Capítulo 6: Lumen Feralis
O portão se ergueu diante dele como um arco de pedra coberto de musgo. À primeira vista, parecia apenas uma construção antiga, perdida no meio das montanhas. Mas, à medida que Kazuto se aproximava, a pedra parecia respirar. O ar ficou mais denso, pesado, como se o lugar tivesse vida própria.
Nara caminhava à frente, passos firmes, sem olhar para trás.
— Chegamos.
Kazuto engoliu em seco.
Atrás dos portões, uma cidade inteira parecia escondida. Casas de madeira com telhados curvados, lanternas penduradas iluminando passagens estreitas, árvores enormes que pareciam abraçar a construção. Era como um templo, mas ao mesmo tempo, como uma vila viva. Pessoas andavam por ali, algumas treinando em pátios, outras simplesmente carregando cestos de frutas ou varrendo o chão. O contraste entre simplicidade e poder era sufocante.
Nara empurrou os portões e o som grave ecoou. O barulho atraiu olhares.
Alguns dos jovens pararam o treino para observar. Kazuto sentiu o peso de cada olhar em sua pele, como se estivessem tentando enxergar algo dentro dele.
Uma garota de cabelos pretos lisos, presa em um rabo de cavalo baixo, aproximou-se com um sorriso tímido.
— Esse é o novato?
— É — respondeu Nara, sem rodeios. — Vai ficar.
A garota curvou levemente a cabeça para Kazuto.
— Seja bem-vindo ao Refúgio. Eu sou Himari.
Kazuto respondeu com um aceno rápido, ainda atônito com tudo que via.
Um segundo garoto apareceu pulando de uma árvore, cabelos espetados e um sorriso meio debochado.
— Mais um pra virar comida de fera? — riu, batendo a mão no ombro de Kazuto. — Brincadeira, não fica assim não. Nariko, prazer.
Kazuto deu um passo atrás, confuso entre rir ou se assustar.
Nariko levantou as mãos, como se dissesse “tô de boa”.
— Relaxa, eu não mordo. Pelo menos não sem aviso.
Antes que Kazuto respondesse, outro garoto desceu as escadas do pátio. Cabelos claros, olhar desafiador, postura de quem estava sempre pronto para briga.
— O novato parece frágil — disse, cruzando os braços. — Vai atrapalhar.
Nariko riu.
— Esse é o Sora, não liga. Ele fala mais do que luta.
— Cala a boca, Nariko.
Himari suspirou baixinho, acostumada com a cena.
Logo depois, uma garota mais baixa, de traços delicados, veio correndo, carregando um pequeno vaso com flores. Seu sorriso era gentil, mas discreto.
— Vocês assustam ele assim logo de cara. — Seus olhos puxados denunciaram sua origem. — Eu sou Chen Hua.
Kazuto finalmente conseguiu respirar fundo. Aquilo era demais para absorver de uma vez.
Nara, que até então observava em silêncio, interrompeu o momento:
— Onde está Kael?
Himari apontou para o grande salão no centro da vila.
— Está em reunião com alguns Shisai.
Nara assentiu.
— Então vamos.
Kazuto seguiu, ainda perdido. O caminho levou-os até um prédio maior, sustentado por pilares de pedra cobertos de inscrições. No interior, o ar era mais frio, carregado de uma aura estranha.
Lá dentro, alguns homens e mulheres esperavam. Suas presenças eram esmagadoras, diferentes de qualquer pessoa comum. O olhar deles parecia atravessar Kazuto.
Um deles se ergueu da cadeira de madeira esculpida. Tinha cabelo longo, grisalho nas pontas, e o corpo musculoso parecia feito de pedra. Seus punhos eram grandes, envoltos por uma leve cintilação.
— Então este é o garoto.
A voz era grave, firme, mas não agressiva.
Nara respondeu:
— É. Sobreviveu ao ataque de Tommy.
O homem caminhou até Kazuto, aproximando-se. Seus olhos não carregavam ódio, mas algo pior: julgamento.
— Qual o seu nome?
— K-Kazuto…
O homem fechou os olhos por um instante, como se meditasse sobre aquele nome.
Nara assentiu.
— Sou Nara Martelo, líder do Lumen Feralis. — Tocou o próprio peito. — Aqui, guiamos aqueles que despertam para não serem devorados pela própria fera.
Kazuto arregalou os olhos.
— Minha… fera?
Uma mulher de cabelos ruivos, com ares calorosos e um brilho estranho nos olhos, deu um passo à frente.
— Todo ser humano tem dentro de si o Animalis — explicou, voz firme mas acolhedora. — É o instinto primitivo, a fera que nos impulsiona e nos destrói. Quando despertado, ele se manifesta no Feralis: o poder.
Kazuto sentiu a espinha gelar.
— Então Tommy…
— Sim — ela confirmou. — Tommy foi devorado pelo próprio Animalis. Ele não era mais humano, só uma fera.
Outro homem riu baixo, apoiado em uma vassoura estranha que carregava.
— E é por isso que o Lumen existe, garoto. — Deu uma piscada. — Pra limpar a sujeira que sobra quando a fera toma conta.
Kazuto ficou em silêncio, sem saber como reagir.
Nara ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Não vamos sufocar o garoto com palavras. Ele terá tempo para entender.
Um dos homens, alto, com uma lâmina no lugar do braço direito, olhou fixamente para Kazuto.
— Desde que prove que merece estar aqui.
Nariko cochichou no ouvido de Kazuto:
— Esse é Raen, não leva a mal. Ele acha que todo mundo tem que passar por duelo.
Kazuto tentou rir, mas a garganta estava seca.
A reunião terminou com olhares pesados, mas nenhum protesto. Nara voltou a falar:
— Kazuto ficará no dormitório dos aprendizes. Vocês quatro — olhou para Himari, Nariko, Sora e Chen Hua —, cuidem dele.
Os jovens assentiram.
Do lado de fora, a noite já caía, tingindo o céu de violeta. Lanternas foram acesas, o Refúgio ganhava uma aura ainda mais viva.
Nariko esticou os braços e bocejou.
— Bem, novato, pronto pra conhecer o nosso pequeno inferno particular?
Sora deu um empurrão em Kazuto, meio ríspido.
— Se não aguentar, volta pra casa.
Chen Hua balançou a cabeça, sorrindo suavemente.
— Não ouça eles. Vai dar tudo certo.
Himari caminhava na frente, guiando o grupo.
— O Refúgio não é apenas um lugar de treino. É uma casa. Você vai aprender a viver com sua fera, a controlá-la… ou ser engolido por ela.
Kazuto olhou ao redor, ouvindo os sons da vila, os ecos de treino, o murmúrio das árvores. Pela primeira vez, teve a sensação de que sua vida nunca mais seria normal.
E, ao mesmo tempo, uma centelha crescia dentro dele.
Medo.
Curiosidade.
E uma força que ele ainda não entendia.
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