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    O pátio central do distrito inferior era amplo, delimitado por colunas de gelo puro que sustentavam a cúpula encantada. A estrutura da sede do Círculo de Gelo erguia-se como uma cicatriz viva da tragédia passada, edificada exatamente sobre as cinzas e ossos do dragão que quase destruíra Altheria.

    Ian caminhava ao lado da capitã Neriah, observando em silêncio os detalhes da construção. O gelo absorvia a luz difusa da manhã, emitindo um brilho azulado suave. As paredes eram adornadas com entalhes em espiral que canalizavam a mana para manter o ambiente aquecido e funcional. O frio ali dentro não era natural; era controlado, disciplinado, como se cada pedra lembrasse que o caos estava sempre à espreita.

    Por um instante, Ian parou ao pé da escadaria principal, passando a mão pela superfície lisa de uma coluna.


    — Para uma base construída sobre um cadáver, devo admitir… é bem elegante.

    Neriah o lançou um olhar enviesado, mas não respondeu. Talvez estivesse tentando manter o foco. 

    — Não vamos passar pela triagem. O Círculo já está reunido. — Informou ela, sem olhar para trás. 

    Ian arqueou uma sobrancelha. 

    As portas da câmara se abriram sem esforço, liberando uma lufada de ar mais frio. O salão era circular, com doze assentos dispostos em meia-lua ao redor de um emblema entalhado no chão, o brasão de Altheria. Doze figuras já estavam posicionadas, cada uma representando um elo do poder daquela cidade. 

    A entrada abrupta de Neriah cortou a conversa no meio. 

    — Capitã Neriah? — uma das mulheres, vestida com runas formais de comando, ergueu-se — Essa reunião é restrita. 

    — Restrita a mim? Sou membro deste círculo. Ou isso mudou desde ontem? 

    Um murmúrio atravessou o salão. Duas figuras masculinas, mercadores de expressão tensa trocaram palavras rápidas entre si. As quatro magas mais jovens mantiveram-se caladas, observando com evidente desconforto. As duas pesquisadoras principais franziram o cenho, e uma delas se voltou à figura central: a líder do Círculo. 

    A mulher era de uma elegância silenciosa. As orelhas pontiagudas, o rosto imaculado e os olhos azulados deixavam clara sua ascendência Gel’Varel. Ao seu lado, a vice-líder, igualmente bela e imponente, sussurrava algo em tom baixo. 

    — Neriah… essa reunião foi convocada em caráter extraordinário. Não houve tempo hábil para avisos formais. — disse a vice. 

    — Conveniente. Especialmente considerando que a pauta está aqui — respondeu, indicando Ian ao seu lado. 

    O ambiente silenciou. Olhos se voltaram para ele com uma mistura de curiosidade, desdém e cautela. Um dos mercadores resmungou:

    — A pauta? não sabia que um manuscrito de convocação de Cervalhion agora podia virar um homem.

    — Cervalhion realizando uma convocação? — Neriah perguntou levemente confusa.

    — Exatamente. — respondeu uma das magas mais jovens, que estava mais próxima. — Acho que agora entende o porquê não foi convocada para essa reunião.

    — Isso não importa no momento, já que o que esse homem afirma pode ser mais importante que a Convocação Real — Nairah falou mantendo o tom de urgência enquanto apontava de forma breve para Ian.

    O ambiente silenciou. Olhos se voltaram para ele com curiosidade contida, dúvida e uma pontada de desdém. 

    Ian, por sua vez, cruzou os braços e olhou em volta. 

    — Está ficando difícil acompanhar quem realmente manda por aqui. Mas continuem… estou só assistindo ao espetáculo. 

    Uma das magas mais jovens riu, antes de ser silenciada por um olhar cortante da vice-líder. 

    A líder do Círculo finalmente se levantou. Seu olhar repousou sobre Ian. Não havia hostilidade em sua expressão, apenas cautela. 

    — Muito bem… — disse ela, sem elevar a voz. — Quem é você? 

    O salão mergulhou num silêncio absoluto. O frio pareceu estagnar no ar. Ian manteve-se imóvel por um segundo, seus olhos fixos nos dela. 

    O salão permaneceu em silêncio, após a revelação de Ian. Então, como se algo tivesse se rompido, uma gargalhada ecoou. 

    — O Guardião do Norte? — zombou uma das magas mais jovens, de mantos bordados com flocos prateados. — O próximo vai dizer que é o próprio dragão reencarnado! 

    Outros membros riram com menos entusiasmo. Um dos mercadores, calvo e de expressão cínica, resmungou: 

    — Faz sentido… estamos na estação da colheita. Época boa pra lunáticos germinarem. 

    Nem todos pareciam se divertir. Uma das pesquisadoras mais velhas franziu a testa, observando Ian com olhos quase analíticos. 

    — Ele não falou como um louco. 

    Neriah, ainda firme ao lado de Ian, deu um passo à frente. Sua postura era militar, a voz seca e direta: 

    — Eu sei o quanto parece improvável. Mas não estou aqui por achismos. O homem chegou por uma rota desativada há mais de uma década. Descreveu eventos antigos, que só quem os viveu saberia. E falou com precisão sobre criaturas que atravessaram a barreira. Criaturas que mataram soldados sob meu comando. 

    O burburinho foi substituído por um silêncio desconfortável. 

    — Capitã Neriah — disse um dos homens do Círculo, um dos mercadores —, está sugerindo que aceitemos a palavra de um estranho apenas porque ele falou com convicção? 

    — Estou sugerindo que não o tratemos como um lunático até termos certeza. E lembrando que, se ele estiver certo, tratá-lo como um farsante pode nos custar caro. 

    A líder do Círculo, sentada no trono elevado, observava a cena em silêncio. Seu semblante era calmo, quase sereno, mas havia algo perigoso na firmeza de seus olhos prateados. Quando enfim falou, foi quase como se sussurrasse. 

    — Tragam Nayla e os Cristais do Véu.

    A ordem foi seguida sem questionamentos. Enquanto esperavam, Ian murmurou: 

    — Que bom que não pediram para eu tirar a roupa dessa vez… 

    Neriah olhou de lado, com uma expressão tensa. 

    — Nayla é uma maga mentalista. Se você passar pelos cristais e ainda estiver mentindo… ela vai saber. 

    — Ótimo. alguém vai entrar na minha cabeça hoje! Coisa pouca. 

    Minutos depois, Nayla entrou segurando quatro cristais brancos. Seus olhos leitosos examinaram a sala até pousarem sobre Ian. Aproximou-se em silêncio e, sem cerimônias, parou à sua frente. 

    — Por favor, não resista. — disse ela, fria. 

    Os Cristais do Véu brilharam em branco enquanto flutuavam ao redor de Ian enquanto ele respondia uma sequência de perguntas.

    — Como você conhecia Altheria?

    — Você fala o assentamento da Névoa ou a pessoa?

    — Cidade.

    — Eu não conhecia quando parti aqui era apenas um conjunto de tendas.

    Nayla o observou um pouco mais e ele pode ver o brilho dos olhos dela se intensificando.

    — O que fazia no Norte?

    — Minha função, matei muitas bestas ao longo desses anos.

    aos poucos os cristais retomaram para Nayla.

    — Não parece ser mentira — ela sussurrou parecendo desconcertada.

    Ian ergueu uma sobrancelha, sem desviar o olhar. 

    — Por acaso eu pareço alguém que se daria ao trabalho de inventar uma história tão longa? 

    Nayla permaneceu imóvel, os olhos fixos. Então recuou um passo. 

    — Ele acredita em cada palavra. Há trauma real, memórias antigas… dor demais para ser forjada. Não sei se ele é o Guardião do Norte, mas… ele não está mentindo. 

    Alguns membros se remexeram em desconforto. Um dos homens murmurou: 

    — E se for um lunático que acredita nas próprias mentiras? 

    — O tipo mais perigoso, nesse caso. — disse a outra pesquisadora, fria. 

    Foi então que Neriah acrescentou, em tom mais baixo, porém audível: 

    — Também… devo acrescentar algo. Quando Ian foi detido no posto avançado, ele quebrou todas as runas da cela de contenção. Incluindo as de anti-magia. Sem sequer se mover. 

    Todos os olhares se voltaram novamente para Ian. A líder se ergueu. 

    — E você não mencionou isso antes por…? 

    — Achei que vocês prefeririam ouvir da Nayla primeiro. — respondeu Neriah, seca. — Não achei prudente misturar as coisas. 

    A líder não retrucou. Ela desceu um degrau, o olhar fixo em Ian. Seus traços élficos e presença dominante deixavam clara sua posição. 

    — Você se diz o Guardião do Norte. Uma lenda. — A rainha jogou os seus cabelos para trás enquanto se aproximava — Palavras, até aqui. Nada além disso. 

    Ela parou a poucos metros dele. 

    — Diga-me, então. Se é mesmo quem diz ser… prove. — Ela caminhava de forma lenta, não parecia ter o mínimo de pressa em dar o próximo passo — Prove que é digno do título. Mostre sua força. Não em palavras, mas em poder. 

    Ian cruzou os braços. O olhar carregava cansaço, mas também algo mais profundo: uma irritação crescente, sufocada por anos. 

    — Já me pediram provas antes. Sempre pedem.  

    O salão silenciou mais uma vez. E Ian respirou fundo, como se as décadas ausentes começassem, enfim, a se acomodar novamente sobre seus ombros. 

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