Índice de Capítulo

    Jonas ergueu a mão até a vela, sentindo o agradável calor que o protegia contra o frio noturno.

    Ouvia o som das gotas de chuva caindo. Era difícil saber quando iria chover e quando não naquele lugar. O céu permanentemente nublado dava poucas previsões de tal coisa. O que tornava o tempo imprevisível. Imprevisível como cada momento parecia ser.

    — Caralho, eles tinham que ir logo para aquele lugar? — lamentou.

    — Francamente, é muito azar achar um canto bom e no mesmo dia esse lugar sumir — comentou Leandro enquanto massageava os ombros de Graça.

    — Não temos o que fazer. Logo, logo os outros times vão saber a localização e aí, adeus dinheiro fácil — Eric balançou o braço com a palma da mão levantada, como se estivesse se despedindo de alguém.

    — E qual o problema dos outros andarem por lá, eles vão colher as flores também? — perguntou Graça.

    — Colher as flores não. Acontece que — respondeu Jonas, parando ao não ter certeza de como explicar. — Diz aí Eric, já que foi tu quem procurou saber.

    Eric suspirou, inclinando-se para trás enquanto segurava com as mãos as pernas cruzadas. Os pratos do jantar daquela noite estavam ao redor da vela. Uma ave parecida com uma galinha — porém com quatro asas ao invés de duas — nozes secas e pão com sementes misturadas à massa. Um suco de alguma fruta meio doce, meio ácida, molhou suas bocas enquanto comiam.

    — Aqueles caras mataram um monstro bem grande e problemático que tinha um território ao redor da cidade. Aparentemente ninguém sabia desse bicho porquê ele ficava enfiado em uma gruta durante o dia e só saía pra caçar a noite — Começou a balançar para frente e para trás enquanto falava. — Mas parece que é por causa dele que aquela área era tão largada.

    — Mas você disse que ninguém sabia dele — apontou Leandro, parando de massagear os ombros de Graça e sentando ao lado dela. A mulher maneta alisou carinhosamente o cabelo do jovem com a mão disponível.

    — As pessoas, não. Agora os monstros, esses sabiam. Por isso não se aproximavam.

    — E aqueles animais que vimos hoje? — questionou Graça.

    — Eu procurei saber com uma certa galera lá embaixo e são fanzos. Pense neles como furões, toupeiras ou algum bicho do tipo. Ocupam o lugar de presas de coisas maiores na cadeia alimentar e, aparentemente, a pele deles vale algumas moedas também. Se eu soubesse disso, teríamos pegado alguns naquela hora.

    — Nem pense nisso — repreendeu Graça de forma severa.

    — Calma, senhora, são só bichos, e também não faz diferença agora, já que vai ser difícil voltar praquele lugar — acalmou-a Jonas.

    — Mas, me diga melhor o porquê, pois eu ainda não entendi — desejou Graça.

    — Tá, eu já ia falar — tomou a palavra Eric. — Animais pequenos permaneciam alí. Mas os grandes, os predadores — Uniu as mãos, pondo-as em formato de presas —, não. Isso porque não se atreviam a disputar o território com a lamgrisça, ou seja lá como se chama aquela centopeia gigante. Só que agora que ela foi morta, os bichos maiores vão começar a passear por lá. E os aventureiros vão bem atrás deles para transformar o lugar em um abatedouro. E aí, adeus nosso canto da grana.

    Leandro ergueu uma sobrancelha.

    — Abatedouro?

    — É como eles chamam os locais de caça a monstros — elucidou Jonas, já cansado de ouvir a voz de Eric explicar as coisas.

    — Mas porquê devíamos nos preocupar com isso? — insistiu Graça.

    Eric suspirou.

    — Ela não estava lá da outra vez — lembrou Leandro.

    — É que quase tivemos problemas por causa de um monstro que escapou de outro grupo e nos atacou — explicou-lhe Jonas. Enquanto falava, notou Eric estalar a língua e Leandro soltou um longo e audível suspiro.

    — O problema é esse. Mais caras andando por lá, matando monstros e nos enxotando pra outros cantos — praguejou Eric, deitando-se de costas no chão.

    Jonas sentiu o amargo gosto se espalhar por sua boca enquanto considerava essa situação.

    — Pelo menos conseguimos algum dinheiro hoje — lembrou Leandro.

    — Não o bastante pra conseguirmos melhorar nossa vida — rebateu Eric. Leandro deu de ombros.

    — Pelo menos veja o lado positivo da situação — refletiu Graça. — Aquela coisa estava lá e nem sabíamos disso. Ela poderia ter atacado um de nós.

    Eric não respondeu.

    Leandro se levantou e caminhou até a janela, se pondo a observar o lado de fora.

    Através das paredes, Jonas ouvia os ecos de cinquenta vozes, falando, cantando, gritando e gemendo, mas o silêncio naquele quarto parecia-lhe de uma forma mais nítido do que todo o resto.

    — Mas e agora, fazemos o que? — perguntou a ninguém em específico.

    — Caçar ratos? — Leandro sugeriu, virando-se de volta para eles.

    Jonas não conseguiu reprimir um grunhido de nojo e aversão pela ideia. Leandro riu, como se já esperasse essa reação, e voltou a olhar pela janela. Ouviu o som da respiração calma de Eric e percebeu que ele dormia no chão.

    — Vai dar certo, querido, acredite — disse-lhe Graça.

    Se reclinando para trás e fechando os olhos, ele respondeu:

    — Tomara.

    “Tomara.”

    De olhos fechados ouviu o som da mulher ao se levantar. Os passos de Leandro a ajudá-la e então conduzi-la até a cama. Ouviu os sons das incontáveis gotas de chuva caindo sobre o telhado. Do vento batendo contra a janela. Dos gemidos nos quartos ao lado. Da canção que lá embaixo cantavam.

    Ouviu tudo e um pouco mais, e então dormiu. E sem desejar, sonhou.

    Estava deitado de lado, a cabeça encostada em algo macio e quente. As coxas de uma mulher, percebeu.

    Via luzes e sombras, mas não conseguia dizer se seus olhos estavam abertos ou fechados. Uma mão acariciava a lateral de seus cabelos. Tinha cheiro de flores.

    Marcha soldado, cabeça de papel.

    Ouviu uma voz cantar. Era a mulher que o tinha em seu colo.

    Se não marchar direito, vai preso no quartel.

    Era calma, madura, acolhedora.

    O quartel pegou fogo, São Francisco deu sinal.

    Ele a conhecia, sabia, mas não lembrava quem era.

    Acode, acode, acode a bandeira nacional.

    Fez-se o silêncio. A mão ainda a alisá-lo suavemente. Sua vista clareou. Notou uma visão familiar de um lugar que detestava lembrar. O quarto em que sua mãe trabalhava. Então uma perturbadora ideia lhe ocorreu. Tentou mover a cabeça para ver quem era a mulher que o mantinha no colo, mas seu pescoço não reagia. No entanto, não achou ruim. Seu corpo estava dormente. Sentiu um cheiro forte e doce, enojante.

    Ouviu mais uma música se iniciar. Também lhe era familiar.

    Se essa rua, se essa rua, fosse minha. Eu mandava, eu mandava, ladrilhar.

    Notou, no entanto, uma voz diferente a cantar. 

    Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes.

    Mais seca, anímica, quase lamentosa.

    Para o meu, para meu amor passar.

    A música continuou. A cada verso a mão alisava seu cabelo com mais força, chegando ao ponto de quase o arrancar na última estrofe. Então o solto e permaneceu assim pelo tempo de três respirações.

    Sua vista mudou. Estavam no meio da quadra da escola, de frente para a arquibancada vazia. No entanto, Jonas ainda não conseguia ver quem cantava. E logo outra música começou. O leve cheiro do perfume juvenil invadiu suas narinas.

    Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar.

    Ele a reconheceu. A mão não mais alisava seus cabelos.

    Vamos dar a meia volta, volta e meia, volta e meia vamos dar.

    Era desafinada como se lembrava. Hesitante como costumava e tão real que lhe dava arrepios.

    O anel que tu me destes era de vidro e se quebrou.

    Conseguiu virar o rosto e sentiu um calor escorrer por seus olhos.

    O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.

    Ela o olhava de volta e mais uma vez o negava.

    Jonas pulou para o lado, engatinhando para se afastar dela, que continuava a encará-lo.

    Tentou falar seu nome, mas com um piscar de olhos, o rosto dela mudou. Não era mais a garota por quem havia se apaixonado, mas a mulher que lhe dera a luz e que o havia deixado.

    Os olhos negros, manchados pela maquiagem e pelas olheiras fitavam-no sem qualquer traço de ternura.

    Ela abriu a boca, mas tudo que Jonas ouviu foi a voz de sua avó e de repente lá estava seu rosto, olhando-o com pena e pesar. Falando as palavras que – cria ele – sempre devia pensar.

    — Sua! — As três vozes disseram ao mesmo tempo.

    Jonas as encarou sem entender.

    — Ele iria ficar comigo. Me amava, eu sabia. Éramos felizes juntos, até que… você — sua mãe chorava, borrando a maquiagem pesada. — E então ele me deixou — bradou, estapeando Jonas no rosto.

    A força o fez virar para o lado, onde viu sua avó. As delicadas mãos da idosa tocaram suas bochechas doloridas.

    — Foi difícil. — disse. — Ver ela destruir seu futuro aos poucos. Passar incontáveis noites acordada, esperando-a voltar só para vê-la fora de si depois de vender tudo de valor que tínhamos — Ela tirou a mão e Jonas se sentiu mais frio. — Não é sua culpa, eu sei, mas sempre que te vejo lembro dela. Da falha que foi. Da mancha em nossa vida — terminou de dizer sem nenhuma emoção na voz, fosse tristeza ou raiva, ternura ou ressentimento. Era como se nada estivesse alí. O que para Jonas foi pior do que qualquer coisa.

    Então ele ouviu a terceira voz falar e seu corpo tremeu.

    — Poderia ter salvo todos nós. Contado aos professores sobre Fernando. Evitado tudo isso — Se viram na quadra. Os tiros a acertando, deixando buracos negros e manchas vermelhas crescentes por seu corpo. — Podia ter me poupado de te dar uma resposta, mas preferiu estragar tudo. Não era o bastante. Você não foi o bastante.

    — A culpa é sua! — disseram em uníssono.

    Foi demais. A garganta se transformou em um nó e tudo ao seu redor pareceu se desmanchar. Ouviu mais uma vez o som do tiro, e a voz que o mandava acordar.

    “Sonhos e pesadelos”, ela dizia.

    “Sim”, Jonas respondia, e tudo começava.

    Viu a mãe novamente, mas oito olhos estavam em seu rosto, e seus braços eram cobertos por uma membrana de couro, como asas de um morcego. Ela voava e berrava desaparecendo na noite.

    Viu Tulio caído no chão, clamando por socorro, antes de ser desmembrado por meia dúzia de lobos gigantes.

    Viu a avó amarrada a uma árvore em um pântano sombrio. E momentos depois viu a mesma gritar enquanto tudo era consumido pelo fogo.

    Viu Julia perguntar-lhe por que não falava com ela, e então, a bocarra de um demônio feito de sombras e névoa se fechou sobre seu pescoço e cabeça.

    Viu isso, e ouviu… outra música, cantada por outra voz.

    Era melodiosa, suave, imaculada. Tranquilizante.

    Abriu os olhos na escuridão do quarto, frio por conta da fria madrugada. O suor se derramava em sua testa e corpo, enquanto sentia outro fluído escorrer por seus olhos.

    Não chovia mais.

    Mesmo com seus ouvidos aguçados, percebeu como a madrugada estava silenciosa, à exceção daquela voz. A mesma que havia ouvido em seus sonhos.

    Do lado da Janela ele viu uma figura modesta, feminina e delicada de apenas um braço sentada em uma cadeira, e percebeu que dela vinha a encantadora voz, com pouco volume, como se fizesse o mínimo esforço para ser ouvida. Cantava uma música que ele também conhecia. Quase conseguia ouvir o som dos violinos tocando enquanto o navio afundava.

    Então me alegrarei, perto de ti, meu rei. Perto de ti meu rei. Meu Deus de ti, 

    Era uma bela música, Jonas tinha de admitir, e na voz de Graça se tornava quase divina, fazendo jus a sua letra.

    Só então Jonas notou outra figura próxima a Graça – em seu colo, específicamente. Não era humana, mas logo a reconheceu.

    Se ergueu de repente, assustando Graça e o animal que com ela estava, que saltou no chão se pondo em pé e soltando um som particularmente irritante para Jonas, confirmando o que já ele já suspeitava.

    Era um fanzo.

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