Capítulo 81 — Negociando a Colheita (Parte 2)
— Perdão? — perguntou o Dr. Magalhães, confuso com a resposta do emissário.
Lehman não conseguia compreender toda aquela situação confusa. O rapaz permaneceu em silêncio durante toda a argumentação do advogado, mas de repente começou a agir tão decididamente daquele jeito.
— Sr. Shen — sussurrou Lehman —, o que está acontecendo?
O emissário apenas acenou com a cabeça para o mesmo, como se dissesse que tudo ficaria bem. Durante várias etapas da sua vida, Huan Shen aprendeu que a força bruta, um dos seus principais pontos fortes, não poderia vencer todo tipo de confronto. Existia um outro tipo de força nas palavras, que conseguiam ultrapassar as defesas das armaduras e afetar diretamente o seu raciocínio.
Um tipo de força que não precisava de nenhuma magia para se estabelecer: a intimidação.
Usando uma combinação de palavras certas, meias-verdades e cenários fantasiosos disfarçados de realismo, qualquer coisa poderia ser possível.
— Dr. Magalhães, não use palavras longas e floridas para dizer do que isso realmente se trata. Isso aqui é um documento de compra e venda de propriedade.
— Vender? — questionou Lehman, preocupado. — Minha propriedade não está à venda!
O senhor pegou o documento mais uma vez e começou a olhá-lo com mais atenção. No meio das várias palavras complicadas e termos técnicos, tinham trechos afirmando objetivamente sobre a transferência não apenas das posses, mas da safra mais recente e da tecnologia usada pelos agricultores.
— Isso é um absurdo! — reclamou Lehman.
Magalhães começou a ficar tenso. Aquilo estava começando a sair dos trilhos, pois a maioria costumava apenas ficar preocupada e assinava o documento no mesmo dia. Essa era inclusive a sua estratégia mais eficaz: bombardear seu alvo de conteúdo e oferecer uma resolução imediata. Porém, parecia que aquilo não iria funcionar dessa vez.
— Olha — disse o advogado, direcionado ao emissário —, reconheço que você é inteligente, mas vejo que você não é daqui. Com todo respeito, mas isso é claramente um indicativo de que você não está a par da nossa realidade em Santa Marília. Por que não deixa o Sr. Kushinov, um residente de longo prazo dessas terras, dizer o que acha sobre isso?
O emissário olhou novamente para Lehman, que claramente estava indignado com a situação.
— Não posso deixá-lo tomar essa decisão só, pois suas palavras possuem veneno. Você mesmo disse que está representando os Bakir, aqueles que possuem a intenção de comprar o terreno. Você não está apresentando isso com um viés imparcial, mas sim claramente intencionado em convencer o Sr. Kushinov a vender a propriedade.
— Sr. Shen, esse é seu nome, correto? Eu me sinto muito ofendido ouvindo você dizer que meu trabalho é enviesado. Eu sou alguém formado nos princípios da lei e da sociedade, meu papel aqui é mostrar como os fatos corroboram para a necessidade da venda de terra dos agricultores para que não sofram com uma possível recessão.
“Que advogado de merda você é, hein?”
— Ótimo! Para você chegar na casa dos outros solicitando a venda dos seus territórios, presumo que possua contigo uma cópia dos artigos oficiais emitidos pelo Escritório Administrativo do Santo Império dos índices financeiros atuais, correto? Lembrando que eles precisam ter o selo imperial, para serem validados.
Magalhães passou alguns segundos em silêncio, ponderando sobre o porquê não tinha dado um jeito de obter esses documentos. Aquilo ficaria de aprendizado, para as próximas tentativas.
— Eu não os tenho comigo agora, mas novamente, você não pode achar que conhece a realidade inteira de Santa Marília com apenas algumas informações brutas sobre a economia local. Todos os outros agricultores que tive a oportunidade de assessorar nesse projeto de transição, entenderam suas necessidades e assinaram o documento. E novamente, com todo o respeito, o que te dá o direito de achar que sabe mais sobre como as coisas funcionam aqui do que seus moradores?
— E você acha ético que ele tenha que assinar isso sem pelo menos quarenta e oito horas para pensar? Você usou a família como pretexto, mas veio apenas falar com ele. E pelo que percebi, não teve nem contexto para sua visita. Qualquer pessoa que veja isso diria que você está se aproximando furtivamente e impôr a venda de um ativo importantíssimo. Isso não é muito ético.
— Como você ousa? — respondeu o advogado, perdendo a compostura.
— Você não precisa ficar irritado atoa, Dr. Magalhães. Eu já disse que vamos pensar na proposta em conjunto e dar uma resposta posteriormente. Tenho certeza que o senhor já deve estar acostumado com isso, certo?
Dr. Magalhães permaneceu alguns segundos em silêncio, ponderando nas palavras que tinha acabado de escutar. Ele não tinha nenhum parecer legal para exigir uma assinatura em um prazo mais breve, também não poderia tentar pressionar usando o nome da família Bakir, pois isso poderia ter complicações caso chegasse em algum tribunal imperial. O importante era seguir com a estratégia intacta, recuando se fosse necessário.
— Eu não acho que precise chegar a tudo isso, mas entendo — disse o advogado, enquanto se levantava. — Agradeço pela recepção, Sr. Kushinov.
— Não quer ficar para a janta, Dr. Magalhães? — perguntou Lehman.
O advogado cruzou seus olhos com Huan Shen, que o encarava como se não representasse perigo algum.
— Eu perdi a fome, Sr. Kushinov. Espero que possamos conversar em circunstâncias melhores. Tenha uma boa noite.
— Eu te levo até a entrada! Já está escuro e alguém vai precisar fechar o portão — disse o emissário, repentinamente.
Eram cerca de cinco minutos da casa até a parte externa da propriedade. Algumas carruagens ainda passavam naquele horário pelo distrito rural, então o Dr.Magalhães iria conseguir chegar em sua casa sem ter que andar todo o trajeto. Depois que as carruagens a vapor ficaram populares, as pessoas desaprenderam aos poucos sobre a necessidade de aprender equitação.
— Não guarde ressentimentos, doutor — disse Huan Shen. — Mais do que qualquer um, você deve saber a importância de o cliente ter uma defesa qualificada para casos importantes assim.
Dr. Magalhães deixou um riso escapar.
— Falando desse jeito, até parece que somos colegas de profissão. Mas não se preocupe, eu já estou acostumado com esse tipo de intempérie. Só faça questão de garantir que o Sr. Kushinov tome a decisão certa, pois as consequências podem não ser agradáveis.
A mão enorme do emissário surgiu na frente do advogado, interrompendo o seu caminho.
— Eu devo interpretar isso como uma ameaça?
O advogado parou e encarou o emissário, sem um pingo de medo. O vento frio da noite percorria suas peles, debaixo da lua minguante que se estabelecia no céu. O perigo nos olhos do emissário era óbvio, pois apenas sua presença era algo que trazia temor em todos que pareciam ficar em seu caminho. Porém, Dr. Magalhães tinha os olhos de uma serpente. Nos dias atuais, poucas eram as situações onde a força bruta conseguia rivalizar com o poder de uma caneta ou da palavra suave.
— Peço que encare isso como um aviso, mas cujas consequências não serão aplicadas por mim. Você é um estrangeiro em uma terra onde não gostamos de desconhecidos se intrometendo em nossos negócios, isso pode não acabar bem para você.
Havia um tipo de poder que Huan Shen não poderia sair quebrando com suas mãos. Com vinte e três anos, o emissário já tinha participado de combates violentos com oponentes amedrontadores que causavam terror até em veteranos experientes. Porém, havia um inimigo delimitado e desenhado, com confrontos abertos que haviam poucas ou nenhumas limitações. Esse era o hard power, algo que o Huan Shen tinha pleno conhecimento.
Porém, a presença do soft power naquela cidade era dominante. Famílias grandes que influenciam o poder imperial e consequentemente manipulam o mercado financeiro local. Junto a isso, um conjunto de leis que servem para perpetuar o seu poder.
— Eu vou manter isso em mente, doutor — respondeu Huan Shen.
Huan Shen acompanhou o advogado sumindo pelo final da rua em uma carruagem, indo em direção ao Elísio. Porém, quando estava prestes a fechar os portões, a sensação que sentiu mais cedo, ficou mais forte. Na escuridão das ruas, olhos ocultos observavam cada um dos seus movimentos.
— Tá na hora de acabar com isso.
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