Capítulo 219 - Investida
[Tokyo — Distrito de Gondon | 03h27 da madrugada]
As ruas dormem, mas a miséria nunca repousa.
Entre becos cobertos de pichações, garrafas vazias e sombras do abandono estatal, a vida ainda pulsa — errática, fria e hostil. É ali que Eli Jang acende mais um cigarro enquanto observa a chuva fina transformando as poças em espelhos de um mundo torto.
— Não devíamos ter voltado aqui… — resmungou Kai, um dos sete que estavam encostados com ele sob a marquise do velho galpão da antiga metalúrgica Yatsuda.
— E ir pra onde? Dormir nas escadarias da linha 3? — respondeu Mayu, franzina e sardônica, com os olhos vermelhos de cansaço. Ela usava um casaco masculino grande demais, presente de Eli, e suas mãos estavam sempre frias.
Eli tragou fundo, os cabelos negros colados na testa pela umidade, e então disse:
— Se esse lugar ainda não desabou, é porque a gente carrega ele nas costas.
Houve silêncio. Um silêncio carregado. De fome. De raiva. De impotência.
[Eli Jang — 17 anos | Líder da Gangue de Gondon | Status: Procurado por pequenos furtos, desaparecido dos cadastros escolares há 2 anos]
Nascido e criado no coração apodrecido de Gondon, Eli era um paradoxo vivo. Tinha a beleza serena de um ídolo de revista — pele clara, olhos grandes e puxados, cabelos lisos e bagunçados, rosto angular. Mas sua vida era lama. Lama e vidro quebrado.
Com ele estavam:
Kai Tanaka (18) – o mais velho e protetor, já preso duas vezes.
Mayu (16) – geniosa, sempre com a navalha escondida na manga.
Daisuke (15) – calado, especialista em destrancar portas.
Renji (16) – hacker amador, vive roubando Wi-Fi dos vizinhos.
Shu (14) – pequeno, frágil, mas com uma mira precisa.
Naoko (17) – apaixonada por Eli, mas nunca admitiu.
Kuro (13) – o mais novo, órfão, abandonado por todos… menos por eles.
Todos viviam juntos, como uma família disfuncional unida pela dor.
[Dentro do galpão — Quarto improvisado da Gangue]
O local era escuro, cheirava a ferrugem e poeira, mas lá dentro havia vida. Um sofá rasgado, colchões jogados no chão, restos de um fogão portátil. Kuro dormia encolhido no colo de Naoko. Shu fazia desenhos na parede com carvão. Daisuke desmontava um alarme de carro. A televisão de tubo — que só pegava um canal — fazia barulho de fundo.
Eli permaneceu de pé, com os olhos distantes.
— Amanhã vamos ter que invadir o depósito da Yakomi. Tem suprimento lá — disse Kai.
— Perigoso demais — rebateu Renji. — Charles movimenta coisa por lá. Pode ter gente dele.
O nome pairou no ar: Charles.
Charles Choi. O rei das sombras de Tokyo. Sua influência crescia como um câncer, infiltrada nos becos, nos negócios, nas máfias menores. Ele não precisava sujar as mãos — bastava acenar com uma promessa, e os desesperados se ajoelhavam.
— Se for de Charles, então a gente vai com mais razão — disse Eli com os olhos queimando. — Ele controla esse mundo com um sorriso. Mas não é porque ele finge que é justo que a gente vai fingir que tem medo.
— Você ainda não entendeu, Eli? — Naoko disse, com a voz embargada. — Ele sabe quem você é. Charles não esquece rosto. Se você cutucar ele… você tá assinando nosso atestado de óbito.
Eli se aproximou, abaixou-se na altura dela, olhou dentro dos olhos tristes e insistentes:
— Eu não vou morrer antes de ver um de vocês comendo uma refeição quente em uma casa de verdade.
— Mas a que custo, Eli?! — Mayu explodiu. — A gente perdeu a Miwa naquela merda de golpe no metrô! Ela tinha só 12 anos! E ninguém nem chorou… porque a gente nem sabe mais como é chorar!
O silêncio voltou. Dessa vez, com mais peso.
Eli apertou os punhos. Sua voz baixou:
— É por isso que a gente não para.
[Tokyo Central — Residência Oculta de Charles | 04h02]
Num apartamento sofisticado, com vista para o mar negro da madrugada, Charles observava relatórios numa tela holográfica. Vestia um robe de seda. Um cálice de vinho descansava em sua mão esquerda.
— Senhor Charles, detectamos movimentações da Gangue de Gondon nas redondezas do galpão Yatsuda. Parece que estão planejando invadir o depósito Yakomi. — disse Deren, seu assessor direto.
Charles sorriu. Lento. Preciso.
— Deixem.
— Como assim, senhor?
— Eles são ratos famintos. Ratos famintos são imprevisíveis. Quero ver até onde eles vão sem uma isca. Depois disso… vamos oferecer a isca certa. E faremos deles soldados. Ou cadáveres.
Seus olhos brilharam num tom quase demoníaco.
— E sobre Eli Jang… — Deren hesitou.
— Ele é especial. Lindo demais para morrer jovem. Perigoso demais para não me pertencer. Mantenha ele vivo. Por enquanto.
[Volta ao Galpão — 06h00 da manhã]
Eli e Kai estavam no topo do galpão, observando a cidade acordar.
— Já decidiu? — Kai perguntou.
— Sim. Hoje à noite, vamos entrar na Yakomi.
— E se não voltarmos?
— Então… que o mundo saiba que estivemos aqui.
Kai sorriu.
— Você é mesmo doido.
— E você é burro de me seguir.
Ambos riram. A primeira risada sincera em dias.
[ Entrada da Yakomi | 23h49]
Todos estavam de preto. Máscaras. Mochilas. Corações disparados.
— Hora de fazer história — Eli sussurrou.
— Ou morrer tentando — Mayu completou, segurando sua navalha.
Eles correram.
A câmera imaginária foca no portão sendo aberto. No céu encoberto por nuvens escuras. E em uma silhueta ao longe, num prédio, observando tudo com binóculos. Era um dos homens de Charles. Sorrindo.
….
O portão enferrujado se abriu com um rangido que pareceu um grito preso no tempo. Os sete atravessaram o vão como sombras líquidas, deslizando entre containers e maquinários desativados. Cada passo ecoava entre os galpões metálicos, carregando tensão, fome e coragem juvenil.
— Daisuke, o alarme. — Eli sussurrou.
O garoto se aproximou do painel lateral do galpão. Um sistema simples, mas ainda em funcionamento. Ele tirou uma pequena caixa de ferramentas de um bolso costurado no interior da jaqueta, conectou dois fios improvisados e…
— …desligado. — murmurou, com um leve sorriso.
[Dentro do galpão principal]
A escuridão era quebrada por pequenas lanternas de dedo. Havia estantes enormes com caixas de mantimentos industriais, engradados de bebidas, sacos de arroz, cobertores lacrados e itens de higiene.
Kai abriu a mochila.
— Um mês de comida aqui, no mínimo. — disse.
— Pega só o necessário. Se a gente voltar, pegamos mais. — Eli falou com autoridade calma. Era uma ordem disfarçada de conselho.
Naoko ajudava Kuro a empilhar pacotes de leite em pó enquanto Mayu ficava de vigia.
— Vocês ouviram isso? — sussurrou ela, erguendo a mão.
Todos pararam.
Um ruído metálico. Depois, passos. Vários.
— Escondam-se. AGORA! — gritou Eli.
Todos se espalharam. Mayu e Shu subiram em prateleiras. Kai e Daisuke se esconderam atrás de engradados. Naoko e Kuro entraram numa caixa vazia. Eli se esgueirou para trás de uma empilhadeira quebrada.
Três homens armados, com uniformes escuros e insígnias desconhecidas, entraram no galpão. Um deles falava ao rádio:
— Temos sinais de arrombamento no perímetro seis. Investigando agora. Provavelmente é só rato de rua…
Eli apertou os dentes. “Rato de rua”. Aquilo o corroía por dentro. Não porque era mentira. Mas porque era o nome que o mundo dava para eles… e parecia justo demais.
Os guardas vasculhavam. Um deles chegou perto da empilhadeira. Parou. Encostou o fuzil. Acendeu um cigarro. E então, olhou por cima.
Os olhos se encontraram.
Eli agiu antes da dúvida. Com um chute no joelho do homem e um soco direto no nariz, o guarda caiu. O som alertou os outros dois. Gritos. Tiros.
— CORRAM! — Eli berrou.
Kai derrubou prateleiras para bloquear a passagem. Renji soltou um curto-circuito nos painéis. Uma pequena explosão jogou faíscas no ar. Kuro gritava. Shu lançou um canivete com precisão e cortou a mão de um dos homens.
A correria foi frenética. Quase coreografada.
Mas Mayu hesitou. Quando correu, foi tarde demais. Uma bala atingiu sua perna. Ela caiu.
— MAYU! — gritou Naoko.
— Vai! VÃO! — ela berrou com raiva e dor.
Eli voltou, puxou-a nos braços. O grupo recuou por um buraco lateral da parede, escalando entre ferragens até alcançar o esgoto canalizado que passava nos fundos.
[Subterrâneo — 00h47]
A água suja batia na canela. Eli carregava Mayu nas costas. Kai ajudava Kuro, que soluçava. O grupo seguiu sem parar, correndo pelas sombras úmidas até emergirem quase três quilômetros depois, perto de um cemitério abandonado.
[Velho Cemitério Hachikawa — 01h20]
Deitados no chão frio, respirando com dificuldade, todos estavam vivos. Feridos. Sujos. Mas vivos.
Mayu gemia de dor, o sangue escorria pela perna.
— Vai perder a perna? — Kuro perguntou, em pânico.
— Eu perco a alma, mas essa perna fica. — Mayu respondeu, tentando sorrir entre dentes cerrados.
Eli lavou as mãos no riacho escuro próximo, olhou para o céu e viu que ainda não havia estrelas. Era como se o próprio mundo tivesse desistido de observar Gondon.
— Isso foi só o começo. — disse, mais para si mesmo do que para os outros.
[Apartamento de Charles — 02h03]
— O grupo escapou. — Deren disse.
Charles estava sorrindo.
— Excelente. Teste concluído. Agora sabemos do que são feitos.
— E… a garota ferida?
— Mande um médico. Anônimo. Com remédio e um aviso: “O mundo não precisa de heróis, só de quem saiba sobreviver.”
Deren hesitou.
— Estamos realmente apostando fichas neles?
Charles girou o anel no dedo. Seu olhar era vazio e analítico.
— Ratos famintos mordem forte quando não têm mais para onde correr. Quero ver até onde o instinto leva Eli Jang… antes que ele descubra que eu sou o único caminho de saída.
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