Capítulo 01.5 - Limiares entre mundos perdidos
Harley olhou ao redor uma última vez. Algumas crianças, ainda respirando, observavam à distância com uma mistura de fascínio e incredulidade, enquanto a maioria permanecia imóvel nas jaulas afastadas, membros contorcidos em gestos de rendição, como marcas silenciosas de derrota.
Ele desviou o olhar, não suportava ver mais. O sangue seco nas grades que havia mordido tantas vezes em fúria silenciosa permanecia ali, lembrando-o de sua impotência, cada marca de dentes uma rebelião gravada no ferro frio.
As árvores entrelaçadas da Floresta de Espinhos balançavam ao vento noturno, formando garras gigantes que cortavam a escuridão, parecendo prontas para dilacerar o mundo.
Elas haviam sido sua única companhia constante durante anos de isolamento forçado, testemunhas silenciosas de cada lágrima que se recusara a derramar, de cada grito que engolira antes que pudesse escapar.
Tudo que ele conhecia. Tudo que o havia moldado através de anos de treinamento implacável sob seu pai no Clã Adaga Arcana e contras as outras crianças que não tinham nome nem identidade.
A mudança sempre fora aterrorizante. Mesmo quando a vida atual era apenas testes e combate, o desconhecido permanecia incontrolável tal qual uma fera faminta esperando nas sombras.
Harley conhecia as técnicas que seu pai lhe ensinara: cada movimento preciso da Dança das Lâminas, cada respiração controlada do Ritual da Concentração Absoluta, a disciplina brutal que forjava verdadeiros guerreiros do clã desde a primeira infância.
Sua mente havia sido moldada para honrar a linhagem familiar, nunca para sonhar além da próxima lição de combate. Como alguém treinado apenas na tradição ancestral imagina um mundo sem essa herança? Como um prisioneiro de ferro e sangue concebe a liberdade?
A cicatriz ritual em sua palma pulsava com maior intensidade, reagindo à energia residual que ainda vazava do espaço onde o portal havia se aberto. Parecia reconhecer algo além de sua compreensão atual, uma promessa gravada em sua carne que finalmente encontrava eco na realidade.
O peso da pergunta não dita pairava no ar, denso tal uma névoa que se recusa a dissipar. O coração acelerava, e a resposta não seria mais silenciada pelos anos de condicionamento que antes a sufocavam.
— Pronto para quê? — perguntou, voz ganhando força a cada sílaba, quebrando o silêncio que havia sido sua prisão tanto quanto as grades de ferro.
A pergunta ecoou entre as outras jaulas, ricocheteando nas árvores entrelaçadas, carregando consigo uma determinação que ele mesmo não sabia que possuía. Harley Ginsu havia escolhido falar quando poderia ter permanecido em silêncio.
O Vigilante, ainda suspenso no ar noturno, estendeu a mão enluvada. A luz da adaga azul pulsou mais forte, irradiando ondas de energia que faziam o ar vibrar. Pareceu que um véu tecido com a própria escuridão se rasgava diante dele, e o jovem Ginsu viu algo que desafiava toda compreensão: linhas.
Fios quase invisíveis cintilavam feito teias de aranha sob a luz da lua, criando mapas secretos que se estendiam desde sua posição até onde a percepção podia alcançar. Conectavam as jaulas entre si, se estendiam pelas árvores da floresta, subiam em direção às estrelas e mergulhavam profundamente na terra manchada de sangue.
A visão durou apenas um instante, breve demais para decifrar completamente, mas intensa o suficiente para marcar sua mente com a mesma permanência da cicatriz em sua palma. Quando a percepção normal retornou, Harley cambaleou ligeiramente, sentindo como se tivesse olhado diretamente para o sol.
O brilho da adaga azul se intensificou até se tornar quase insuportável, projetando sombras dançantes na paisagem e nas gaiolas. O homem encapuzado manteve o olhar fixo no garoto, e quando falou, sua voz não precisou atravessar o ar, apenas se instalou diretamente em sua mente feito verdade absoluta:
— Para descobrir por que você é diferente.
As palavras ressoaram em seu crânio com a força de um sino de guerra, ecoando através de cada fibra de seu ser. Diferente. A palavra que ele sempre soubera que se aplicava a si, e ainda assim nunca ousara dizê-la em voz alta.
A marca que o separava não apenas das outras crianças quebradas nas jaulas, mas de tudo que conhecia sobre o mundo.
A adaga branca do Vigilante se desfez completamente nesse momento, suas últimas partículas de luz se dispersando no vento frio da madrugada. O artefato de uso único havia cumprido seu propósito, sacrificando sua existência para criar aquela breve conexão entre mundos.
Harley olhou para o espaço onde o portal instável havia existido momentos antes, onde energias caóticas ainda rugiam feito bestas famintas lutando contra correntes invisíveis. O ar ainda vibrava com ecos da passagem dimensional, carregando o aroma metálico de realidades fragmentadas.
Olhou para o homem flutuante que havia mantido tudo aquilo aberto através de pura vontade, sacrificando anos de existência para criar uma oportunidade que talvez jamais se repetisse.
Então, Harley Ginsu sorriu.
Era um sorriso diferente de qualquer expressão que havia cruzado seu rosto durante os sete anos de cativeiro. Não era o sorriso quebrado de uma criança desesperada por aprovação, nem a expressão vazia de alguém que havia desistido de tudo. Era o sorriso de um predador jovem que finalmente havia reconhecido sua natureza verdadeira.
Ainda preso na própria jaula, avançou um passo na direção onde o portal havia existido, plantando os pés descalços no chão manchado de sangue com a determinação de alguém que havia encontrado seu propósito.
Deixou a voz rasgar tudo que tinha dentro de si, liberando anos de fúria contida em um grito que ecoou pela Floresta de Espinhos:
— Então me mostre o que há além dessas jaulas!
O grito cortou a noite, fazendo os galhos entrelaçados das árvores estremecerem. Nas jaulas distantes, alguns corpos quebrados se mexeram ligeiramente, suas almas adormecidas parecendo reconhecer o som da verdadeira rebelião.
As energias caóticas ainda presentes no ar rugiam mais alto, sentindo a iminência de perder uma presa que há tanto tempo cultivavam. O espaço fragmentado onde o portal havia existido começou a se contrair nas bordas, a realidade tentando se recompor, lembrando pele que cicatriza sobre uma lâmina.
Algo novo pairava no ar agora, uma mudança que não podia ser ignorada. Uma tensão diferente, uma promessa não cumprida que pairava entre Harley e o ser dimensional.
O desconhecido homem havia plantado uma semente naquele momento, não apenas a visão das linhas misteriosas, mas algo mais profundo. Uma fome que despertaria quando chegasse o momento certo.
A realidade se fragmentou diante de Harley. Antes que pudesse dar o próximo passo em direção ao espaço onde o portal havia existido, o Vigilante ergueu a palma da mão direita, um gesto universal que cortou o ar entre eles feito barreira invisível.
Pare.
A palavra não foi dita, apenas compreendida, instalando-se em sua mente com a autoridade de uma lei cósmica. O espaço fragmentado terminou de se contrair, as bordas se dobrando sobre si mesmas até que restasse apenas uma cicatriz luminosa no ar que pulsava tal qual ferida mal curada.
O homem encapuzado flutuou por um momento mais, seus olhos azuis estudando cada linha do rosto do garoto, cada tensão em seus músculos jovens forjados pela dor, cada promessa não cumprida que habitava seu olhar faminto.
Havia algo quase melancólico na forma que o observava, tal qual reconhecendo em Harley um eco de algo familiar, uma fome que ele mesmo já havia testemunhado em outros jovens ao longo de milênios incontáveis.
— Ainda não é o momento! — a voz ecoou diretamente na mente do garoto, carregada de algo próximo à compaixão, uma emoção que deveria ser inacessível a seres de sua natureza ancestral.
A frustração explodiu no peito de Harley. Sete anos esperando, sofrendo, se forjando através da dor mais refinada, e quando finalmente uma porta se abria… ainda não era o momento?
O homem encapuzado flutuou mais próximo, sua presença preenchendo o espaço entre ambos. Quando falou novamente, havia peso de eras em suas palavras:
— Sua sede de liberdade… — continuou o Vigilante, a voz assumindo um tom quase paternal que contrastava violentamente com sua natureza interdimensional — É genuína, mas a verdadeira fome ainda não despertou. Quando ela vier… quando a dor se tornar combustível ao invés de paralisia… então você estará pronto para descobrir por que é diferente.
As palavras se alojaram na mente de Harley, fragmentos de vidro invisíveis que enterravam-se no pensamento. Combustível. A dor como combustível. Durante todos esses anos, ele havia apenas sobrevivido à tortura, e agora descobria outra forma de existir com ela, capaz de transformar sua agonia em poder verdadeiro.
A figura encapuzada se dissolveu em partículas de luz azul que dançaram no ar frio da noite antes de desaparecerem completamente. À semelhança de um manto pesado, o silêncio voltou às jaulas, e, com ele, a promessa de tempestades futuras, ressoando possibilidades não realizadas.
Harley permaneceu imóvel, a palma ainda ardendo onde a cicatriz ritualística pulsava com luz residual. Que tipo de teste havia sido aquele? E por que, depois de sobreviver a sete anos do treinamento mais brutal imaginável, fora considerado… insuficiente?
A resposta chegou lentamente. O Vigilante não havia vindo salvá-lo. Havia vindo avaliá-lo. E jovem Ginsu havia falhado em algum critério que ainda não compreendia completamente.
Mesmo na falha, uma esperança permanecia viva. Uma promessa de retorno. Uma indicação de que algo dentro dele ainda precisava despertar antes que pudesse reivindicar seu destino verdadeiro.
Agora, Harley Ginsu tinha um objetivo que transcendia a mera sobrevivência: descobrir que transformação interna o separava da liberdade. E quando essa metamorfose se completasse, estaria pronto para as respostas que o Vigilante guardava.
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