Em um quarto de hotel de Tactur-2, Raphael terminara de enxugar os cabelos. Ainda nu, pegou a pasta que Kelsi lhe entregara e se sentou na beira da cama. Antes de abri-la, inalou uma dose de aether, não apenas para aliviar a pressão do vício, mas também para clarear a mente. Sentia-se quase grato por sua tolerância nunca ter sido tão alta; bastava pouco para que o efeito lhe trouxesse foco. Conhecia outros menos afortunados, pessoas cuja sanidade havia escorrido com os anos de abuso, até restarem apenas sombras de si mesmas, alucinando em delírios permanentes.
     

    A pasta vinha dentro de um envelope plástico, com o brasão da polícia local carimbado no canto. No interior, um calhamaço de relatórios e anexos sobre a empresa “Mandu Transportes Planetários”: fichas de sócios, balanços anuais, registros de galpões, últimos contratos firmados, listas de funcionários e uma infinidade de detalhes burocráticos. Processar cada linha seria o primeiro passo de uma longa investigação.
     

    — Alina é a pessoa certa para me ajudar com isso — murmurou, mais para si do que para o quarto silencioso.
     

    Vestiu às pressas uma calça escura e uma camiseta simples, depois atravessou o curto corredor e bateu na porta que separava os quartos.

    Após alguns instantes, foi Vida quem abriu. Um aroma doce e entorpecente de aether escapou dali e invadiu suas narinas. Raphael ergueu a pasta como explicação.
     

    — Alina está bem? — perguntou em voz baixa. — Preciso da opinião dela sobre uma coisa.
     

    Vida recuou, abrindo espaço. Raphael entrou. Alina estava deitada na cama, ainda com a armadura completa e a máscara ajustada ao rosto. Apenas o véu azul, símbolo da sua posição entre as Matriarcas, repousava dobrado sobre a cabeceira.
     

    Ela se ergueu com calma e perguntou:

    — O que posso fazer por vossa excelência?
     

    — Tenho as informações sobre a empresa que você visualizou no Oculae. Quero analisá-las ao seu lado. Sua mente é precisa, afiada… e confio no seu julgamento.
     

    Alina meneou a cabeça em anuência e se dirigiu até a pequena mesa do quarto. Fez um gesto discreto, convidando Raphael a sentar-se ao seu lado.
     

    Ele lhe entregou a pasta. Em silêncio, Alina começou a separar os documentos em pilhas distintas, cada categoria surgindo com a naturalidade de alguém acostumado a lidar com padrões ocultos.
     

    Vida observava os dois em silêncio, atenta a cada movimento, mas sem interferir. Sentou-se na beira da cama, pernas cruzadas, como quem prefere ficar à margem, embora seus olhos não desgrudassem da dupla.
     

    O zumbido do tablet que carregava quebrou o silêncio. Uma chamada de Kelsi. Raphael atendeu; a tela se encheu com o rosto do homem, o bigode manchado tremendo quando ele falava.
     

    — Senhor inquisidor… mais um assassinato, provavelmente ligado ao nosso caso. Donavan Cruz. Encontrado morto em sua própria casa.
     

    Raphael baixou os olhos para a ficha à sua frente. O nome estava ali, sublinhado. Um dos três sócios da Mandu Transportes.
     

    Seu maxilar se contraiu.

    — Envie um transporte para mim, imediatamente. Vou atrás de Hélio Grandi. Você reúna reforços e proteja Carlos Eldo, o terceiro sócio. — A voz dele estava firme, mas carregada de tensão. — Se minha intuição estiver certa, estamos diante de uma queima de arquivo.
     

    — Sim, senhor. — respondeu Kelsi antes de a tela se apagar.
     

    Raphael levantou-se de súbito, Vida e Alina, como se tivessem previsto, já estavam prontas: a novata com a postura determinada, e Alina, com a armadura reluzindo sob a luz artificial do quarto.
     

    Ele respirou fundo, sentindo o peso da decisão.

    — Vou pegar minhas armas e vamos.
     



     

    A extensão da destruição do Domatorum assustava Lyra e seus amigos. No dia seguinte, eles caminhavam por ali, assim como tantos outros alunos, movidos por uma curiosidade mórbida que os fazia revisitar o cenário da tragédia. Os prédios estavam semi-destruídos, o gramado em estado deplorável, coberto de marcas e crateras. Entre os escombros, manchas secas de sangue manchavam a terra, lembrando cruelmente os colegas que tinham sido mortos pela feraether enlouquecida. O ginásio e o laboratório permaneciam interditados, isolados por fitas de investigação.
     

    Tyla apertava o braço de Lyra, tentando conter um soluço. Calder, que não estivera presente durante o massacre, tremia diante daquilo, como se só agora compreendesse a real dimensão do que significava estar em um lugar como aquele.
     

    — Imagine uma frente de batalha com várias dessas feras… — murmurou Russel, a voz grave, carregada de um peso sombrio. — Agora pense em nossos inimigos… eles enfrentam criaturas assim há milênios, sem nunca esmorecer.
     

    Um arrepio percorreu a espinha de Lyra. As palavras dele soaram quase proféticas. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, todos seriam obrigados a encarar esse destino.

    Naquela tarde haveria um funeral coletivo. Uma semana inteira de luto seria decretada, um gesto simbólico, mas sem precedentes. Era o maior desastre já registrado dentro do Domatorum: trinta e cinco mortos, dezoito feridos. Até mesmo Logan havia se machucado no esforço de derrotar o monstro. E agora seria ele quem presidiria o memorial, diante de todos.
     

    O tablet de Lyra vibrou em suas mãos, interrompendo os pensamentos.
     

    “Estou disponível agora. Não podemos esperar mais. O tempo está contra nós. Espero você na minha sala. Aedena.”
     

    A garota hesitou, lançou um olhar rápido para os amigos e pigarreou.
     

    — Preciso ir. Tenho um compromisso…
     

    — As aulas estão suspensas — retrucou Russel, franzindo a testa. — Onde você vai?

    — Deixa ela… — murmurou Kara com um sorrisinho enviesado. — Lyra e seus segredos… Ah, não esquece que Imara está com Tyler no nosso quarto. Melhor não atrapalhar.
     

    Lyra corou imediatamente com o lembrete. Com aquela diferença de tamanho, como faziam aquilo? A pergunta lhe atravessou a mente por um instante, mas ela logo a afastou. Suspirou, despediu-se e, acelerando os passos, seguiu em direção ao prédio onde Aedena dava suas aulas.
     

    Em poucos minutos, entrou no anfiteatro da professora. Lyra estacou, surpresa. Aedena a aguardava vestida com um collant justo, que delineava o corpo atlético. A garota não lembrava, ou talvez nunca tivesse reparado, o quanto ela parecia em forma, músculos bem definidos, curvas firmes, como se tivesse sido esculpida à mão. Meu genitor tinha bom gosto… pensou, deixando escapar um sorriso tímido.
     

    Aedena correspondeu com um sorriso sereno e digitou algo em seu tablet. A porta se fechou com um estalo mecânico, o vidro tornando-se leitoso, ocultando o interior da sala de qualquer olhar.

    — Bem-vinda, Lyra. Espero que ainda esteja fiel à sua decisão… Não se preocupe, nada do que acontecer aqui sairá dessas paredes. Já garanti isso.
     

    — Decisão? — perguntou Lyra, sem esconder a insegurança.
     

    — Sobre querer aprender de verdade. Para nunca mais ser surpreendida. Para nunca mais ser vítima.
     

    — Ah… — disse Lyra, lembrando-se das conversas no hospital. A raiva por Helena, pelos Sylaris… por tudo que tinha sofrido. — Sim, professora… digo, Aedena. Sim, eu quero aprender o que tiver a me ensinar. Seja herético ou não.
     

    — Muito bem. — Aedena avançou em sua direção, os passos firmes.
     

    — Você tinha dito algo sobre um juramento… de sangue?

    Aedena riu alto.
     

    — É apenas um modo de dizer, pequena. Não é como se eu fosse te iniciar em uma seita. — Mas, por trás do riso, havia um peso em suas palavras, algo que fazia a espinha de Lyra se arrepiar. Havia verdade por trás da brincadeira.
     

    — Mas sim, teremos um juramento. Solene. Obrigatório. Algo que nos vinculará. Você como minha aprendiz, e eu como sua mestra. Uma ligação em alma e propósito.
     

    Do nada, Aedena retirou uma adaga negra de algum lugar nas costas. Lyra prendeu o fôlego: não havia onde aquela arma pudesse estar escondida.
     

    — Não preciso dizer que tudo o que for dito aqui é segredo absoluto, não é? — a voz da professora soava mortalmente séria.
     

    Lyra teve a impressão visceral de que, se respondesse com leviandade, Aedena a mataria sem hesitar. Podia jurar que aquela mulher já tinha uma longa cota de corpos em seu rastro. Talvez maior que Zyab. Talvez até maior que Logan. O olhar dela era o de um predador. As pernas de Lyra se recusavam a obedecer.
     

    — Sim, mestra. Eu sei.
     

    Os olhos de Aedena suavizaram, voltando a um brilho quase maternal. A presença da professora pareceu voltar para dentro de seu próprio corpo.
     

    — Bom. Vamos começar, então. Você confia em mim?
     

    — Claro — respondeu Lyra, a voz trêmula, mas firme.
     

    — Então me obedeça, sem questionar. Pelo menos por enquanto.
     

    Lyra assentiu.
     

    Aedena tomou delicadamente o queixo de Lyra, estudando cada traço com ternura. As sobrancelhas grossas, que emolduravam o olhar sensível escondido em olhos escuros, o rosto comum e ainda assim belo, os lábios pálidos porém cheios, e as sardas douradas que salpicavam a pele. Pediu então que a garota abrisse a boca e mostrasse a língua.
     

    Com um gesto preciso, deslizou a adaga e fez um corte sutil. A ardência veio de imediato, e o gosto metálico do sangue espalhou-se pela boca. A lâmina era tão afiada que um único descuido poderia tê-la decepado inteira.

    Em seguida, Aedena cortou a própria língua. Aproximou-se. Muito perto. Lyra sentiu sua respiração quente.
     

    As mãos da mestra buscaram sua cabeça, firmes, conduzindo-a, e então veio o beijo. Profundo. Inesperado. Primeiro sereno, terno, mas logo cresceu em intensidade, até se tornar avassalador. Lyra sentiu a invasão súbita, a mente sendo penetrada pela presença de Aedena, íntima a ponto de rasgar qualquer barreira. Resistir tornou-se inútil. Sem perceber, retribuiu, se entregando.
     

    Por um instante, deixaram de ser duas. Corpos unidos, espíritos entrelaçados, a consciência dissolvida no fluxo astral que as cercava. Involuntariamente, as mãos de Lyra percorreram as costas da mestra, buscando um maior conforto dentro daquele abraço que mais parecia um refúgio. Parecia certo.
     

    A voz da mestra soou dentro de sua mente:
     

    “Diga quem eu sou…”
     

    A resposta surgiu de imediato, embora Lyra jamais a tivesse ouvido.
     

    — Cor cogitans… — murmurou, entre respirações entrecortadas e os lábios de Aedena.
     

    “Diga quem você é…”
     

    Outra resposta brotou, inevitável:
     

    — Cor pungens… — outro murmúrio.
     

    Naquele instante, algo a arrebatou, um mergulho absoluto em pertencimento. Não apenas à professora, mas ao próprio universo. Eram uma só essência refletida no todo.
     

    Aedena rompeu o beijo e se afastou.
     

    Lyra ofegava, trêmula, as pernas moles, mal conseguindo sustentar o próprio corpo. O gosto metálico ainda queimava em sua língua, misturado à saliva que escorria, borrando seu queixo. No rosto de ambas havia vestígios, saliva e sangue, uma marca crua da intimidade violenta que haviam partilhado.
     

    A ligação se despedaçava, mas não se desfazia por completo. Vibrava em seu íntimo como um eco eterno, um sussurro gravado na carne e na alma, impossível de silenciar.
     

    — Não podemos partilhar tanto, pequena. Não quero impor esse fardo a você.
     

    Lyra não compreendeu totalmente, mas sentiu. No fundo, sabia que, se Aedena quisesse, teria tomado sua alma para sempre. E que, de alguma forma, escolhera poupá-la.
     

    — Agora sim — disse a professora, com solenidade. — Eu nunca poderei trair você. E você nunca poderá me trair. O universo nos reconhece. Mestra e discípula. Vamos começar.

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