua boba — disse Tyla, a voz misturando reprovação e alívio. — Está cheia de pontos. Você quase morreu. Vai acabar abrindo alguma coisa aí se insistir.
Lyra respirou fundo, tentando se recompor.
— Então… não fique só olhando. — Ela apontou para o painel ao lado. — Me ajuda a levantar o encosto.
Tyla soltou uma risada curta, carregada de alívio e felicidade, e se posicionou diante dela, mexendo nos controles. A parte superior da cama ergueu-se lentamente, até deixá-la sentada com algum conforto.
— Até agora não acredito no que você foi fazer — falou Tyla, o tom trazendo um lamento oculto. — Por quê? Foi por mim? Não devia ter se metido em encrenca por minha causa. Sabe como minha cabeça ficou esse tempo todo, esperando você acordar?
— Não fiz só por você — respondeu Lyra, firme. — Eu era o alvo. Você não tinha nada a ver com aquilo, mas entrou na mira dela por minha causa. Eu não podia deixar isso quieto.
Tyla desviou o olhar.
— Você está errada… meu problema com ela não é apenas por sua causa — murmurou, encarando Lyra novamente. — Minha mãe foi uma cortesã da Casa Sylaris. Éramos de uma Casa nobre menor, e eu estava destinada a seguir o mesmo caminho. Mas eu tinha um certo talento… boa tolerância ao aether. Era nossa chance de escapar.
Respirou fundo. As lágrimas começaram a escorrer.
— Mesmo assim, estavam me treinando para as artes da cama. Não é bonito dizer… Eu só consegui fugir disso me oferecendo como tributo. Foi o preço para tirar a mim e minha mãe do jugo deles.
Lyra manteve o olhar fixo na amiga. Entendia o que era estar à mercê dos Sylaris.
— Não tem motivo algum pra eu te julgar. O que fez, ou deixou de fazer, não me importa. Você foi a única que me acolheu quando cheguei. Só tenho a agradecer, por tudo.
Tyla soltou um suspiro carregado e se aproximou. Queria abraçar Lyra, mas temia machucá-la.
— Mesmo quando eu me recusei a falar com você? — hesitou. — Eu não queria, mas estava sendo chantageada. Descobriram onde minha mãe estava. Eu tinha um acordo com a Igreja… teoricamente, eles não podiam tocá-la. Mas eu tinha medo. Estava tentando resolver isso antes. Não achava que merecia ser sua amiga. Eles queriam que eu te sabotasse. Queriam ferir você por minhas mãos.
— Eu imaginei… — suspirou Lyra.
— Mas o que você fez pra eles te odiarem tanto?
— Aparentemente, estraguei os planos de uma herdeira folgada. Lady Aliah. — Um canto de sua boca se ergueu num sorriso irônico. — Quando a gente se conheceu, eu disse que você me lembrava dela, lembra?
Tyla levou a mão à boca, os olhos arregalados.
— Caramba… você mexeu com a realeza mesmo. Ouvi dizer que ela é… complicada.
— Complicada? — Lyra bufou. — Uma cobra sádica e traiçoeira, isso sim.
Tyla pareceu buscar outra direção para a conversa.
— Helena está na ala prisional. O careca que te esfaqueou também. Não sei quantos dias vão ficar lá.
— Enfim, uma boa notícia — riu Lyra.
— Saindo daqui, acho que você também vai passar uns dias presa — disse Tyla. — Não sei o que vai acontecer. Teve uma investigação, passaram o vídeo pra gente, eu testemunhei. Contei que te perseguiam, que foram atrás da minha mãe. Eles acabaram protegendo ela. O acordo de um tributo com o Império é coisa sagrada, aparentemente.
— Quer ver uma coisa legal?
— Mostra.
Tyla fechou os olhos por um instante. Partículas douradas começaram a emergir de seu peito, como brasas flutuando no ar, igual quando Zyab invocava seu Oculae. As faíscas se reuniram no chão, moldando uma silhueta. O brilho aumentou, e a forma se solidificou.
Uma pequena criatura peluda, de tom azulado, surgiu diante delas. Era uma mistura improvável de cachorro e pangolim, com seis patas e com escamas delicadas se mesclando ao pelo.
— Esse é um Canired — disse Tyla, sorrindo de leve. — Minha feraether inicial. E sim… agora entendo o porquê dos nomes.
Lyra manteve os olhos fixos na criatura, a mente distante. Quando falou, sua voz saiu quase num sussurro, carregada de inquietação:
— Há quanto tempo eu estou aqui?
Mais tarde, Aedena apareceu na enfermaria. O rosto carregava preocupação, mas ao ver Lyra acordada, abriu-se em um sorriso aliviado.
— Garota… teve muita sorte de conseguir me chamar mentalmente. Se eu tivesse me atrasado um único minuto… você estaria morta.
Lyra baixou a colher devagar, mantendo os olhos fixos nela.
— Foi estúpido o que eu fiz, não foi?
— Não cabe a mim dizer. — Aedena soltou um suspiro, inclinando-se para frente. — Foi imprudente, sim, mas você não tinha como prever que acabaria assim. Se eu tivesse insistido mais em treiná-la, talvez o desfecho fosse outro.
— Como assim? — Lyra arqueou uma sobrancelha, desconfiada.
— Digamos que… se tivesse aceitado aprender o que eu queria ensinar desde o início, teria conseguido se defender. Eles não teriam pego você desprevenida.
Lyra a mediu com o olhar, como se enxergasse a professora pela primeira vez.
— Está falando sério?
— Acha que eu brincaria com você nessa situação?
Ela baixou a cabeça.
— Desculpe… não quero nunca mais me sentir vulnerável assim. Quero que me ensine… tudo. Herético ou não, não me importo mais.
— Vai aprender — prometeu Aedena. — Mas agora, a prioridade é se recuperar.
Lyra hesitou.
— E o que vai acontecer agora? Perdi o dia de vinculação com a minha feraether inicial.
Aedena soltou uma risada curta.
— Garota tola… você ainda vai se vincular assim que receber alta. Mas…
— Mas… o quê?
— Não poderá escolher. Sobrou apenas uma opção.
— É muito ruim?
— Não. Para uma vinculação inicial, não é tão importante assim.
Lyra relaxou um pouco, mas logo retomou o tom preocupado.
— E quanto ao resto? Tyla disse que talvez eu fique presa… que posso perder o semestre.
— Isso já foi resolvido. Logan conversou com a Casa Sylaris e com Zyab. Ninguém vai prestar queixa contra ninguém. A Casa Sylaris vai deixar você e Tyla em paz, e você vai deixar eles em paz também. Eles ficaram assustados por você ter ferido a garota… e pela ameaça de prisão. Afinal, um voluntário ferir um tributo é uma afronta ao Império.
— E vai ficar tudo assim?
— Acredite, Lyra… é melhor assim.
Foram interrompidas pela chegada da enfermeira, que entrou carregando uma bandeja fumegante.
— Espere… eu posso comer? Eu fui praticamente estripada… — comentou Lyra, franzindo o nariz.
— Pode sim. — A enfermeira colocou a bandeja sobre a mesa lateral, sem perder a compostura. — Grande parte do seu estômago e do intestino foi substituída por próteses biológicas. O estrago foi considerável.
Lyra arqueou as sobrancelhas, a curiosidade vencendo o desconforto. Puxou a camisola e olhou para o próprio abdômen. Uma cicatriz em formato de “L” começava na lateral direita, logo acima do umbigo, e seguia até quase a base das costelas.
— Bem… — Aedena se afastou um passo. — Vou deixar você descansar.
Lyra franziu o cenho, como se tivesse acabado de se lembrar de algo importante.
— Espere… aconteceu uma coisa comigo enquanto eu estava apagada. Preciso contar pra você.
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