Capítulo 46: Convergência
No subsolo mais profundo do complexo do Domatorum, em Tartarus, Olson caminhava sozinho por um corredor esquecido, o som dos passos parecia abafado. O ar cheirava a ferrugem e poeira antiga, como se bem poucos tivessem respirado ali em anos. Aquele caminho não constava em mapa algum.
Era uma obra de paciência e astúcia: relatórios de reforma adulterados em pequenas linhas de rodapé, plantas técnicas manipuladas com erros que passariam despercebidos, uma parede erguida alguns metros fora de lugar, um registro de ventilação inexistente. Camadas e camadas de falsificações, que em conjunto formavam um corredor secreto. Um trajeto que apenas ele, e os poucos escolhidos que ousavam segui-lo, conheciam.
O destino era um depósito enterrado sob toneladas de concreto. O espaço exalava abandono, com lâmpadas fracas piscando no teto baixo e poeira cobrindo as paredes rachadas. No centro, caixas se erguiam em pilhas desiguais, marcadas com a logomarca da “Mandu Transportes Planetários”.
A maioria continha agora, apenas sucata, papéis, peças de máquinas quebradas, distrações cuidadosamente preparadas. Olson sabia: nada daquilo era o verdadeiro tesouro. O valor real repousava no que não estava mais ali.
Ali, imóvel como um monumento, esperava uma figura encapuzada. O manto ocultava seu corpo inteiro, mas não o peso da sua presença. A cada segundo de silêncio, parecia que o ar se tornava mais denso, difícil de inspirar.
— Um sucesso, ó Ungido. — Olson quebrou o silêncio, com reverência forçada, como quem teme mais do que respeita. — A fera matou dezenas de alunos. O teste funcionou. Imagine o impacto em escala planetária…
A resposta veio como metal sendo arranhado por dentro:
— Não compartilho do seu otimismo, Olson. “Apenas” dezenas de mortes… insignificante.
De dentro do manto, o ser retirou uma caixa metálica menor que um crânio. No topo, uma esfera cristalina brilhava em tons esverdeados, contendo um líquido que parecia pulsar como um coração enfraquecido. O nível estava baixo, quase seco. Não era apenas uma ferramenta: era alimento, era combustível para sua revolução, a promessa de algo maior.
— Precisamos de centenas. Milhares, talvez. Só assim reuniremos energia suficiente para forçar uma nova ruptura.
Olson engoliu seco, as mãos inquietas como se não soubessem onde descansar.
— Era apenas um teste, milorde. Quando chegarem mais peças, mais equipamentos, poderei refinar o sistema, para melhor otimização dos resultados.
A sombra ficou em silêncio por um instante que pareceu eterno.
— Tenho más notícias. — murmurou enfim. — Nossos aliados em Tactur-2 foram imprudentes. Eliminaram um inquisidor… e uma Matriarca. A cadeia se rompeu. Não haverá mais suprimentos.
O sangue sumiu do rosto de Olson. Ele parecia um homem que levara um soco invisível.
— Sem mais equipamentos…?
— Adaptaremos o que já temos. Roubaremos do próprio Domatorum, se for preciso.
— Isso vai nos expor… — balbuciou, a voz falhando.
— Prefere que eu desista? É assim?
— Nunca! É que…
Um gesto bastou. O Ungido ergueu a mão e algo vivo deslizou de dentro do manto: um tentáculo metálico, cromado, com juntas que se moviam como músculos. Ele serpenteava no ar com uma naturalidade inquietante, quase orgânica.
— Nem se eu lhe oferecer outro aprimoramento?
O coração de Olson disparou. O corpo inteiro tremeu em expectativa. Era medo e desejo ao mesmo tempo. Mais um passo… mais perto do Axioma.
— Se eu tiver maior capacidade de processamento, um modo de pensamento além da raça humana… talvez consiga expandir o plano. Talvez consiga fazer o que precisamos mesmo com recursos limitados.
— Bom. — murmurou a figura, sorrindo da previsibilidade do calculador, enquanto se aproximava.
O tentáculo encontrou os conectores na base do crânio de Olson e se acoplou com um estalo úmido. Ele arfou, a cabeça tombando para trás. Um gemido de êxtase escapou-lhe da garganta, meio humano, meio mecânico. Sob a pele translúcida do crânio, as sinapses azuladas se incendiaram em vermelho carmesim, pulsando como brasas vivas. Os olhos giravam descontroladamente sob as pálpebras fechadas, como se a mente fosse reescrita em tempo real.
— Em breve, meus irmãos estarão conosco… — urrou a figura, agora rindo com um fervor quase religioso. — E então eu abandonarei esta pele imunda.
Bem longe dali, em outro planeta, Raphael, Vida e Alina cruzavam os céus esfumaçados de Tactur-2. Abaixo deles, a cidade se estendia até onde a vista alcançava, um oceano de prédios cinzentos e fumaça densa. O drone fez uma curva brusca antes de pousar numa plataforma suspensa. Um aviso automático ressoou:
— Chegamos ao destino. Favor desembarcar pela direita.
A porta se abriu com um estalo. O aviso era inútil, a porta da esquerda sequer funcionava, e mesmo que abrisse, dava para o abismo sem fim entre os blocos de concreto.
Raphael ergueu o braço e consultou o tablet preso ao punho. Um ponto vermelho pulsava no mapa, marcado como o objetivo.
— Vamos. — Sua voz saiu grave, carregada de um pressentimento ruim.
Desceram até um bloco residencial situado na meia-altura da selva de prédios. Não era luxuoso, mas alto o bastante para receber luz natural, privilégio raro em Tactur-2. A empresa devia render bem aos sócios.
O apartamento de esquina se destacava pela ampla janela de plaxyglass. O vidro polarizado não deixava transparecer nada do interior. Suspeito demais.
Raphael encostou na parede ao lado da porta única de entrada. Testou a maçaneta com cuidado. Estava destrancada.
— Droga… — murmurou. Lançou um olhar a Alina. Ela entendeu sem palavras.
— Quatro presenças vitais lá dentro. — avisou a Matriarca, calma.
Vida, que também percebia a energia vital dos inimigos, assentiu silenciosa.
Raphael puxou a pistola, respirou fundo e empurrou a porta.
O ar ali dentro era diferente: mais parado, carregado, como se o espaço guardasse em si a tensão de quem espreitava.
— Rápido, ele não está aqui. Vamos achar logo a pasta e vazar. — Uma voz masculina vinha do fundo.
Raphael avançava pé ante pé, cada músculo em tensão, o corpo implorando silêncio. Atrás dele, as duas Matriarcas se moviam como sombras. Alina empunhava suas adagas, Vida carregava a espada roubada da herética.
Dois passos adiante, o erro.
Um disco negro erguido do chão explodiu em clarão e estrondo metálico. Não era letal, apenas um alarme.
A luz o cegou por completo. Raphael piscava, tateando, amaldiçoando a falha. Atrás, Alina e Vida, protegidas pelas máscaras polarizadas, mantinham-se prontas.
— Droga! — ecoou de dentro. Passos rápidos se aproximavam.
Um homem irrompeu pela porta disparando sua submetralhadora. Alina reagiu primeiro: lançou-se contra Raphael, derrubando-o para fora da linha de tiro.
Vida rolou pelo chão, desviando da saraivada. Num único movimento, ergueu a lâmina e cortou o peito do atirador antes que este pudesse recarregar.
Outro inimigo surgiu logo em seguida. A mira caiu sobre Vida, dedo no gatilho. Mas a adaga de Alina já voava. Cravou-se entre a clavícula e o pescoço, interrompendo o disparo.
Raphael esfregava os olhos, recuperando a visão.
— Precisamos de um deles vivo — ordenou, seco.
As Matriarcas assentiram em silêncio, já avançando.
Atravessaram para a sala ampla. Dois corredores se abriam à frente. Os inimigos tinham vindo um de cada lugar, protegendo claramente um mesmo cômodo central, provavelmente um escritório.
Vida foi a primeira a espiar. O cano de uma escopeta surgiu da porta e disparou. Ela recuou, atingida de raspão. O impacto doeu por baixo da armadura, uma pequena rachadura surgira na máscara.
— Agh… — deixou escapar.
— Revele-se! — a voz de Alina explodiu, a voz imbuída de poder.
Uma jovem de cabelos verdes surgiu pela porta, a escopeta erguida com as duas mãos.
Raphael não pensou. Dois disparos secos ecoaram no corredor. O primeiro atingiu a arma, arrancando faíscas e jogando-a longe; os estilhaços rasgaram-lhe a face, deixando riscos vermelhos na pele. O segundo tiro explodiu o joelho dela, que cedeu de imediato. A garota caiu, gritando, o corpo contorcido de dor.
Quase ao mesmo tempo, um homem avançou para puxá-la de volta, era um calculador. Erro fatal. A segunda adaga de Alina voou certeira e cravou-se na nuca dele. O corpo despencou sem um ruído, por cima da garota caída.
— Não! — ela urrou, o rosto torcido em ódio. Os olhos marejados cintilaram de fúria, e um sorriso insano abriu-se em seus lábios. Mesmo caída, ergueu o tronco num gesto de desafio final e mordeu com força.
— Não! — gritou Alina, avançando, mas já era tarde.
Os olhos da garota reviraram, deixando apenas o branco à mostra. A cabeça dela pulsou em vermelho, uma, duas vezes, como se uma lâmpada estivesse acesa dentro do crânio.
Raphael não esperou para descobrir o que viria. Agarrou Alina e Vida, uma em cada braço, e se lançou para trás.
A explosão veio no mesmo instante.
O corredor se transformou em caos: fragmentos de ossos, sangue e pedaços de cérebro respingaram nas paredes, no teto, no chão, e até no próprio trio, cobertos pelo impacto.
— Bando de fanáticos malucos… — chiou Raphael entre os dentes, levantando-se devagar. — Vocês estão bem?
Vida e Alina se levantaram com a agilidade de felinos, sacudindo os corpos para se livrar do excesso de sangue e ossos. Mas o grosso da sujeira havia respingado em Raphael, que limpava o rosto com o dorso da mão.
— Estamos sim — disse Alina, recuperando o fôlego. — Obrigada.
— Vamos revistar os corpos — respondeu Raphael, já acionando o tablet para avisar Kelsi do ocorrido. — Fiquem atentas a outras armadilhas. Eles não pensam como nós… são fanáticos.
Encontraram apenas armas pessoais, uma fita de uso geral. Nenhum documento, nada que denunciasse identidades. Os dedos estavam corroídos com ácido, impossíveis de rastrear.
Mas todos traziam no antebraço a mesma tatuagem: um chip e engrenagens, atravessados por uma fagulha aethérica. Raphael reconheceu de imediato. O símbolo circulava desde antes da fundação do Império, o emblema do Axioma Primordial, seita nascida entre I.A.s que haviam professado a ruptura original. Mesmo séculos depois, ainda havia tecnoadeptos que seguiam seu credo, acreditando que a tecnologia era a próxima etapa da evolução.
No corpo do rapaz que havia morrido defendendo a garota de cabelos verdes, Raphael encontrou um pedaço de papel plástico, com a palavra escrita à mão: “Omnit”.
— Provavelmente a pasta que estavam procurando — murmurou Alina.
— E aparentemente não acharam o dono do apartamento — completou Vida.
Raphael assentiu. Suspeitava que Hélio Grandi tivesse se escondido assim que a situação desandou. Ainda era cedo para ligar diretamente à seita, mas era plausível que tivessem sido pagos… ou seduzidos por algo além da compreensão deles para cometer seus crimes.
— Já que estamos aqui, vamos procurar essa pasta então — disse Raphael.
Enquanto Alina se sentava diante do terminal de computador, Raphael e Vida reviravam o cômodo.
Alguns minutos depois, Vida descobriu um fundo falso em uma das estantes: um gabinete disfarçado. Dentro, créditos imperiais… e uma pasta.
O conteúdo era direto: um contrato de aluguel de uma cobertura na zona mais rica da cidade. Assinado pelos três sócios da Mundu, mas o favorecido era outro nome.
“Omnit Enterprises”.
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