Capítulo 29 - "O Primeiro Raio"
As primeiras gotas começaram a cair como avisos silenciosos.
A névoa de Altheria recuava pouco a pouco, dissolvida pela chuva fria que riscava o ar como lâminas finas.
No campo aberto da entrada sul, guardas surgiam um a um. Primeiro os mais atentos à vibração da mana, depois aqueles alertados pelo rumor dos trovões, e por fim, os que vieram apenas porque a Rainha estava presente em pessoa.
Lys se manteve firme. Braços cruzados, queixo erguido, olhar fixo no céu instável que se contorcia como um véu prestes a rasgar.
Ao seu lado, sua vice-líder parecia encarar tudo com uma expressão mais leve do que deveria, quase como quem se divertia com a gravidade da situação.
— Isso não está bonito, admito… — murmurou a Thalien, fitando as nuvens acima. Logo em seguida, desviou os olhos e notou Ian.
Ele estava alguns passos à frente de todos, imóvel, o corpo ereto contra o vento e a chuva. Usava o casaco que Lys lhe emprestara, mas o quase não podia ser visto. Recoberto por camadas da armadura de gelo, se moldando como uma armadura translúcida, onde linhas de gelo cintilavam à luz dos relâmpagos.
Thalien estreitou os olhos. Reconheceu imediatamente aquele casaco, como não reconheceria?
Era o da sua irmã.
E Ian o vestia sem camisa por baixo, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Ela abriu a boca para comentar, mas hesitou. Um sorriso pequeno e enviesado escapou de seus lábios, como quem decifra um enigma inesperado.
Olhou de volta para Lys, e não resistiu:
— Que tipo de pessoa tem uma reunião com a Rainha a essa hora… e sai vestindo isso?
— O tipo de pessoa que salta pela minha janela sem bater. — respondeu Lys, sem desviar os olhos do horizonte. Sua voz era fria, mas carregava algo quase imperceptível.
— Depois você me explica… em detalhes — a vice devolveu, ainda sorrindo.
— Claro..
Ian parecia alheio a qualquer julgamento. Não desviava os olhos do céu. O vento agitava seus cabelos escuros, e a chuva escorria pelo rosto como se a própria tempestade o escolhesse como receptáculo.
— Ele não disse o que está prestes a acontecer? — perguntou um dos magos, inquieto, a voz quase perdida no rugido distante dos trovões.
— Ele disse que nada vai acontecer. — respondeu Lys, seca. — Mas que, se acontecer… vai tentar impedir.
O mago engoliu em seco. A frase soava absurda. Impedir um mago que podia conjurar uma tempestade?
Era como pedir a uma avalanche que desse meia-volta.
A tensão aumentava. O ar estava saturado de mana elétrica, cada gota de chuva caía com peso dobrado, vibrando na pele.
Ian deu dois passos à frente. Depois se virou para os presentes.
— Afastem-se. Todos.
Alguns hesitaram, trocando olhares. Outros recuaram imediatamente, obedecendo ao tom que não admitia debate.
— Você tem certeza que consegue pará-lo, Guardião? — arriscou uma das Matriarcas, a voz embargada. pelo som do vento
Ian sorriu de canto. Era um sorriso perigoso, porque não prometia nada. Ele sabia a verdade: se Thamir quisesse, ninguém ali sobreviveria. Mas ninguém precisava ouvir isso.
— Claro. — respondeu. — Depois que ele me atingir, talvez fique mais calmo.
A vice-líder soltou um riso nervoso. — É um plano horrível.
— Bem-vinda ao meu método. — disse Ian.
E todos recuaram.
Foi nesse momento que o céu rasgou.
Ian sabia, Thamir já estava sobre Altheria tentando identificar as maiores ameaças. foi quando um raio atingiu o portão sul. seguido de um trovão.
O trovão não apenas ecoou ele vibrou nas entranhas da cidade, sacudindo muralhas, pontes e colunas.
A luz veio logo depois. Um raio desceu como a lâmina de um deus impaciente, atingindo o campo a poucos metros de Ian.
O impacto foi devastador. A terra tremeu. O gelo se partiu em fragmentos incandescentes. O vento arremessou soldados contra as muralhas, e mesmo magos experientes ergueram escudos às pressas, suas runas brilhando contra a força bruta da descarga.
Por um instante, o mundo inteiro pareceu ser apenas luz.
Depois, um segundo. Outro. A claridade persistia, concentrada no ponto do impacto.
Thamir havia chegado.
Ian não precisava vê-lo. Já sentia a presença, como se o trovão tivesse ganhado forma humana e decidisse que hoje era um bom dia pra guerra.
A luz se desfez devagar.
E então todos perceberam.
Dentro da luz, havia um homem.
Um vulto recortado contra a energia crua, o corpo ereto no centro da cratera recém-formada. Raios corriam pelos braços, descendo até os dedos, se dissipando em faíscas que queimavam o solo.
Os olhos dele brilhavam com a mesma fúria do céu. O peito arfava, não de cansaço, mas de intensidade. O trovão rugiu outra vez, e o som veio dele, não das nuvens.
A poeira, o calor e o cheiro de ozônio dançavam pelo ambiente carregados de estática, mas apenas Ian parecia se incomodar com o cheiro. A mana vibrava, os cabelos dos magos no círculo se eriçaram. Até a armadura de gelo que Ian moldara sobre o casaco pareceu encolher.
Quando finalmente a luz cedeu, lá estava ele.
No centro da cratera fumegante.
Cabelo curto, ainda faiscando aqui e ali. Usando uma armadura preta, de uma ombreira. Os olhos prateados elétricos em contraste com sua pele escura, giravam pelo campo com uma precisão quase felina.
Ele estava pronto pra matar alguém.
— Thamir… — Ian falou, erguendo as mãos como quem diz “Calma, não é hoje que morro.”
Thamir girou o rosto na direção da voz. Os músculos relaxaram um pouco, mas só um pouco. O raio ainda dançava entre os dedos.
— Ian? — a voz dele veio como um trovão contido. — Você… tá de pé?
— Sempre fui dramático. — Ian respondeu
Thamir avançou dois passos.
— Você usou o sinal.
— Usei.
…
— O sinal de emergência total, do tipo “estou morrendo, venha me salvar ou vingue meu cadáver”?
— O mesmo. — Ian respondeu, trocando o peso de um pé para o outro claramente desconfortável.
Thamir parou, semicerrando os olhos. algo em Ian chamou sua atenção.
— Você está… usando uma armadura de gelo… por cima de um casaco feminino?
Ian suspirou.
— Longa história…
— E você tá vivo. — Completou, com uma expressão de quem pondera se deveria socar ou abraçar alguém.
— No momento, sim. E considerando o impacto da sua chegada, é um milagre eu ainda estar com os dois pulmões.
— Eu deveria era ter te acertado na cabeça!
Thamir olhou em volta. As guardas ainda estavam boquiabertas. Lys havia cruzado os braços. A vice-líder disfarçava o riso. Até a chuva parecia ter hesitado. começando a reduzir aos poucos.
— Bem… por que usou aquele sinal?
— Porque eu preciso da sua ajuda. E… — Ian deu de ombros. — Convenhamos, se eu só dissesse “ei, vem aqui, precisamos conversar”, você apareceria daqui a três meses… no mínimo.
Ele cruzou os braços, encarando Ian como um pai decepcionado, ou um irmão que sabia que seria arrastado para encrenca de novo.
— Você me arrancou do centro de um deserto.
— Eu sei…
— Justo quando eu finalmente achei uma ruina que parecia menos desgastada… em meio a uma baita tempestade..
— Eu lembro. Você dizia que trovões ajudam no sono.
— Isso não significa que você deve me acordar com um apocalipse, Ian!
— Tecnicamente… você já estava dentro de um.
Thamir passou as mãos no rosto, o cansaço começando a transparecer.
— Isso envolve dragões?
— Provavelmente…
Ele não riu. Mas quase. E isso era o suficiente.
— …. Qual é o problema dessa vez?
Antes que Ian respondesse, outro estrondo ressoou ao longe. Thamir virou a cabeça, e sentiu. Outro pulso.
Mais um dos guardiões vinha chegando.
— Vai chover guardião hoje. — Ian comentou.
Thamir bufou.
— Tu sabe que a Naira. Ela vai odiar isso… certo?
— Claro, claro.
….
— Se ela jogar alguma pedra eu paro — Thamir falou se virando na direção do som — Realmente espero que ela tente ver o que está acontecendo antes de atacar dessa vez….
— Eu também…
Os dois se olharam por um instante. O tipo de silêncio que só irmãos de guerra compartilham. A cidade ainda estava tentando entender o que havia acabado de acontecer.
Mas para todos os moradores de Altheria a terra ainda tinha uma surpresa para eles nessa noite.
A verdadeira tempestade… ainda estava por vir.
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