Capítulo 25 - O custo da passagem
A barreira pulsa à minha frente, com o ritmo irregular de uma ferida viva tentando cicatrizar. Maior que todas as anteriores, suas chamas dançam com vida própria, ocultando e revelando formas.
É apenas através dessas frestas translúcidas que consigo entrever o que existe além: uma abertura no espaço, sugerindo a forma de uma janela para outro lugar. Como se alguém tivesse rasgado a realidade e deixado uma vista completamente diferente do mundo de barreiras e túneis que conhecemos.
No final daquela abertura impossível, apenas uma coisa se destaca.
Três sóis brilhando simultaneamente.
O sonho de Lira ecoa em minha mente. Ela queria ver apenas um sol nascendo sobre campos verdes. Agora posso ver a realização multiplicada por três. A ironia me corrói: vejo o que ela tanto desejava, ainda assim não posso alcançar.
No compartimento traseiro, quatro pares de olhos observam através do vidro separador. Demiurga consulta seus cálculos, sussurrando números. Korvak permanece imóvel.
Vejo em seu rosto a mesma expressão de quando tivemos as outras perdas. Aceitação cruel da matemática. Sombra oscila entre visibilidade e transparência. Oráculo ajusta suas lentes.
A matemática é simples. Cruel, mas simples.
Barreira mais densa. Sistema exige sacrifício orgânico. Cinco tripulantes. Quatro devem sobreviver.
Não preciso calcular quem tem menos tempo pela frente.
Seis meses contra décadas dos outros. A lógica é implacável: melhor salvar quatro vidas plenas que preservar uma que se desintegra rapidamente.
Deixo os controles. Caminho em direção à escotilha de emergência.
Korvak se inclina para frente, autoridade cortando o silêncio:
— Zéric, retorne aos controles.
Ignoro.
Um som metálico ressoa através da broca. Não é o rangido familiar da estrutura sob pressão. É deliberado. Automático.
Viro o olhar. Na parede oposta, bem à frente da broca de perfuração, uma seção desliza lentamente, revelando um compartimento oculto. O ar que escapa traz odor químico de preservação. O que vejo faz cada músculo se contrair.
Corpos suspensos.
Três formas humanoides pendem de cabos e tubos, mantidas em animação suspensa por fluidos que gotejam através de veias transparentes. Duas pequenas: crianças. A terceira maior, adulta, e quando meus olhos se adaptam à iluminação fraca, reconheço.
Tórax humano definido. Membros superiores que lembro de admirar. Da cintura para baixo, estrutura de égua: musculatura robusta, patas largas, cascos reforçados. Inconsciente, mas respirando.
Iara.
A realidade me atinge.
Carga de emergência. Combustível orgânico de reserva.
Iara não está aqui por acaso. Foi colocada deliberadamente, junto com as crianças, servindo de solução para situações assim. O sistema de segurança não nos protege. Garante que a broca sempre terá um navegador vivo.
Atrás de mim, ouço Demiurga suspirar aliviada.
— Pelo menos não precisaremos sortear!
O comentário me gela mais que a visão dos corpos suspensos.
Korvak baixa a cabeça.
A primeira criança está sendo baixada automaticamente. Tubos se desconectam, fluido goteja, e seus olhos se abrem devagar. São olhos idênticos aos de Lira: vazios, programados.
Não.
Não mais uma.
Mergulho em direção ao sistema de sustentação, tentando interromper o processo. Minhas mãos encontram cabos e tubos, puxando com força desesperada. Alarmes ecoam enquanto fluidos espirram.
Braços mecânicos emergem das paredes, me afastando da criança desperta. Ela me olha com expressão que reconheço: aceitação programada. A mesma que vi no rosto de Lira antes de sua cristalização.
Sombra materializa-se completamente atrás de mim, gastando energia vital para se tornar sólido. Joga-se contra os braços mecânicos, tentando bloqueá-los fisicamente.
— Não… desta vez não! — sua voz soa diferente quando completamente material.
Ainda assim, os braços são mais fortes. Nos afastam de qualquer interferência.
A criança permanece imóvel esperando o fim. O impacto com a barreira é idêntico ao que testemunhei antes. Carne virando cristal, ossos tornando-se vidro, sangue transformando-se em substância luminosa. Consciência preservada no tormento eterno.
Desta vez, algo está diferente.
A abertura criada não é suficiente. A barreira se fecha parcialmente, deixando apenas fenda estreita. Estamos presos no meio da travessia, com metade da broca exposta às chamas.
O sistema inicia a liberação da segunda criança.
Desta vez não hesito. Me jogo sobre o painel de controle. Arranco um cabo principal com força que não sabia possuir. Faíscas explodem enquanto o sistema trava.
Num movimento brusco e quase selvagem, Demiurga se livra dos cintos, a falsa segurança da poltrona queimando sua pele. Ela cambaleia para a frente, tomada pelo pânico, e se choca contra o vidro diante de mim. Seus olhos estão arregalados quando grita:
— Você vai nos matar!
Nada mais importa. Aproximo-me de Iara. Suas pálpebras tremem. Começo a desconectar os tubos, dedos trabalhando com habilidade conhecida. Anatomia aplicada.
— Zéric? — sua voz emerge fraca — Onde… o que acontece?
Paro, organizando pensamentos que se recusam a se organizar.
— Estamos na Zona Morta. Tentando sair.
Os olhos de Iara se focam gradualmente. Primeiro veem meu rosto, depois se movem além de mim, através do vidro separador. Quando encontram algo lá, se transformam completamente.
Não confusão. Ódio puro.
Atrás de mim, ouço o som de alguém se levantando bruscamente, mãos batendo contra o vidro.
— Iara… — a voz de Korvak sai tal qual sussurro devastado — Você está viva…
Apesar dos músculos ainda trêmulos, a fúria lhe dá força enquanto tenta se erguer na plataforma.
— Você! — sua voz estala no ar, seca, cruel, impossível de ignorar — Me encontrou afinal.
O silêncio que se segue é diferente de todos os outros. Carregado de história que não compreendo.
Korvak permanece de pé, pressionado contra o vidro como se pudesse atravessá-lo.
— Eu não sabia… não sabia que você estava aqui…
— Mentira! — ela cospe, finalmente conseguindo ficar de pé — Sempre foi sobre me trazer de volta, não foi? Suas “missões humanitárias”.
Quando compreende sua situação completa, suspensa ao lado de crianças destinadas ao sacrifício, o ódio em seus olhos se multiplica
— Então é assim que me pune? Me transforma em combustível?
A expressão de Korvak se despedaça.
— Não… eu jamais… eu tentei te salvar…
Ajudo-a a descer da plataforma, sentindo o peso dela tremer contra mim. Mais do que fraqueza, o tremor agora é raiva.
Apesar de tudo, o sistema continua funcionando. A segunda criança está sendo preparada automaticamente. Seus olhos se abrem, mesma expressão programada manifestando-se no rosto jovem.
Iara, ainda fraca, força-se a dar um passo. Estende a mão trêmula em direção à criança.
— Você tem escolha — sua voz sai firme apesar da fraqueza — Sempre tem.
Mesmo com a criança confusa, os braços mecânicos se movem, ignorando qualquer apelo.
Demiurga soca o vidro separador.
A segunda criança é empurrada contra a barreira.
O impacto é idêntico. Cristalização. Agonia eterna. Mais uma vida dada em pró da passagem.
Mas algo impossível acontece.
Em vez de abrir caminho através da barreira, toda aquela força vital flui diretamente para mim.
Minha cicatriz em losango queima.
Não coça da mesma forma que antes. Queima. A sensação é completamente diferente, mais intensa, como se reconhecesse algo no ar que desperta faminto depois de longo sono.
Ao tocar minha cicatriz, a essência da criança provoca um impulso que atravessa meu corpo feito eletricidade. Não pedi por isso. Não queria. Ainda assim, minha pele absorve cada fragmento da morte dela.
Fico paralisado pela confusão. A criança morreu. Sua essência deveria ter aberto caminho na barreira. Em vez disso, alimenta algo dentro de mim que não compreendo.
Olho para os companheiros através do vidro. A expressão deles mudou. Não é mais alívio pragmático. É medo.
Porque agora não temos jeito de atravessar. E a barreira continua fechada.
Neste momento, todos os protocolos quebram simultaneamente. Demiurga se afasta do vidro. Korvak permanece de pé contra o vidro. Oráculo paralisado. Simplesmente ficamos humanos diante da impossibilidade.
É Demiurga quem quebra o momento, voz saindo tensa:
— Não há para onde ejetar!
O silêncio que se segue tem peso físico. Finalmente chegamos ao ponto que temíamos: sem saída. Sem escolhas. Sem esperança.
O cálculo mortal não muda, apenas acrescenta um novo número: Iara.
Olho através da fenda em direção à janela impossível que leva ao mundo dos três sóis. É um lugar que não fui destinado a alcançar. Este é o fim da minha trajetória, às portas de um novo mundo.
Minha cicatriz volta a pulsar.
Algo se move lá. Uma massa etérea preta, uma presença que não consigo definir claramente. Ela se aproxima da broca, nos envolve em força que reconheço sem compreender.
A passagem acontece sem avisos. Sem mortes adicionais. Sem contratos.
Simplesmente passamos.
Mas meu corpo sabe que não existe generosidade. A essência que absorvi das crianças circula através da minha cicatriz, conectando-me a algo maior. Algo que ainda cobrará seu preço.
Não compreendo o que acontece. A lógica me abandona quando mais preciso dela. Não houve mortes adicionais. Nem avisos explícitos. Porém, a força que corre através das minhas veias sussurra que toda dívida será cobrada.
Iara me observa com olhos arregalados e apenas respondo honestamente:
— Não sei!
Então algo muda.
A presença que nos guiou através da barreira não nos leva em direção ao portal dourado dos três sóis. Em vez disso, nossa trajetória se curva, desviando para a esquerda, em direção a algo que só agora percebo.
Uma segunda abertura. Paralela à primeira. Completamente negra.
Não há sóis do outro lado. Não há luz dourada, vermelha ou azul. Apenas escuridão que pulsa, esperando.
E compreendo, com horror crescente, que este sempre foi nosso verdadeiro destino.
O sonho de Lira, multiplicado por três, desaparece à nossa direita enquanto somos puxados em direção à escuridão que me reconhece.
Porque agora eu reconheço também.
Mas mesmo sendo puxado para a escuridão, guardo a imagem dos três sóis na memória. Algumas promessas merecem ser carregadas, mesmo no escuro.


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