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    Eles começaram a se aproximar lentamente, fechando o círculo ao redor dele e de Plutarco que finalmente mostrava seus primeiros sinais de inquietação.

    Foi quando uma voz calma, mas cheia de uma autoridade inquestionável, cortou a tensão.

    — Parem! Em nome dos deuses, o que estão fazendo?

    A multidão se abriu, como o mar diante de um profeta. Um homem de meia-idade, com um rosto gentil e mãos calejadas pelo trabalho com ervas, caminhava em direção a eles. Seu olhar, que transmitia compaixão e sabedoria, passou pela turba com uma repreensão silenciosa. Os aldeões recuaram, a fúria em seus rostos dando lugar à vergonha. Era o Curandeiro.

    Ele ignorou a hostilidade e se ajoelhou ao lado de Teseu, o rosto cheio de uma preocupação paternal.

    — O medo envenena o julgamento, meus amigos. Já não conseguem mais reconhecer um simples garoto quando veem um? — Sua voz madura tinha um tom inconformado.

    Com uma calma profissional, ele examinou o ferimento. Com mãos gentis, removeu a faca e tirou um pano de linho limpo de sua bolsa, pressionando-o contra o corte para estancar o sangue.

    — Mas meu senhor, não se lembra de quando esses desgraçados usando esta mesma armadura levaram seu filho? — A voz do homem histérico de antes ressoou como uma reclamação.

    — E você acha que eu me esqueceria de algo assim? Como ousa me perguntar se me lembro? — O velho urrou, irritado. 

    Ele encarou o homem por alguns segundos em silêncio. A multidão se calou também, acompanhando o clima tenso de toda a situação.

    Foi quando o velho suspirou.

    — Mas eu também me lembro do sorriso inocente de meu filho, da forma que ele ria contando das brincadeiras do dia. Eu sei reconhecer um garoto inocente quando vejo um, Ergos.

    As pessoas voltaram a cochichar, o homem histérico, Ergos, rangeu os dentes e cuspiu no chão. E então, ele se virou, abrindo espaço para si mesmo entre as pessoas e foi embora.

    O senhor de idade se virou de novo para o rapaz.

    — Eu sinto muito meu jovem. Depois do que os soldados fizeram com nossa vila meses atrás, ninguém aqui foi mais o mesmo. — Explicou. — Temo que seja mais seguro para você e seus amigos que acampem fora dos muros esta noite.

    O conselho foi dado pelo ancião em uma voz baixa, sussurrada, mas em um tom caloroso, preocupado.

    Teseu, grato e ainda em choque pela traição, apenas assentiu. O Curandeiro limpou a ferida e guardou o pano usado de volta na bolsa. Então, ele puxou uma tira de pano e a usou para aplicar uma pasta de ervas que pareceu aliviar a dor ardente.

    Aos poucos, a multidão começou a se dispersar, os últimos sendo os três trabalhadores que protagonizaram a briga. Esses, só saíram quando o velho se levantou, chamando-os para que o acompanhassem. Ainda desconfiados, eles o seguiram, dando um ou dois olhares de descrença para Teseu e Plutarco.

    Afastando-se da cidade, o trio caminhou em silêncio pela estrada de terra, o som da multidão enfurecida finalmente desaparecendo atrás deles. O sol começava a se pôr, pintando o céu de laranja e roxo.

    — Deixe-me ver isso — disse Plutarco, parando e se aproximando de Teseu com uma expressão preocupada. — Aquele homem… ele não lhe deu o pano. Sua mão deve estar sangrando novamente. Tenho algo aqui que pode servir.

    Plutarco começou a vasculhar sua bolsa em busca de um pedaço de linho limpo. Teseu o deteve com um sorriso cansado.

    — Não é necessário, Plutarco. Agradeço a preocupação.

    Ele estendeu a mão ferida. O escriba parou, os olhos se arregalando em pura incredulidade. Não havia ferimento. Nem sangue. Nem mesmo uma cicatriz. A pele da palma da mão de Teseu estava intacta, os calos do treinamento com a espada a única marca visível.

    Como se nunca houvesse sido ferido.

    Plutarco parou por uns instantes e puxou mais uma vez sua tabuleta com o fervor de um artista inspirado.

    Teseu suspirou para a cena, não compreendia seu entusiasmo. A estrada em que seguiam já encontrava as primeiras árvores da floresta.

    — É, parece que não vamos mesmo parar hoje. Pé na estrada.

    Foi então que uma brisa soprou na estrada que eles seguiam. Folhas caíram das árvores acima banhando os dois com uma natureza viva. Plutarco não deu atenção e seguiu concentrado em suas crônicas.

    Teseu, por outro lado, procurou interessado entre as árvores, até avistar. A Dríade. Natural, selvagem. Seus cabelos de um tom esverdeado escuro e muito graciosos em sua arrumação rebelde caíam sobre os seios. 

    Ela não usava roupas, nunca usou. Uma fina camada de folhas secas cobriam suas partes, feito uma escultura delicada que busca ser bela, natural, mas não vulgar.

    Não se preocupe, Jovem Herói. Não tenha pressa para seguir na estrada ainda. — A voz dela soprou uma brisa quente na tarde fria, como se as próprias folhas que caíam sussurrassem aos ouvidos de Teseu. Um sorriso gracioso e amistoso ilustrou sua fala.

    — O-o que você quer dizer com isso? — O jovem herói engoliu em seco com a visão. 

    Ela havia mudado? 

    A criatura aparecia para ele às vezes e era, sempre que o fazia, algo a se contemplar. No auge de seus dezesseis anos, Teseu não sonhara em ver qualquer mulher com beleza comparável à da própria natureza.

    O vento soprou mais uma vez, e Plutarco se apressou para agarrar seus pergaminhos que ameaçavam escapar e voar de sua bolsa com a ventania.

    — Bem que vocês poderiam aprender a soprar menos enquanto falam! — O escriba afirmou com uma expressão irritada enquanto lutava para abraçar seus papiros.

    E então, o vento começou a diminuir, voltando à mesma brisa fraca que soprava na estrada.

    Há algo selvagem nessa cidade, Jovem Herói. Algo perigoso e ancestral. — A Dríade afirmou, seu rosto migrando do sorriso amistoso para uma fachada de preocupação.

    Teseu engoliu em seco. Olhou para trás, para a estrada de que vinha. Para os muros de Pella. Algo de estranho certamente acontecia na cidade, mas seria ele realmente o mais apropriado para investigar?

    …………

    Longe da estrada poeirenta e do sol poente, nas entranhas de pedra sob a cidade de Pella, a escuridão reinava.

    Não era o negrume limpo de uma noite sem lua, mas uma escuridão espessa, úmida, com o cheiro de pedra mofada, de químicos azedos e de algo mais. Um odor metálico e adocicado de sangue velho e carne em decomposição que se agarrava ao fundo da garganta.

    Um borbulhar baixo e constante vinha de alambiques de vidro, onde líquidos de um verde doentio se contorciam sob chamas fracas, lançando uma luz fantasmagórica que mal perfurava as sombras. 

    A luz revelava vislumbres de um santuário profano: prateleiras de madeira escura repletas de frascos, onde órgãos flutuavam em conservas turvas e pequenas criaturas disformes — um rato com asas de morcego, um filhote de pássaro com patas de aranha — estavam congeladas em uma exibição macabra. 

    Nas paredes de pedra, diagramas anatômicos de seres impossíveis, monstros mutantes e bestas de pesadelo, estavam pregados ao lado de cartas celestes que mapeavam constelações desconhecidas.

    Mas o centro daquela blasfêmia, o foco de toda aquela loucura contida, estava no fundo da câmara.

    O corpo de um homem, pálido e emaciado, estava suspenso no ar. Não por cordas, mas por uma teia grotesca de tubos de bronze e vidro que serpenteavam para dentro e para fora de sua carne, conectando-o a frascos maiores que pulsavam lentamente com o mesmo líquido enegrecido. 

    O som de pedra se arrastando ecoou pelo silêncio. Uma seção da parede deslizou para o lado, e uma figura, envolta em um manto escuro que a tornava uma mancha de negrume ainda mais profundo, adentrou o laboratório. Seus movimentos eram calmos, metódicos, os passos de um mestre em seu domínio.

    A figura sombria caminhou até uma mesa de trabalho de madeira escura, colocando sobre ela um pequeno objeto. Então, moveu-se para o centro da sala, passando sob um dos feixes de luz verde que emanava de um alambique.

    A luz doentia tocou primeiro em suas mãos. Eram longas e pálidas, com dedos finos e precisos de um cirurgião, manchados por químicos escuros que com o tempo tinham se impregnado na pele.

    Ele ergueu a cabeça, e o capuz recuou, revelando um crânio liso e pálido, que brilhava com uma umidade doentia sob a luz esverdeada. O rosto que emergiu das sombras era o mesmo que a cidade de Pella respeitava, mas a alma por trás dele era a de um estranho, um monstro. 

    As linhas de preocupação paternal haviam se transformado em sulcos de uma concentração fanática. A boca, antes pronta para oferecer palavras de conforto, estava comprimida em uma linha fina e cruel. E os olhos… os olhos, que podiam ser confundidos com poços de sabedoria e compaixão, agora ardiam com o brilho febril de uma obsessão que beirava a loucura. 

    O Curandeiro de Pella.

    Ele ignorou a vítima suspensa em sua agonia silenciosa. Ignorou os experimentos profanos que borbulhavam ao seu redor. Com uma lentidão quase reverente, seu olhar desceu para o pequeno objeto que ele deixou sobre a mesa de trabalho.

    Ali, sob a luz verde e fantasmagórica, repousava o pano de linho, manchado com o vermelho vibrante do sangue de um Herói.

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