Índice de Capítulo

    Duna se jogou na cadeira de madeira que rangeu sob o peso, reclinando-se de costas até que o encosto ameaçou ceder. Expeliu o ar num sopro longo, como se quisesse se livrar de algo que pesava no peito, e fechou os olhos, virando o rosto para cima. A lâmpada pendurada no teto iluminava seu semblante cansado, revelando linhas de exaustão que não vinham de noites mal dormidas ou da sobrecarga de projetos. Era um cansaço diferente, mais profundo.

    Dante se aproximou devagar e se escorou na beira da mesa abarrotada de papéis, observando-o em silêncio por alguns segundos.

    — Clara me disse para vir te ajudar, mas sei que você não pediu por isso. — Sua voz quebrou o silêncio entre eles. — Então, pode começar a falar.

    Duna manteve os olhos fechados por mais alguns instantes, como se buscasse coragem para abrir a boca. Quando falou, a voz saiu rouca, arrastada.

    — Se fosse algo fácil de falar, eu faria sem problemas. Mas… não envolve apenas a mim. — Passou a mão pelo rosto, apoiando-a no queixo. — É um quebra-cabeça daqueles com mil peças. Quanto mais você procura, menos acha. E quando uma peça finalmente se encaixa, outra desaparece da sua vista.

    Dante inclinou o corpo para frente, estudando cada palavra.

    — Isso não deveria ser um problema. Você gosta de enigmas. Qual é o problema de verdade?

    Os olhos de Duna se abriram, cansados, e ele se ajeitou na cadeira, endireitando-se com esforço.

    — O que eu falei da garota, a Manu, também é parte do problema. — Fez um gesto com a mão, como se empurrasse o ar. — A quantidade de informações que temos sobre como melhorar a Cuba é tanta que estamos nos afogando nelas. Não damos conta de tantos projetos. Ela está empacada com a água, mas antes dela, eu também estava.

    Fez uma pausa, olhando diretamente para Dante, como se medisse o impacto das próximas palavras.

    — O Reservatório está cheio de Felroz.

    Dante fechou o punho sobre a mesa sem perceber, lembrando-se do episódio. O dia em que ele e Marcus haviam extraído a bateria… e derrotado duas daquelas criaturas. Lembrava do corpo de uma delas caindo dentro do tanque, o peso morto se afundando na água escura.

    — Pode ter sido isso? — murmurou.

    — Não sei o que, mas pode. — Duna confirmou com um aceno grave. — O que você e Marcus fizeram foi uma das coisas mais insanas que eu já ouvi. Mas não bastou. Vocês não limparam tudo. Eles se aglomeraram de novo, e agora estão contaminando a água.

    O silêncio caiu pesado. Dante deixou o ar escapar pelas narinas.

    — E o que foi feito?

    Duna riu, mas sem humor, apenas um sopro seco.

    — Nada. Esse é o problema. Temos pessoal para isso, mas Clara e Leonardo entraram em um debate interminável sobre segurança. E depois disso… tudo ficou no papel. — Abriu as mãos, como se mostrasse algo vazio. — Não temos gente suficiente para lidar com isso agora. Cada grupo foi dividido para segurar outras frentes.

    — Entendi. — Dante murmurou, pensativo.

    A realidade era dura. A Cuba podia ter mais moradores, mas nem todos se jogariam de cabeça em algo que, na prática, era uma sentença de morte. Entrar no Lagmorato raramente significava encontrar apenas água escura. Às vezes, não havia nada além de corredores vazios, silêncio e a constante sensação de que algo se escondia nas sombras.

    Mas, em outras vezes, podia ser como antes: dar de cara com algo como o Rastro, à espreita, esperando o momento exato para atacar.

    — Dante. — Duna levantou a mão, tentando deixar a conversa menos tensa. — Nós chegamos em um patamar que o problema não é mais comida. Nos últimos meses, Kalish fez uma viagem a diversos acampamentos, acho que foram mais de cinquenta, espalhados por lugares distantes. Todos tinham o mesmo problema… falta de comida.

    — E aqui não tem.

    — Nós passamos pela primeira parte dos maiores problemas possíveis. A fome e a sede. Temos água o suficiente para quase um ano, e comida estocada em um sistema de refrigeração que Heian e outro rapaz conseguiram montar. Mas, não temos como sair além disso. A eletricidade nos deixou um passo a frente de todas as outras cidades que estão sendo criadas, e elas sabem de nós. Então, o risco de ir para um Lagmorato é grande…

    — Porque chama atenção das outras cidades.

    O risco era mais do que dobrado nesse caso. Na surdina, não haveria problema algum. Mas, com essa questão de outras pessoas irem também, era praticamente inviável. Mas, tinha algo que Dante ainda não conseguia tirar de sua cabeça.

    — Por que Veronica nunca ajudou com isso? Ela sempre dizia que tinha conhecimento antigo, das outras civilizações. Ela não quis ajudar?

    — É diferente quando você pede ou quando ela quer ajudar. Aquela IA tem uma cisma de não querer prolongar o nosso tempo de vida, nem que fosse ajudando a construir. Sempre diz que os Humanos criaram as coisas do zero, incluindo ela, então, não faria nada que pudesse acelerar a Cuba a chegar perto do que eles foram um dia. — Havia um tom de deboche misturado com desprezo. — A gente sofreu muito pra conseguir ter o que temos, e ela caga pra qualquer coisa que não seja ela mesmo.

    — Não me impressiona nada ela ter falado isso. Surrei tanto ela que deve ter ficado com alguns traumas. — Dante conseguiu tirar um sorriso do velho. — Mas, diferente da Veronica, nós temos mais energia e otimismo. E… — Dante puxou a manga do casaco um pouco pra cima, revelando as três marcas negras em seu antebraço. — Vick e eu temos algumas coisas que gostaríamos de compartilhar.

    Pela primeira vez, Duna se ajustou com curiosidade.

    — Garoto, estou com um pressentimento bom sobre isso.

    Dante mostrou um sorriso.

    — Vamos fazer do jeito certo. Primeiro arrumamos o que temos que arrumar, depois, construímos tudo. Vick, consegue dizer quantas mecanizações ou melhorias você viu nesses últimos dias que conseguimos tirar das nossas viagens?

    — Calculando. — Demorou praticamente dez segundos. — Em relações a vestimentas, armaduras e armas, tenho recursos suficientes para listar pelo menos seis. Se o intuito for construção, teremos que adaptar pelo menos uma área de cinquenta metros quadrados para começar a ferraria e também mercearia. O nível de conhecimento técnico em profissões que demandam metais pesados é insuficiente para qualquer construção mais elaborada. Nos acessos que tive de Selenor, todas as medições eram parametrizadas e escalonadas para que não houvesse nenhum tipo de sutura ou fissuras entre as partes. Boa parte do lugar era designado para que criações fossem efetivadas. No único acesso que obtive, consegui 98% dos dados sobre como uma cidade, que demorou praticamente 120 anos para ser feita. Calculando o modelo e reajustando para o que a Cuba pode ser tornar, com os aspectos e também fundamentos, além dos nutrientes de uma cidade que já foi uma imensa metrópole, minhas estimativas são… sete anos.

    Dante ficou animado. Era justamente o que ele pensava em fazer agora.

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