Capítulo 221 - Passado de Gandon
[Seis anos antes — Tokyo, Distrito de Gondon | 07h12 da manhã]
O céu estava cinza. Não chovia, mas o ar carregava umidade de luto. Um dia que já acorda morto.
Eli Jang, aos 11 anos, saía de casa com os olhos fundos e as mãos enfiadas nos bolsos do uniforme escolar, que já estava pequeno e manchado de barro. Seu tênis tinha um buraco, a meia esquerda era de um par diferente, e seu rosto, mesmo jovem, parecia não carregar nenhuma expectativa.
Ouvia-se uma briga vindo de dentro da casa.
— EU FALEI PRA VOCÊ NÃO ROUBAR DO VELHO DO MERCADO!
— ERA ISSO OU PASSAR FOME, MÃE!
— ENTÃO PASSA FOME, MERDA! EU NÃO QUERO MAIS POLÍCIA AQUI!
Eli fechou a porta devagar.
Lá fora, o mundo não o abraçava. Lá dentro, menos ainda.
A calçada estava rachada. Caminhões passavam soltando fumaça preta. Latas de lixo caídas. Um cachorro morto. Crianças brincando de se bater. Velhos dormindo encostados em muros.
Eli caminhava no meio disso. Um garoto invisível. Um fantasma vivo.
Ao chegar na escola pública do distrito 32, viu um grupo de meninos o esperando.
— Lá vem o rato coreano. — um deles disse.
Eli abaixou a cabeça, tentou passar reto. Um chute. Depois outro.
— Vai fugir, mutante? Tua mãe tá no hospital ou na sarjeta hoje?
Ele caiu. Não chorou. Não implorou.
Apenas mordeu o braço do agressor com toda a força que tinha.
— AAAAH, ELE MORD… FILHO DA…
Socos. Risadas. Mais socos.
[Diretoria | 09h41]
— Esse menino precisa de tratamento! — dizia a coordenadora. — Não é a primeira vez! Ele morde, ele ataca, ele não fala com ninguém!
A assistente social, cansada, anotava tudo num bloquinho que ela nunca lia depois.
Eli estava sentado em silêncio. Com um olho roxo. E uma expressão de pedra.
A diretora suspirou.
— Vamos chamar o Conselho Tutelar. Ele não tem mais estrutura emocional para conviver aqui.
— Vai tirar ele de casa? — perguntou a assistente.
— Não. Vamos esperar mais uma denúncia. É o procedimento.
Eli ouviu. Cada palavra. Cada decisão que não o incluía. Cada frase dita como se ele fosse um objeto quebrado.
E ali, algo dentro dele começou a morrer.
[ Final de tarde — 17h30]
Ele andava sem rumo pelos becos do distrito, os olhos ardendo. A mochila pendurada num ombro só. As palavras dos outros ainda martelando. A dor nos ossos. A fome no estômago.
Parou numa esquina para descansar.
E foi então que o carro preto apareceu.
Vidros escuros. Pneus impecáveis. Nenhum arranhão. Um carro que não pertencia a Gondon.
O vidro baixou devagar. Um homem muito bem vestido, com olhos atentos e postura calculada, olhou para Eli.
— Você está machucado.
Eli não respondeu. Nem se mexeu.
— E está com fome. — continuou o homem.
Eli o encarou. Pela primeira vez em muito tempo, olhou para um adulto sem desviar.
— E daí?
O homem sorriu. Sem dentes. Só lábios.
— Venha comigo. Eu tenho comida. E perguntas que ninguém nunca fez a você.
[ Restaurante privado em Tokyo central — 18h20]
Eli estava sentado, ainda desconfiado. Um prato quente diante dele. Carne verdadeira. Arroz solto. Legumes assados. Um copo de suco.
O homem o observava, apoiando os dedos sobre a boca, sorrindo de leve.
— Você tem nome?
— Eli. Eli Jang.
— Bonito. Nome estrangeiro.
— Meu pai era coreano. Morreu antes de eu nascer.
— Sua mãe?
— Ainda está viva. Mas não por muito tempo.
Silêncio.
— Por que me trouxe aqui?
— Porque vi algo em você. Um instinto. A mordida. O olhar. A raiva.
— Não sou seu cachorro.
— Eu não disse isso. Mas… cachorros de rua são os únicos que aprendem a sobreviver sem mestre. E isso me interessa.
Eli abaixou os olhos. Por um momento, quase chorou. Mas se segurou.
— Por que você quer me ajudar?
O homem o encarou, sério.
— Porque sei o que é ser descartado por todos. Eu só tive sorte de encontrar o caminho cedo. Você ainda está no cruzamento.
— Quem é você?
— Um investidor. Um construtor. Um homem de muitos nomes. Mas você pode me chamar de Charles.
[ Após a refeição — Tokyo, cobertura de Charles | 19h40]
Charles levou Eli até seu prédio, não para mostrar luxo — mas para mostrar o mundo que existia do outro lado do abismo.
— Tudo isso existe, Eli. Mas só para quem entende as regras do jogo.
— E quais são?
— Ninguém ajuda ninguém de graça. A lealdade compra segurança. A obediência garante comida. E o poder… só o poder… permite que você durma sem medo.
Eli o olhou, confuso.
— E o que você quer de mim?
Charles parou diante da sacada com vista para toda Tokyo.
— Nada. Ainda não. Mas quando o mundo te esquecer de novo, lembre-se… eu fui o primeiro a te ver.
[ Eli retorna a Gondon — 21h00]
Charles o deixou próximo de casa. Eli não voltou imediatamente. Sentou no chão de um beco escuro, comendo o doce que havia guardado no bolso.
Na cabeça, um turbilhão.
Pela primeira vez na vida, alguém o viu. Alguém o quis. Alguém o nomeou como valioso.
Mas a dúvida ainda estava lá. Forte. Latejante.
E então, olhando para um grupo de garotos batendo em um idoso na esquina, Eli se levantou, foi até eles… e os enfrentou.
Sozinho.
Apanhou, mas não correu.
Quando voltou para casa, o rosto estava inchado, mas os olhos… acesos.
[ Presente, esconderijo da Gangue | 04h00 da madrugada]
Eli está sentado diante de um caderno antigo, rabiscando palavras confusas:
“Poder”, “Charles”, “instinto”, “fome”, “medo”, “resistência”.
Naoko se aproxima com um cobertor.
— Não dormiu?
— Estava lembrando…
— Do quê?
— Do dia em que eu quase virei o brinquedo de um monstro. E escolhi continuar sendo cão de rua.
[Tokyo Oculta, 03h17 da madrugada]
A cidade brilhava como uma fera viva. Tokyo nunca dorme — mas essa parte dela nunca acorda.
Eli Jang caminhava por um corredor subterrâneo revestido com metal escovado e painéis de LED brancos. Ao seu lado, Naoko e Hiroshi andavam em silêncio, os olhos atentos aos sensores de movimento nas paredes.
— Essa base não existe nos mapas — murmurou Hiroshi.
— Nem nos planos do governo — completou Naoko.
Eli parou diante de uma porta gigantesca com o número “36” em kanjis invertidos. Era a escola oculta. A não catalogada.
Ele passou o cartão magnético. O som da trava eletrônica ecoou como um tiro no vazio.
O passado estava prestes a ser confrontado.
[Sala de Arquivos – Subsolo da Escola Fantasma]
A sala era silenciosa como um túmulo, exceto pelo som suave dos servidores girando. Hologramas flutuavam entre os corredores.
Eli caminhava entre os arquivos, os olhos vidrados. Puxou um dossiê antigo, amarelado.
“Sistema Nacional de Escolas Especiais — Documento Ultra Confidencial — Classificação ‘MIZUKAGE-04’”
Naoko se aproximou, lendo por cima do ombro de Eli.
— “As 35 escolas não devem jamais ser unificadas. O risco de convergência de potencial é imprevisível… A cláusula Zero impede qualquer coligação interestadual estudantil sem validação política direta.”
Hiroshi franziu o cenho.
— Mas por quê?
Eli virou a página.
E então, viram.
Fotos. Gráficos. Testes com crianças. Experimentos genéticos. Avaliação de QI, agressividade, lealdade. Um nome repetido em todas as páginas: “Projeto Gênesis: Unidade Ponto-Zero.”
Eli cerrou os dentes.
— Isso não era educação. Era seleção e criação de soldados híbridos.
[Flashback: 12 anos atrás – Reunião no conselho secreto das escolas]
Um círculo de figuras de terno. Uma sala escura. Um holograma de um garoto.
Cabelos brancos. Olhos pretos. Sem expressão.
— Esse é o nosso sucesso mais absoluto: Noah Enomoto. Inteligência de nível 220. Controle emocional absoluto. Zero empatia. Potencial físico de nível 5.
— Um monstro com rosto de criança.
Charles estava na sala. Jovem. Ambicioso. O único sorrindo.
— Um monstro é o que precisamos para reescrever um país doente.
[Retorno ao presente – Centro de Controle Oculto da Escola 33]
Um estrondo sacudiu o corredor. As luzes piscaram. Um som metálico… passos.
Eli puxou Naoko para trás de uma das colunas. Hiroshi armou a lâmina. Silêncio.
E então ele apareceu.
Charles.
Vestindo um sobretudo branco, cabelo penteado para trás, uma presença gelada, quase cirúrgica.
— Olá, Eli. Já era hora de você encontrar as raízes da própria dor.
Eli saiu da sombra, os punhos cerrados.
— Você é o câncer por trás das escolas. Era isso desde o início?
Charles deu um passo à frente, sem medo.
— As 35 escolas são apenas o cenário. Eu fui o arquiteto. Cada uniforme, cada avaliação, cada rivalidade cultivada… era combustível para selecionar os que podem mudar o mundo. Ou destruir ele.
Naoko sussurrou:
— Isso é loucura…
Charles a ignorou.
— Sabe por que elas não podem se unificar, Eli? Porque juntos, vocês perceberiam que são peças de um mesmo tabuleiro. A guerra entre escolas é o que impede vocês de olhar para cima e ver quem segura os fios.
Eli se aproximou, olhos vermelhos de raiva.
— E você quer o quê? Ser o Deus desse tabuleiro?
Charles sorriu.
— Não. Quero destruir o tabuleiro. E construir um novo. Onde não existam heróis — apenas projetos eficazes.
Do fundo do corredor, passos ecoaram.
E então, ele apareceu.
Noah Enomoto.
Mais velho. Corpo atlético, postura perfeita. Mas seus olhos… frios. Sem alma.
— Eli Jang. — ele disse, sem emoção. — Você está fora da equação.
[ Sala de Contenção, minutos depois]
Charles, sentado diante de Eli. Separados por uma parede de vidro reforçado.
— Sabe, você não é especial, Eli. Você é só um acidente que deu certo. Um cachorro de rua com instinto de sobrevivência. Mas não nasceu para liderar. Só para resistir.
Eli sorriu, ainda que com sangue nos lábios.
— E você? Um órfão de elite que brinca de Deus, mas nunca teve coragem de ser pai de verdade.
Charles fechou a expressão. Aquilo atingiu.
Eli se levantou.
— Você me alimentou quando ninguém mais o fez. Me deu um teto. Mas agora entendo… você só queria plantar uma bomba dentro de mim.
Charles ficou em silêncio.
— Mas eu sou um explosivo instável, Charles. E estou prestes a explodir — na sua cara.
Hiroshi ativa a bomba EMP. As luzes se apagam. Alarmes disparam.
Noah persegue os três pelos corredores como um espectro. Rápido. Preciso. Inumano.
Naoko quase cai. Eli a segura.
— Não olha pra trás! Vamos sair vivos — por agora.
Eles escapam por uma tubulação secundária, enquanto o complexo começa a se selar.
A última imagem é Charles, parado na sala de controle, olhando as câmeras.
— Eli… você vai liderar a rebelião. Mas só porque eu quero que você lidere.
Ele sorri.
— Toda revolução precisa de um mártir… ou de um monstro. E você será ambos.
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