Capitulo 28 - “Precauções"
Narrado por Ian
É… parece que viver anos em isolamento não me faz bem.
Onde diabos eu estava com a cabeça quando pensei em entrar no quarto dela assim?…
Estar dentro do quarto de Lys era estranho. Não pelo quarto em si, mas pelo que ele dizia dela.
Havia um equilíbrio ali. Um lugar onde disciplina e estética dividiam o espaço com uma naturalidade desconcertante. Livros perfeitamente alinhados. Frascos de essência mágica em prateleiras de vidro esculpido. Uma mesa com relatórios cuidadosamente empilhados, como se cada folha tivesse seu lugar predestinado. E uma poltrona coberta por uma manta simples mas impecavelmente dobrada.
Tudo ali parecia dizer: “Sou meticulosa. Sou exata. E nada, absolutamente nada, foge do meu controle.”
E eu, de pé, ainda meio desconfortável, era a dissonância dentro daquela ordem.
Ela não me expulsou nem me atacou,, o que já era mais do que eu merecia.
Mas quando estava terminando de fechar a porta para escapar ela falou:
— Me espere do lado de fora — ela falou indo em direção ao trocador — vamos recepcionar o seu amigo juntos.
Então, obedeci. Saí do quarto com um suspiro. O corredor gelado parecia até acolhedor em comparação com o olhar dela.
Os corredores noturnos do salão tinham um som próprio. O vento cantava entre as colunas, e a cidade parecia manter a respiração contida. Eu sempre tive essa impressão sobre Altheria: que ela escuta. Diferente de outras cidades, que apenas existem, Altheria se cala para ouvir seus próprios segredos.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos. Eu à frente, às vezes abrindo caminho por reflexo, mesmo que não houvesse perigo real. Ela alguns passos atrás, o manto da sua armadura arrastando com um ritmo constante.
— Você não costuma dormir? — perguntei, sem olhar para trás.
— Costumo. — respondeu, seca. — Guardiões dormem?
— Como qualquer outra pessoa… — murmurei.
… Que conversa triste foi essa? era melhor eu ter ficado em silêncio.
Chegamos a uma varanda lateral, alta o bastante para dar uma visão completa de Altheria. Eu parei.
E, por um instante, só olhei.
A cidade se revelava como um segredo guardado dentro de uma cicatriz da montanha. Altheria não era construída sobre a rocha… era entalhada dentro dela. Um anfiteatro natural, uma bacia geológica cercada de muralhas de gelo e falésias. O centro pulsava com luz azulada, as runas espalhadas como estrelas fixadas no solo. O rio cortava o sul como uma lâmina congelada, refletindo a lua.
— Hm… — deixei escapar. — Então é isso. Sempre achei que Altheria se erguia acima da montanha. Mas ela… praticamente se esconde dentro dela.
— Uma fortaleza. — disse Lys, parando ao meu lado. — Proteção contra o vento, contra os exércitos, se necessário.
— E contra a própria cidade, talvez. — acrescentei, sem pensar. — Se for destruída, cai sobre si mesma.
Ela não respondeu. O olhar dela vagava pela cidade como se a conhecesse mais intimamente do que a própria vida. Talvez conhecesse mesmo.
Desviei os olhos para o sul. Foi quando percebi.
Havia uma área aberta, próxima ao portão. Uma clareira intencional, talvez usada para treinamentos ou cerimônias. Silenciosa agora, mas… vulnerável.
— Ali. — apontei. — Se eu conheço Thamir, e conheço é ali que ele vai descer.
Lys arqueou a sobrancelha.
— Você apostou isso com base em quê?
— No fato de que ele é, tecnicamente, o raio encarnado. E raios… não gostam de curvas.
— E ele acha que vocês são inimigos, então vai fazer uma entrada para afetar o moral das tropas.
Ela soltou o ar pelo nariz, quase como se risse, mas conteve.
— Ian… — começou, e parou.
Eu esperei. Aprendi há muito tempo que os silêncios dizem mais do que perguntas.
O vento carregava o frio da montanha. Eu o senti bater contra o rosto, mas não foi o vento que me causou o arrepio. Foi o som.
Trovão.
Distante ainda, mas claro.
Outro. Mais forte. Mais próximo.
E então, o silêncio entre nós se tornou uma espera compartilhada. Eu sabia o que vinha.
O corpo inteiro lembrava.
— Então é verdade… — murmurou Lys, sem tirar os olhos do horizonte. — Essa tempestade é ele.
— É. — confirmei.
O céu se iluminou por um instante, como se o véu da noite fosse rasgado por dentro. As nuvens começaram a se formar onde antes o céu estava limpo, condensando-se como se obedecessem a uma vontade singular.
Eu engoli seco. Mesmo depois de anos, mesmo depois de batalhas em que a própria morte parecia estar na ponta dos dedos… o trovão de Thamir ainda me gelava por dentro.
E não apenas porque era perigoso.
Mas porque era ele.
Ele vinha.
E com ele… os velhos tempos.
— Não parece surpreso. — comentou Lys, como se estivesse me estudando.
— Não estou. — respondi. — Esse é Thamir. Nunca foi sutil. Nunca quis ser. Ele quer se certificar, que ninguém finja que não o ouviu chegar.
Ela me encarou de soslaio.
— E você… não sente medo?
— Dessa vez não — respondi olhando para Lys — Mas se eu fosse inimigo dele… ia estar em pânico provavelmente.
A luz cortou o céu outra vez. O ar estalou, carregado de eletricidade, e pela primeira vez em muito tempo eu senti minha pele arrepiar.
— Precisamos nos apressar. — falei, sem tirar os olhos do campo aberto.
Não esperei resposta. Minhas pernas já estavam em movimento. O chão de gelo ecoava sob minhas passadas, cada degrau da escadaria descendo rápido demais para ser considerado prudente.
Lysvallis me acompanhava, o manto dela se arrastando em ondas pelo vento. Havia algo na forma como ela corria… composta, controlada, como se até o caos tivesse que pedir permissão para tocá-la.
Descemos até a base da cidadela e dobramos o primeiro corredor. Foi quando ouvimos as vozes.
Um grupo de soldados e dois magos do círculo estavam reunidos perto de um arco de vigilância, todos olhando para o céu como se esperassem que a montanha inteira fosse desabar sobre eles.
— O que é isso? — um dos soldados murmurava. — O céu estava limpo há pouco…
— Tempestade conjurada? — o mais jovem dos magos arriscou, franzindo o cenho. — Mas… não pode ser… Não pode ser um dragão?… pode ?
Eles nos viram. As lanças se alinharam por reflexo, mas baixaram quando perceberam quem estava na frente.
Lysvallis nem reduziu o passo. Passou entre eles com a voz clara, cortante, cada palavra carregada de comando:
— Vocês. Levem esta mensagem à capitã Neriah: quero ela no campo de treinamento, junto ao portão sul. Agora.
O soldado mais velho arregalou os olhos. — Senhora… com essa tempestade?
— Exatamente com essa tempestade. — respondeu ela, sem perder o ritmo. — E se ela perguntar por quê… digam apenas que é a chegada de um velho amigo.
Os soldados se entreolharam, confusos, mas não ousaram questionar. Dispararam em direção à ala norte, as botas ressoando pelo gelo.
Os dois magos, no entanto, hesitaram.
— Alteza… — um deles começou. — Se isso for mesmo uma conjuração, não temos registros de nenhum Dragão ancião da classe tormenta na área.
— Não é um dragão. — falei, cortando o rapaz. Meus olhos ainda fixos no céu. — É só ele.
Eles me olharam como se eu tivesse acabado de dizer que a lua resolvera se banhar no rio Serenhal. Um deles abriu a boca, mas não encontrou palavras. Melhor assim.
Continuei correndo. Lys mantinha-se ao meu lado, e pude perceber no olhar dela que não estava mais tentando racionalizar aquilo. Estava aceitando. Talvez fosse a primeira lição que aprenderia comigo: certas forças não se explicam. Apenas chegam.
Ao longe, um novo trovão partiu o silêncio em dois. O chão tremeu sob nossos pés.
E eu sabia. Não tínhamos muito tempo.
O raio estava descendo.
— Ian. — chamou Lys, a voz baixa, quase arranhada pelo vento. — Quando ele chegar… o que vai acontecer?
Olhei de novo para a clareira, sentindo a pressão no ar aumentar. A eletricidade já roçava contra a pele.
— Espero que não seja o de sempre. — disse, finalmente. — Ou teremos um problema sério.
E nesse exato instante, o céu se partiu em luz. com um grande raio, Thamir já deve estar observando de cima.
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