Capítulo 03.5 - A lição da humilhação
Harley Ginsu não se virou imediatamente. O volume de tratados militares repousava entre seus dedos, espólio arrancado do antigo clã natal, tão marcado quanto ele próprio. Julius Ginsu havia riscado as margens com sua caligrafia incisiva, e cada palavra paterna latejava sob a pele tal qual ferida aberta, dor necessária que ele se recusava a abandonar.
Três anos sobrevivendo no clã Dragões de Sangue lhe ensinaram que mostrar medo ou raiva apenas alimentava o sadismo alheio, igual a carne lançada a cães famintos.
A voz de Sergio não apenas preencheu o silêncio, ela o apertou lentamente, transformando-se em um garrote psicológico.
— Bem, bem… Se não é o pequeno Ginsu se escondendo entre os livros novamente.
Cada sílaba carregava prazer antecipado, como se Sergio pudesse saborear a humilhação antes mesmo de causá-la.
Harley conhecia aquela cadência. Seu inimigo nunca atacava imediatamente, precisava construir sua própria excitação através do terror alheio, da satisfação de ver sua vítima quebrar psicologicamente antes de partir para a violência física. Era vício psicológico: ele não se contentava em vencer, precisava destruir.
A irritação do filho do líder do clã Dragão de Sangue era quase palpável enquanto ele se aproximava mais um passo.
— Sempre se escondendo como um rato. Mas continue, continue fingindo que isso importa.
Quando se virou, Harley percebeu que o tratado militar ainda pressionado contra seu peito era um escudo inútil diante do sorriso frio de Sergio e seus capangas fiéis.
A formação era arte brutal: Pedro bloqueava a saída principal, Kael controlava o corredor lateral, e o filho do líder do clã Dragões de Sangue ocupava o centro. Tão sincronizados pelas caçadas repetidas, os predadores formavam um triângulo perfeito e se moviam feito organismo único.
Pedro sustentava um meio sorriso rígido, quebrado na distância entre boca e olhar, expressão que tratava a dor alheia à maneira de mero entretenimento de terça-feira. Kael, menor em estatura, compensava com intensidade: seus olhos percorriam cada músculo de Harley, calculando pontos de impacto feito um açougueiro examinando carcaça.
O jovem Ginsu respirou fundo, seus dedos encontrando automaticamente a cicatriz na palma, dor antiga chamando dor nova, preparação inconsciente para o que viria. A técnica de controle respiratório era uma das poucas lições paternas que permaneciam intactas:
“Quando não puder evitar a dor, controle sua reação a ela. Um guerreiro verdadeiro escolhe como será quebrado.”
Na época, aquilo parecia uma crueldade paterna, ainda que vestida de sabedoria. Agora Harley compreendia: Julius não o preparara para vencer, e sim para resistir quando vencer fosse impossível.
O jovem Ginsu respirou fundo e se forçou a responder com a calma que custara três anos de sofrimento para desenvolver.
— Não estou me escondendo. Estou cumprindo as tarefas que me foram designadas. Ao contrário de alguns, eu entendo o valor do conhecimento.
O sorriso do filho do líder do clã Dragões de Sangue se alargou, e Harley percebeu que cometera um erro. Havia oferecido desafio quando deveria ter oferecido submissão. Sergio deu mais uma passo à frente satisfeito por ter conseguido a reação que esperava.
— Conhecimento? Você realmente acredita que esses textos empoeirados vão transformá-lo em algo mais que um espólio de guerra bem-comportado?
A pergunta não esperava resposta, era lâmina sendo afiada antes do corte.
A raiva familiar subiu por sua garganta, aquele calor que prometia alívio temporário através da violência. Agora havia algo além: uma frieza calculista que crescera durante os anos de cativeiro, alimentada por cada humilhação suportada.
Harley forçou sua voz a soar controlada, mesmo sentindo o olhar predatório dos três jovens.
— Talvez! Ou talvez já seja algo que você nunca será, não importa quantos privilégios herde.
Silêncio.
Sergio permaneceu imóvel, ainda assim, o jovem Ginsu pôde ver músculos se tensionando sob o quimono negro, sinais de violência iminente que aprendera a reconhecer como questão de sobrevivência. Entretanto a fúria não veio. Em seu lugar, ergueu-se a provocação, tão perigosa quanto um golpe contido.
— Sabe o que sempre me pergunto? Se seu pai estava fugindo de você quando desapareceu. Talvez Julius Ginsu olhou para o filho e viu exatamente o que todos nós vemos: um erro que precisava ser abandonado.
Dentro de Harley, a raiva não acendeu aos poucos, explodindo com a violência de uma granada comprimida demais.
O corpo inteiro foi tomado por tremores, e não havia poder ancestral algum, apenas anos de dor acumulada cobrando sua libertação. As mãos ardiam em formigamento, e a iluminação intensa que pulsava diante de seus olhos, feito se o próprio sangue tivesse se incendiado.
A raiva sussurrava recompensas imediatas: Sergio arrancado do mundo em pedaços, Pedro e Kael dissolvidos em fumaça e carne queimada.
Então as palavras do Vigilante ecoaram não apenas feito memória distante, mas tal qual uma ordem direta gravada em sua alma com ferro quente: “Ainda não é o momento.”
O “ainda não” carregava promessa que fez Harley forçar a fúria a recuar, engolindo a humilhação como veneno que queimava todo o caminho até o estômago.
Três opções. O pensamento surgiu automaticamente, produto de treinamento que começara antes dele conseguir falar direito. Revidar e sofrer consequências severas. Aceitar e mostrar submissão total. Ou a terceira opção, que Julius jamais ensinara diretamente e que ele descobrira sozinho durante os meses mais escuros de cativeiro.
Adaptação.
De modo semelhante à água infiltrando-se nas rachaduras da pedra, com paciência suficiente e fragmentando montanhas inteiras.
Observando o rival, o riso de Sergio voltou a ecoar, seguido de escárnio afiado:
— Nada a dizer? Típico! Até para se defender você é completamente patético.
Os outros dois riram em coro automático.
Harley virou-se para o filho do líder do clã Dragão de Sangue. Sua voz carregava a exaustão de quem conhecia cada passo da dança cruel que se repetia sem fim.
— O que você quer, Sergio?
Sergio fez um gesto casual para seus companheiros, o movimento carregando toda a autoridade de um general comandando uma execução.
— Quero que você se lembre. De que alguns lugares nunca podem ser escalados. Considere isso uma lição prática de hierarquia.
O punho veio, pesado e inevitável, quebrando o espaço entre eles.
O filho do líder do clã Dragão de Sangue aperfeiçoara sua técnica nos últimos meses, e o golpe encontrou o rosto de Harley com precisão contida, suficiente para machucar, porém sem deixar vestígios. O mundo explodiu em dor e luz distorcida, gosto de sangue inundando sua boca enquanto tropeçava contra a estante mais próxima.
Os volumes antigos caíram pelo chão em cacofonia que ecoou pela biblioteca inteira. Poeira se levantou em nuvens que misturaram-se ao suor escorrendo pela sua testa, criando lama salgada que ardia nos olhos.
O passado o puxou de volta: o jovem Ginsu tinha sete anos, caído no chão do pátio de treinamento, sangue escorrendo de um corte acima da sobrancelha, e Julius permanecia imóvel, o olhar pesado carregado de uma expectativa impossível de satisfazer.
“Levante-se, Harley. A dor só ensina se você estiver consciente para aprender.”
Ao levantar-se devagar, o jovem Ginsu sentiu o presente se expandir ao seu redor, à medida que cada movimento físico o afastava da memória do passado, deixando a sua resposta carregada de significado:
— Está melhorando! — disse, sua voz carregando uma nota de avaliação clínica que fez Sergio recuar meio passo instintivamente — O ângulo estava quase perfeito. Julius teria aprovado a execução técnica, mesmo que deplorado a covardia do contexto.
A reação foi instantânea e visceral.
O sorriso de satisfação do filho do líder do clã Dragão de Sangue vacilou, substituído por confusão que rapidamente eclodiu em algo muito mais perigoso:
— Seu pai… — cada palavra de Sergio caiu pesada, medida e quase ritmada — O abandonou porque viu o que todos nós vemos. Um fracasso andante. Um herdeiro tão indigno que a própria linhagem Ginsu preferiu morrer a passar por você.
A fúria que ele acabara de dominar voltou com força, latejando em cada fibra de seu corpo. Harley respirou fundo e, novamente, moldou o impulso em algo útil. Era equivalente a descobrir uma armadura interna, cuja proteção não vinha de metal ou couro, e sim da transformação alquímica da própria dor.
“A dor é sua professora” — Julius dissera — “Mas apenas se você escolher aprender ao invés de apenas sofrer.”
Cada golpe de Sergio, cada insulto, cada momento de desespero havia sido uma aula. E Harley finalmente compreendia que não se tratava apenas de sobreviver: era uma metamorfose que queimava lentamente dentro dele, moldando cada gesto, cada decisão.
O som de passos reverberou pelo corredor.
Uma cadência diferente da agitação que dominara os últimos minutos. A silhueta familiar do Administrador da biblioteca surgiu na entrada. Sergio e seus comparsas congelaram diante da presença, e o jovem Ginsu sentiu a brecha abrir-se e agarrou-a sem hesitar:
— Até logo, jovem mestre! — cada sílaba foi cuidadosamente modulada para carregar deferência que satisfizesse a presença do administrador, mesmo que seus pensamentos já estivessem calculando três movimentos à frente — Tenho trabalho a fazer.
Harley virou-se convicto de que a presença do Administrador bastaria para conter Sergio. Ele não ousaria escalar a situação sem ordens diretas, e muito menos diante de testemunhas.
A frustração do filho do líder do clã Dragão de Sangue explodiu em ameaça desesperada.
— Isto não acabou!
O jovem Ginsu permitiu que um sussurro escapasse onde apenas ele pudesse ouvir:
— Nunca acaba. Mas hoje… hoje algo mudou.
Enquanto caminhava pelos corredores, Harley permitiu que seus pensamentos se organizassem como os volumes que passara três anos catalogando, uma compreensão nova começou a tomar forma.
A dor no rosto espalhava calor constante, e agora carregava uma qualidade diferente: mais do que mera consequência da violência, tornava-se combustível para algo maior.

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