Kaleb, um dos secretários de Lady Aliah, aproximou-se em silêncio. Nas mãos, trazia uma grande caixa enfeitada com fitas douradas, pesada, sólida, fria. Ele sabia que presentes, às vezes, eram a única coisa capaz de acalmar o espírito da herdeira. E Deus sabia como ela estava desde ontem, desde a ligação recebida do Domatorum.

    Seu humor oscilava entre a ira e a crueldade pura: chicoteara pessoalmente uma serviçal apenas porque esta deixara um cálice vazio escorregar ao chão. A pobre mulher teria de dormir de bruços por mais de um mês, se sobrevivesse à infecção. Tinha proibido lhe dar remédios, o que foi feito às escondidas. Kaleb ainda ouvia os gritos ecoando em sua mente.
     

    O presente já havia passado por inspeção contra venenos e explosivos, mas ninguém ousara abri-lo. Quem arriscaria adivinhar a reação de Aliah? Ainda mais hoje.
     

    Ela estava na banheira de aprimoramento genético, mergulhada em água negra enriquecida com aether, o líquido pulsando como se respirasse. A superfície ondulava e se iluminava em reflexos azulados que projetavam sombras trêmulas nas paredes. Mesmo assim, sua expressão era de pedra, hostil, como se o mundo inteiro estivesse em dívida com ela.
     

    — Herdeira… — Kaleb quebrou o silêncio com cuidado cirúrgico. — Perdoe a interrupção, mas chegou um presente. Direto do Palácio de seu pai.
     

    Ela se ergueu da água em um movimento lento, predatório, expondo seu corpo escultural como uma estátua esculpida em carne. Gotas escuras desciam por sua pele. Kaleb, disciplinado, manteve os olhos na caixa. Já vira homens terem de arrancar os próprios olhos por olharem no momento errado, e outros serem levados à cama dela, por olharem da forma certa. Ele não ousaria apostar em qual humor a guiava agora, preferia sua segurança à qualquer luxúria.
     

    — Entregue logo.
     

    Ele lhe passou a caixa.
     

    Aliah a apoiou em uma mesa e abriu o presente com uma calma disciplinada. Kaleb observou seu rosto, tentando decifrar a mudança sutil em sua expressão. Queria saber se o presente seria bom ou ruim. A maneira como os olhos dela se endureceram foi como um prenúncio. Ele só torcia que sua fúria não caísse sobre ele.
     

    — Maldito Syan! — ela exclamou.
     

    De dentro da caixa, retirou uma cabeça pelos cabelos. Era de um jovem de traços belos, quase andróginos, agora deformados pela morte. Henry.

    A pele pálida denunciava o exanguinamento: drenaram cada gota para que o presente não apodrecesse. A língua pendia grotesca para fora, e os olhos semicerrados, ainda úmidos, pareciam acusar o mundo. O cheiro metálico e estranho de sangue escapou em uma onda densa, impregnando o ar como um incenso fúnebre.
     

    — Ah… — expirou com um sorriso enviesado. — Pelo menos cumpriu seu objetivo principal. Nenhum espião dura para sempre.
     

    Num gesto brusco, Aliah lançou a cabeça a Kaleb. Ele a agarrou por reflexo, e imediatamente se arrependeu. O peso frio e morto, a textura pegajosa do couro cabeludo roçando contra a pele de suas mãos, quase o fizeram vacilar. Os cabelos encharcados grudaram em seus dedos como algas retiradas de um pântano. Um tremor percorreu seu braço, mas se forçou a manter a compostura.
     

    Aliah o observava com um brilho de diversão cruel nos olhos, como quem aprecia o desconforto de um animal preso em armadilha.
     

    O silêncio ficou pesado, quase sólido. O secretário não respondeu. Apenas segurou o troféu macabro, tentando ignorar a umidade fria que escorria entre seus dedos.
     

    Ela retirou da caixa um bilhete escrito em caligrafia refinada. Kaleb não conseguiu ler, mas pôde ouvir o murmúrio raivoso que escapou dos lábios da herdeira.
     

    — Maldito Syan… ainda ousa dizer que minhas intrigas são jogos de criança… Maldito!
     

    O papel foi jogado de volta dentro da caixa. Então, para o espanto de Kaleb, os lábios dela se curvaram num sorriso lento, quase sensual.
     

    — Livre-se disso tudo, sim? — disse, como se tivesse acabado de se livrar de um fardo.
     

    Virou-se e caminhou nua pela sala, desfilando sua arrogância natural. A água ainda escorria de seu corpo, deixando um rastro irregular no piso.
     

    — Preciso de uma boa equipe de infiltração e ataque… onde encontrar uma… — murmurou, quase para si mesma, até desaparecer da vista do secretário.
     

    Kaleb permaneceu ali, imóvel, segurando a cabeça gelada nas mãos. Pela primeira vez, desejou profundamente que tivesse falhado em pegá-la no ar.
     



     

    Bem distante dali, em Tactur-2, Raphael tinha acordado cedo, como de costume. O corpo já não pedia sono, apenas disciplina. Segurava uma caneca de café recém coado na pequena copa da delegacia local, o líquido escuro, forte demais e amargo na medida certa.
     

    Tinha passado a noite num hotel de reputação duvidosa, a poucas quadras dali. Quarto estreito, lençóis ásperos e barulho constante de encanamento velho, nada que o incomodasse de verdade, já estava acostumado a dormir em piores condições.
     

    A porta rangeu e Kelsi entrou apressado, quase trombando no inquisidor. O cheiro de nicotina impregnava suas roupas.
     

    — Desculpe, excelência… não esperava que chegasse tão cedo. Onde estão suas acompanhantes?
     

    Raphael apenas fez um gesto com a mão, pedindo calma.
     

    — Não tenho o hábito de ficar na cama, detetive. Principalmente quando temos um caso importante — disse Raphael, num tom calmo, mas impregnado de uma condescendência que fez Kelsi encolher os ombros, como se tivesse sido reduzida a uma recruta inexperiente.
     

    — As Matriarcas ainda descansam — continuou. — Vida está cuidando de Alina. Aparentemente, ela despertou… mas não está em condições de se mover ainda.
     

    O comentário pairou no ar como um aviso: a fragilidade de uma Matriarca não era algo que se tornava público facilmente. Kelsi assentiu em silêncio, estremecendo com a lembrança do dia anterior, a emboscada, e principalmente a visão da cobra metálica. Suor frio lhe escorreu pela nuca.
     

    — O pessoal da área técnica passou a noite com aquela coisa — murmurou.
     

    Raphael assentiu, com a naturalidade de quem parecia mais à vontade naquele ambiente do que o próprio detetive.
     

    — Fui informado quando cheguei. Seu time virou a madrugada tentando desmontar e entender aquilo.
     

    Kelsi pigarreou, sem esconder o cansaço.
     

    — Pena que a legista não tenha encontrado muito, não é?
     

    Raphael apoiou a xícara na mesa, olhando-o com olhos que misturavam paciência e ameaça.
     

    — Pelo contrário. Mesmo sem querer, revelou muito. A sabotagem incluída no Oculae era altamente específica. Poder desse nível é raro… já informei meus superiores. Eles certamente estão rastreando que tipo de gente é capaz de fazer uma coisa como aquela.
     

    Fez uma pausa.
     

    — Quanto ao inquisidor Jonas… seu corpo não apresentava lesões externas. A causa mortis estava dentro do crânio. A amostra abaixo de suas unhas trazia uma pele sintética. Altamente sofisticada, o que ajuda reduzir a busca.
     

    Kelsi empalideceu ao lembrar-se da cena, do cheiro. A legista retirando o tampo do crânio, e o cérebro… reduzido a uma massa escorrida, como se tivesse sido liquefeito por dentro. Engoliu seco.
     

    Raphael, impassível:
     

    — Novamente, parece que não é nada. Mas, na verdade, é um tipo de lesão extremamente particular. Eu só conheço duas maneiras de conseguir isso. E ambas exigem psíquicos de alto calibre.
     

    Kelsi o encarou, confuso.
     

    — Sim — Raphael sustentou o olhar, a voz firme, sem pressa. — Não estamos lidando apenas com hereges lunáticos. É uma seita organizada, bem armada, com influência e recursos, são inteligentes. Subestimar isso seria um erro fatal.
     

    Antes que Kelsi pudesse reagir, o tablet no pulso do inquisidor vibrou. Uma chamada. Raphael olhou para a tela e tirou do bolso um pequeno plugue auricular.
     

    — Bom ouvir sua voz, Matriarca. Que as bênçãos do Demiurgo a acompanhem.
     

    A resposta de Alina veio fraca, a respiração marcada:
     

    — Que o acompanhe também.
     

    — Estou à sua disposição, Altíssima.
     

    — É sobre o que estava guardado no Oculae. Se eles se arriscaram a montar uma armadilha dessas… a informação deve ser importante.
     

    Raphael franziu o cenho.
     

    — Pensei que fosse apenas o ataque mental.
     

    — Não. Eles tentaram suprimir as imagens. Quando não conseguiram, deixaram o “presente”. O ataque tinha uma assinatura psíquica. Quando eu cruzar novamente com essa mente, saberei reconhecê-la.
     

    — Pelo menos você conseguiu se proteger.
     

    — Agradeço sua preocupação, agora anote, inquisidor. “Mandu Transportes Planetários”. É por essa empresa que eles estão traficando tecnologia e peças. Essa é a chave que tentaram ocultar.
     

    Raphael apanhou um bloco de anotações esquecido em cima da pia e escreveu com firmeza, destacando a folha.
     

    — Entendido, Matriarca. Trabalharemos nisso imediatamente.
     

    Guardou o plugue e voltou-se para Kelsi, que estava atento à conversa.
     

    — Finalmente algo para você — disse, entregando o papel. — Descubra tudo o que puder sobre essa empresa.
     

    Kelsi assentiu, engolindo a ansiedade, e saiu com pressa.
     

    Raphael largou a xícara na pia com um som seco, ajeitou a gola do casaco e já se dirigia à porta quando foi interrompido. Um homem de óculos, jaleco branco amarrotado, surgiu na soleira com pressa contida.

    — Senhor… terminamos com a serpente metálica. Se quiser me acompanhar.
     

    O laboratório da polícia parecia mais um mausoléu de vidro e aço. No centro, dentro de um cubo de plaxiglass, repousavam as duas metades da criatura. Braços mecânicos a manipulavam com precisão cirúrgica, enquanto telas ao redor despejavam linhas de código e gráficos incompreensíveis para olhos leigos.
     

    Um calculador aguardava ao lado. A luz azulada dos monitores refletia em seus olhos fundos, deixando-o com a expressão ainda mais tensa.
     

    — Então? — perguntou Raphael, voz grave. — O que tem para mim?
     

    Foi o calculador quem respondeu, quase com reverência:

    — Esta serpente é uma obra soberba. A engenharia dos servo motores… genial. Não existe nada disponível no mercado negro que se compare. Cada peça foi desenhada e montada individualmente. É… fascinante.
     

    Raphael arqueou uma sobrancelha.
     

    — Fascinante? Me parece que você admira o artesão por trás disso.
     

    O calculador engoliu em seco.
     

    — Eu… posso admirar a técnica sem compactuar com os motivos e credos.
     

    — Isso me cheira a heresia.
     

    O silêncio pesou. Então o calculador prosseguiu:

    — Ela operava de forma autônoma. Nenhum controle remoto, nenhum transmissor. Decidia sozinha. Os códigos que recuperei indicam: assim que o abdômen fosse violado, o protocolo de matança seria ativado. Qualquer ser biológico se tornaria alvo.
     

    Raphael cerrou os punhos.

    — Inteligência artificial… heresia das mais graves.
     

    — Há mais. — O homem apontou para uma das lâminas expostas. — Monofilamento. Tecnologia proscrita. Capaz de cortar tecido e aço como papel.
     

    Raphael ergueu o rosto lentamente, os olhos estreitando-se. Seu cérebro fervilhava, conectando pontos invisíveis. Heresia. Autonomia. Tecnologia avançada. Monofilamento. Era como se alguém cuspisse na face do Império e da Igreja ao mesmo tempo.
     

    — Onde alguém conseguiria montar isso? — perguntou, quase em desafio. — Algum laboratório clandestino teria meios?
     

    — Improvável. Cada chip foi forjado sob medida. Programação exclusiva. Seria necessário um complexo, com infraestrutura de nível militar. Não é algo que se ergue num porão qualquer.
     

    Raphael tamborilou no vidro. O som oco ecoou pela sala, como uma sentença.

    — Faça uma lista dos equipamentos necessários para montar um laboratório desses. Vamos cruzar com registros de compra e venda. Se existe um caminho de identificar essas pessoas, vamos encontrá-las.
     

    Os homens assentiram.
     

    Raphael deixou o laboratório com uma sensação ácida no estômago. Aquilo não era apenas um inimigo oculto.

    Era uma afronta aberta.

    No que, em nome do Demiurgo, ele havia esbarrado.
     

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