Capítulo 26 - "Instabilidade"
Narrado por Ian
A cama era confortável demais.
E isso… me irritava.
Não era o tipo de conforto que convida ao descanso. Era o tipo que parece zombar de alguém como eu. Como se dissesse: “Vamos, Guardião, finja que pode dormir como qualquer um.”
Fechei os olhos. Em vão. A mente, essa praga… já estava em marcha. Desenterrou memórias como um coveiro descuidado, jogando tudo no meu peito: Jyn. O templo. A dor. O vazio.
O silêncio do quarto, o calor da lareira, tudo parecia terreno inimigo. Não havia barulho para distrair, não havia neve para gelar os ossos. Só eu, sozinho demais com minhas próprias lembranças.
E elas vieram. Como sempre.
Jyn.
O sorriso breve, os olhos carregando mais coragem do que qualquer guerreiro que já conheci. A lâmina curva em mãos pequenas demais para suportar tanto ódio. A queda. O sangue sobre a neve. O silêncio que se seguiu.
Minha respiração falhou.
Foi aí que percebi.
A mana dentro do meu corpo começou a vibrar.
Como se minhas próprias memórias fossem fagulhas jogadas num campo de pólvora. A parede rangeu. O ar ficou mais pesado, denso.
A maldita mana sempre reage. Ela pode até obedece ordens. Mas não segue lógica alguma. Ela responde ao coração a intenção do usuário. E o meu, desde naquele momento, era uma fornalha de dor e arrependimento.
Senti os músculos tensos, o fluxo interno se desordenando. A mana corria em sentidos diferentes, como rios tentando abrir caminho por vales que não existiam. Um frio cortante começou a se formar ao redor da cama, se espalhando pelas pedras.
“Controle-se.”
Mas eu sabia. era bem improvável que ela se acalmasse assim. Não se controla algo vivo. Não se doma o vento, não se ordena o mar e com a mana não era diferente.
O que eu fazia era diferente dos outros. Desde que eu percebi que ela parecia responder, não como uma simples força mas como algo que possuía consciência, simples mas ainda assim consciência.
Respirei fundo, fechando os olhos. senti o sangue correndo nas veias e o seu ritmo, constante, paciente. E então, junto dele, guiei a mana. Não a forcei. Apenas… pedi. Um pedido simples, forçando o controle apenas em partes dela, para mostrar o caminho correto.
“Volte. Siga o mesmo ritmo. Corra como o sangue. Respire comigo.”
Por alguns segundos, nada aconteceu. O frio aumentou. O quarto gemeu com o peso da mana.
E então… como se atendesse a um pedido sussurrado, a mana voltou a se alinhar.
Primeiro nos braços. Depois nas pernas. O peito se acalmou. O ar circulou outra vez. O frio cessou.
Ainda havia o peso da memoria. A cicatriz do passado. Mas agora não estava contida novamente. Afinal era só… parte de mim.
Abri os olhos. O quarto estava igual.
Passei a mão pelo rosto, rindo sozinho.
— Não vai ser hoje que você vai me deixar dormir…. — murmurei. — Ainda não.
Foi então que ouvi.
Trovão.
Baixo. Distante. Como um aviso.
Esperei.
Outro. Mais forte. Mais rápido. Quase impaciente.
Sorri de lado.
— Thamir… sempre dramático.
Me sentei devagar, O quarto estava escuro, mas meus olhos já estavam acostumados. Me levantei, pronto para… fazer alguma coisa. Avisar alguém, talvez, afinal Thamir estava vindo e provavelmente ele ia chegar com tudo, era bom eu avisar alguém.. Ou apenas… sair. Ficar parado era insuportável.
Me levantei, os pés descalços tocando o chão de pedra com um silêncio. A penumbra era minha velha aliada, uma companheira de longa data. Atravessei corredores escuros, virei quinas abruptas, desci escadas estreitas com uma facilidade que vinha de anos de prática. Sem esforço, sem barulho, meus passos eram como um sussurro no silêncio da noite.
Esquivei das runas de alarme por hábito, meus olhos ainda eram treinados para detectar os símbolos fracamente iluminados que cintilavam nas paredes e pisos. Hábitos que nunca morrem, movimentos que se tornam instintivos com o tempo. Eu sabia exatamente onde pisar, onde evitar, onde me esconder.
A cada passo, minha mente se silenciava se concentrando na tarefa a minha frente, mais conectado ao ambiente ao meu redor. A pedra fria sob meus pés, o ar úmido que pairava nos corredores, o silêncio que era quase palpável. Eu era quase uma figura espectral que se movia sem ser vista.
Passei correndo pelos corredores desviando de tudo que parecesse ser perigoso com velocidade afinal eu estava sozinho. Ou, pelo menos, eu pensava que estava. fui surpreendido por sombras de duas guardas, deslizando silenciosamente pelas paredes, por sorte consegui reagir a tempo mudando de direção dando de cara com uma passagem que levava a uma escadaria da ala externa.
Caminhei até a ala externa do salão, onde a estrutura encontrava a muralha lateral. Daquele ponto, eu poderia subir.
Subi.
O vento aumentava conforme eu ganhava altura, e meus pensamentos vinham junto.
A última vez que liberei tanta mana… foi quando perdi Jyn.
Depois daquilo, me recusei a sentir tanto de novo. A magia de gelo amplifica emoções, e desde a liberação da minha segunda linhagem. as minhas… nem sempre são seguras.
Mas eu precisava dos outros. Precisava deles. Como nos velhos tempos.
Como naquela época em que éramos quatro idiotas jogando magia contra monstros maiores que nosso bom senso.
Quando cheguei à varanda externa do andar mais alto, vi a torre à frente e uma tempestade de aproximando. Logo acima de onde estava parecia ser o quarto de alguém importante, estava cheio de runas de proteção, mas essas runas tinham um problema simples, elas percebiam alterações na mana para avisar sobre intrusos. Mas bom… é fácil para mim andar sem gerar muita perturbação.
então saltei.
Aterrissei como sombra. Pé firme. Respiração contida, é mesmo após anos sem pratica ainda levo jeito… Mas não fui o único.
— … — parei.
Ela estava lá.
Lys.
Próxima a janela. Mas do outro lado do parapeito, ela estava olhando para o horizonte quando me notou.
Com os cabelos soltos dançando ao vento e a camisola longa.
Ela virou o rosto devagar. O brilho azul-violeta nos olhos refletia a tempestade que se aproximava. E me olhava com uma expressão que parecia duvidar do que estava vendo.
E, pela primeira vez naquela noite, minha mente silenciou.
— …Oi.
Foi tudo que consegui dizer.

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