O chão ainda vibrava sob os pés de todos.

    A chegada de Thamir não havia trazido apenas trovões. Ele deixara para trás um rastro elétrico na pedra, nos ossos, no ar da cidadela. Altheria parecia menor diante daquela presença. A moral das tropas, por mais treinadas que fossem, se agitava em ondas visíveis, escudos apertados contra o peito, lanças erguidas sem firmeza, olhos arregalados buscando uma ordem que ainda não havia vindo.

    Até os combatentes do Círculo, homens e mulheres que se orgulhavam de não se abalar nem diante da fúria da Barreira, dividiam a incredulidade de Lysvallis.

    E Ian… Ian estava sorrindo.

    Como se tudo aquilo fosse parte de um jogo antigo que apenas ele e Thamir sabiam jogar.

    Lys sentia o corpo inteiro em alerta. A mente trabalhava em espirais rápidas, procurando ordens, protocolos, precedentes. Não havia. Guardiões eram lendas, mesmo para uma rainha. A nova geração dos Guardiões não se comparava àqueles que estavam diante dela agora. Era como tentar medir uma tempestade com a mesma régua que se mede a brisa.

    E agora havia dois. Dois desastres naturais respirando o mesmo ar que o seu povo.

    Ela inspirou fundo, mas o ar veio denso, carregado de mana. O coração batia com força, não de pânico, ainda não. mas de algo que ela raramente permitia, expectativa.

    Foi quando sentiu.

    Um novo tremor.

    Diferente do trovão, vindo como uma vibração pela terra.

    Era algo mais denso. Mais bruto. Como se a própria montanha se contorcesse sob os pés. O som era surdo, ritmado, lembrava o compasso de tambores de guerra. O tipo de som que fazia pássaros se calarem, cães se encolherem e soldados engolirem em seco.

    A terra ao sul começou a se mover, as placas de gelo que cercavam a clareira tremeram. Alguns guardas recuaram de imediato, instinto mais rápido que disciplina. Outros ergueram lanças, e os magos mais jovens ativaram runas de contenção.

    — Agora o chão vai abrir também? — murmurou a vice-líder, postura já em guarda, olhos estreitos.

    Ian se virou ligeiramente. Não parecia assustado. Mas carregava um toque de preocupação. Seus olhos estavam atentos.
    — Ela está chegando! — disse. A voz cortou o vento como uma lâmina. — Magos, ergam suas proteções!

    O modo como ele disse aquilo… já era resposta suficiente.

    A terra rompeu.

    Do horizonte, uma figura surgiu cuspida do próprio solo, caminhando com a elegância brutal de uma avalanche.

    A armadura era feita de placas rochosas que se encaixavam como um corpo vivo. Os ombros largos sustentavam tranças grossas, presas com tiras de couro escurecido pela poeira. Os olhos, em âmbar, queimavam como brasas enterradas.

    Naira.

    Ela não correu.
    Pisou.

    E cada passo fazia o chão vibrar, rachava a relva, erguia lascas de pedra em forma de espinhos. O campo sul parecia curvar-se para recebê-la.

    Lys, por um instante, esqueceu de respirar.

    É isso que significa ser Guardião? — pensou. A proporção das Habilidades deles estavam completamente fora da escala… “Eles ao menos são humanos?!”

    — Minha Rainha, quais as suas ordens? — a voz grave veio de Malrik, o mais velho do Círculo, acompanhado de Neriah.

    O rosto dele era rígido, mas o olhar denunciava preocupação. Ele não estava pensando apenas na cena à frente, mas no que aconteceria se aquilo fosse replicado no coração da cidade.

    Lys respondeu rápido:
    — Se ainda houver civis nas proximidades, evacuem todos. Agora!

    Neriah já assentia, mas não teve tempo de agir.

    Naira havia parado a trinta metros deles.

    Não falou nada.

    Só ergueu o braço.
    E arrancou do solo um fragmento de rocha do tamanho de uma carroça.

    O girou no ar com uma única mão, como se fosse leve.

    Os guardas reagiram como haviam sido treinados. Espadas foram erguidas, lanças apontadas, escudos mágicos cintilaram em azul. Aisha, atrás de Lys, recuou um passo.

    Apenas Ian permaneceu imóvel.

    — ESPERA! — gritou.

    Mas já era tarde.

    O pedregulho voou.

    Rápido.
    Imenso.
    Mortal.

    CRACK!

    Um raio desceu.

    Atingiu a pedra em cheio, estilhaçando-a em milhares de fragmentos incandescentes. O céu brilhou em reflexos laranjas e azuis. As lascas caíram como chuva de fogo sobre o campo, mas antes que chegassem perto, uma muralha de gelo se ergueu, dissipando o impacto.

    Quando a fumaça baixou, Thamir estava com a mão erguida, ainda soltando faíscas. O cheiro de ozônio impregnava o ar.
    — Vai com calma, Naira. — disse, no tom de quem repreende uma irmã mais nova. — Ainda estamos decidindo quem queremos matar.

    A Guardiã de pedra o encarou. Os olhos âmbar brilharam mais forte.

    E então ela sorriu.

    Não era um sorriso leve. Era selvagem, pesado, o sorriso de quem não pedia licença para entrar — derrubava a porta.

    — SEU DESGRAÇADO! — a voz dela soou grave, profunda como caverna. — Você desaparece por anos e quando finalmente manda um sinal é um pedido de socorro?!

    O silêncio entre os soldados estalava mais do que os trovões.

    — E pelo visto, falso… — ela completou, avançando alguns passos. O chão cedia sob seus pés. — Eu vou te matar, Ian!

    — Foi por um bom motivo, Naira! — ele rebateu, mas o tom soava quase divertido.

    Ela não parou. Aproximou-se dele com passos que rachavam o gelo.
    — É melhor que seja. — rosnou. — Porque se não… eu vou te dar um bom motivo para realmente usar esse maldito sinal!

    Thamir coçou a testa, balançando a cabeça.
    — Sempre dramática.

    — DRAMÁTICA?! — Naira se virou para ele, furiosa. — Eu atravessei meio continente porque esse idiota me chamou como se estivesse morrendo!

    Ian suspirou, cruzando os braços.
    — Eu sabia que ia me arrepender de chamá-los.

    Thamir ergueu o queixo, o brilho prateado nos olhos ainda faiscando.
    — Agora só falta Kael.

    Ele se moveu até ficar ao lado de Ian. Os trovões pareciam mais baixos quando ele falava.
    — Ian… — disse, em tom baixo, como se pedisse uma confirmação antes de soltar o próximo raio.

    — Eu estou bem, Thamir. — respondeu o Guardião do Norte.

    — Dá pra ver. — replicou. — Só estou cogitando se te transformo em cinzas… antes do Kael.

    Ian arqueou a sobrancelha, o sorriso retornando.
    — Bom… eu precisava chamar sua atenção.

    Thamir bufou. Mas não era raiva. Era aquele tipo de bufada que só quem sobreviveu junto entende.
    — Idiota. — disse, e então o puxou para um abraço rápido. Breve, mas carregado de anos que não precisavam de palavras.

    — Senti sua falta. — completou.

    Ian retribuiu, a voz dele quase ecoando com os trovões:
    — Também senti a tua, irmão.

    Atrás, Malrik respirou fundo, os dedos crispados no cajado. Se esses três forem aliados, que seja. Mas se não forem… a cidade não resistirá nem a meia hora.

    Thalien, ao lado dele, mordia o lábio para não sorrir. Era impróprio, talvez até perigoso, mas havia algo de fascinante naquela cena. Como se estivesse vendo o desenrolar de uma lenda em tempo real.

    E Lys… Lys ainda não sabia se Altheria estava pronta para aquilo.

    Não sabia se ela mesma estava.

    Mas, por algum motivo, acabou deixando escapar um sorriso.

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