A noite havia sido longa, e o sono de Kazuto não trouxera descanso. Ele sonhara com corredores intermináveis de pedra, todos mergulhados em sombra e neblina. Vozes ecoavam por todos os lados, mas não eram vozes normais: pareciam pensamentos alheios, invadindo a sua mente sem pedir permissão.

    “Kazuto…”, alguém sussurrava dentro do sonho.
    “Kazuto…”, repetia outra voz, mais grave.
    E então, um rugido. Não humano, não animal. Algo entre os dois, como se a própria alma tivesse dentes.

    Ele acordou de súbito, o coração acelerado, o peito arfando como se tivesse corrido uma maratona. O teto de pedra fria do dormitório do Refúgio da Lua Calada não oferecia consolo. Nem a brisa úmida que escorria pelas janelas estreitas.

    A primeira coisa que notou foi o silêncio. Um silêncio cheio, pesado, como se a pedra e a neblina sugassem qualquer som antes que ele ecoasse.

    Himari já estava acordada. Sentada na beira da cama, penteava o cabelo loiro com uma energia que parecia destoar da atmosfera densa do lugar. Ao notar Kazuto desperto, arqueou a sobrancelha.

    — Dormiu mal, né? — perguntou, sem rodeios.

    Kazuto esfregou o rosto. — Só… sonhei demais. Ainda não me acostumei com o silêncio daqui.

    Nariko, deitado na cama de cima, virou-se com um resmungo. — Silêncio? Você não ouviu? — bocejou, coçando a barriga. — Parecia que tinha gente correndo pelos corredores a noite inteira.

    Kazuto piscou, confuso. — Correndo?

    Himari franziu o cenho. Chen Hua, sempre impecável, já dobrava cuidadosamente o uniforme de treino. Ele parou por um instante, como se estivesse pensando se devia falar algo. Quem respondeu, porém, foi Sora, de voz firme, sentado com os olhos fixos na parede:

    — Não era pressa. Era missão. Dois Shisai saíram ontem à noite.

    As palavras ficaram suspensas no ar como poeira iluminada pelo sol da manhã.

    Missão. Mesmo Kazuto, novato, entendia o peso disso.

    O grupo saiu para o refeitório. O caminho pelos corredores de pedra parecia mais estreito do que nunca. O frio das paredes passava para a pele. Alguns aprendizes atravessavam o corredor em silêncio, evitando olhares, como sombras vivas.

    Quando entraram no refeitório, esperavam barulho, conversas, vida. Mas o que encontraram foi o oposto: o espaço estava lotado de jovens, mas reinava uma calma pesada. As vozes eram apenas sussurros. Olhares rápidos iam e vinham, mas ninguém ousava rir ou falar alto.

    Sentaram-se juntos, mas logo perceberam que eram observados. Não por importância, mas porque todos ali carregavam a mesma dúvida: quem será o próximo?

    Chen Hua foi o primeiro a quebrar o silêncio. — Vocês ouviram alguma coisa?

    Um garoto da mesa ao lado inclinou-se, como se compartilhar fosse perigoso. — Foi em Kyoto. Um garoto… quase da nossa idade.

    Kazuto sentiu o coração acelerar. O garoto continuou, baixo, rápido:

    — Ele despertou sem aviso. O Feralis tomou conta. Dizem que Mikael e Ilma foram chamados.

    Himari cobriu a boca com a mão. — Dois Shisai? Para um garoto?

    — Se mandaram os dois… não era coisa pequena. — respondeu o garoto, e logo voltou a comer em silêncio, sem mais palavras.

    Nariko bufou. — Ah, ótimo. Então a qualquer momento posso acordar com uma fera no lugar da minha cara.

    Sora bateu o punho na mesa. — Não é piada, Nariko. Isso pode acontecer com qualquer um de nós.

    A tensão cresceu. Ninguém sabia o que dizer.

    Foi Himari quem quebrou o silêncio. Sua voz saiu baixa, mas trêmula. — E se… acontecer comigo? Se eu perder o controle e… machucar vocês?

    Kazuto travou. A lembrança do ataque de Tommy voltou como um golpe. O isopor endurecido, cortante, perfurando carne e concreto. O olhar vazio, enlouquecido. Tommy havia sido consumido. Nada sobrara.

    Chen Hua respirou fundo, tentando trazer firmeza. — É por isso que estamos aqui. Para aprender a controlar. Se não… somos só bombas esperando explodir.

    Nariko soltou uma risada nervosa, quase um soluço. — Controle? Você viu o Lau? Nosso professor luta com uma vassoura! Se eu perder a cabeça, não tem varrida que dê jeito.

    Himari encarou o prato, sem resposta.

    Sora olhou para eles com seriedade, seus olhos faiscando com raiva pura. — Se eu perder o controle… não quero que tentem me salvar. Quero que me parem.

    As palavras ecoaram como sentença. Todos prenderam a respiração. Kazuto sentiu a garganta fechar.

    Foi então que aconteceu. Um arrepio percorreu a espinha de Kazuto. Uma sensação estranha, como se o ar tivesse se tornado mais denso, preenchido de pensamentos.

    “Kazuto…”, a voz ecoou dentro da sua cabeça. Não era lembrança. Não era sonho. Era agora.

    Ele girou o rosto rápido, mas não havia ninguém atrás.

    — O que foi? — Himari perguntou, notando seu olhar assustado.

    — Eu… achei que ouvi alguém me chamar. — ele respondeu, hesitante.

    Chen Hua estreitou os olhos. — Vozes? Aqui?

    Antes que alguém pudesse continuar, o refeitório inteiro caiu em silêncio absoluto. Não um silêncio natural, mas aquele que nasce do medo.

    Os passos ecoaram primeiro. Lentos, mas inevitáveis.

    Mikael entrou.

    Ele parecia parte do ar. Seus cabelos claros caiam sobre os olhos cinzentos. Sua expressão era calma, quase vazia. Mas havia algo nele… algo que fazia até a neblina parecer respeitosa.

    Ele caminhou entre as mesas. Ninguém ousava falar, ninguém ousava se mover.

    Quando passou pela mesa de Kazuto e seus colegas, parou.

    Um a um, os olhos dele pousaram sobre eles. Himari estremeceu sob o olhar. Chen Hua ficou rígido. Nariko engoliu seco. Sora manteve firmeza, mas seus dedos tremeram sob a mesa.

    E então os olhos dele encontraram Kazuto.

    Por um instante, Kazuto sentiu sua mente aberta, vasculhada. Como se Mikael tivesse mergulhado em seus pensamentos, em seus medos mais íntimos. Um frio percorreu cada nervo. Era como estar nu diante de um espelho invisível.

    Então Mikael virou-se e continuou andando, sumindo pelo corredor sem uma palavra.

    Demorou longos segundos até que alguém ousasse respirar.

    — Se ele olhou desse jeito… — Nariko murmurou, a voz falhando. — …é porque já sabe. Ele sempre sabe.

    Depois da refeição, o grupo saiu para o pátio. O sol tentava atravessar as nuvens, mas a neblina não cedia. O ar era úmido, pesado, como se cada respiração carregasse mais do que deveria.

    Himari abraçou os próprios braços. — Não sei se quero ver de perto um despertar desses.

    Sora respondeu de imediato: — Eu quero. Preciso saber contra o que estamos lutando.

    Chen Hua suspirou. — Não contra eles. Contra nós mesmos.

    Kazuto ficou calado. Sentia ainda a presença de Mikael dentro de si, como se sua mente tivesse sido marcada. Pior ainda, lembrava da voz que sussurrou seu nome.

    Ele sabia. Mikael sabia.

    Mas o que exatamente?

    Kazuto olhou para o céu, onde a luz tentava vencer a escuridão. Uma certeza cresceu dentro dele: o caso em Kyoto não era exceção. Era um aviso.

    Mais cedo ou mais tarde, cada um deles teria que enfrentar a própria fera.

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