Conto: Li Wang

    O silêncio da nova casa era estranho. Depois da saída de William, o grupo parecia menor, mais vazio. Li Wang passava as manhãs em treinos solitários, tentando entender as mudanças do próprio corpo desde o combate contra Lyria.

    Dayse, por sua vez, dividia o tempo entre cuidar de Henry e ajudar Li com os ferimentos que teimavam em não cicatrizar por completo.

    Mas era Bárbara quem mais chamava atenção nos últimos dias. A garota passava horas sentada na sala, cercada de livros. Para Li Wang e Dayse, as páginas não passavam de borrões ou brancura sem sentido; para Bárbara, eram mundos que se revelavam lentamente. Não lia com facilidade, mas com determinação.

    — Eu… acho que terminei a primeira parte — anunciou, com os olhos brilhando e as bochechas coradas de esforço.

    Li Wang e Dayse se aproximaram, curiosas.

    — O que tem aí? — perguntou Li, sentando-se ao lado dela.

    Bárbara respirou fundo, como quem se prepara para revelar um segredo perigoso.
    — É um manual… sobre Aura. O título é Sistema de Aura – Guia do Despertar, escrito por Orpheon Ekdias.

    — Aura? — repetiu Li Wang, franzindo o cenho ao ouvir aquele termo.

    De imediato, a lembrança do campo de batalha contra Lyria o atingiu. O momento em que Hendrick interveio. As palavras dele ecoaram, afiadas como cicatrizes invisíveis:
    “Você não tem aura.”

    Li Wang cerrou os punhos. O estômago se revolveu.

    — Aura é como… energia vital — explicou Bárbara, com a voz mais firme do que sua idade parecia permitir. — Todo ser vivo tem, desde uma formiga até um deus. Mas quase ninguém aprende a usar.

    Dayse cruzou os braços, intrigada.
    — E por que a gente nunca ouviu falar disso?

    — Porque é invisível… intangível. Só que, pra usar de verdade, existe um processo chamado Despertar.

    Bárbara fez uma pausa, como se temesse errar ao repetir o que lera.

    — Tem uma técnica… a Meditação do Despertar. Só com ela dá pra abrir as veias de aura do corpo. Antes disso, o corpo não aguenta usar aura de forma intensa. Se tentar… pode morrer.

    Um arrepio percorreu a espinha de Li Wang.
    — Morrer?

    — Como uma parada cardíaca — disse Bárbara, com uma seriedade que parecia pesar demais em seu rosto infantil. — A pessoa entra em colapso.

    Dayse respirou fundo, incomodada.
    — E… depois que desperta? O que acontece?

    — O corpo escolhe uma afinidade — respondeu Bárbara, virando outra página. — Existem dois tipos principais: Amplificadores e Conjuradores.

    Ela apontou para os rabiscos do livro, que só ela conseguia ver. Uma figura humana de músculos ressaltados de um lado; outra, canalizando energia para fora, do outro.

    — Amplificadores usam aura para fortalecer o corpo. Ficam mais rápidos, mais fortes… mais resistentes. Mas só afetam a si mesmos.

    Li Wang não precisou pensar muito. As lutas que travara eram a prova.
    — Acho que sou um desses…

    — Já os Conjuradores… — a menina se animou um pouco — …são raríssimos. Um em cada dez mil. Eles manipulam a aura do ambiente, purificam dentro do próprio núcleo e só então liberam.

    Dayse arqueou a sobrancelha.
    — Parece complicado.

    — E é! — respondeu Bárbara. — Se purificar errado, se intoxicam com aura impura… e morrem de envenenamento interno.

    A informação caiu pesada entre eles.

    — E o núcleo? — perguntou Li Wang, em voz baixa. — Você disse que ficava no coração?

    Bárbara assentiu devagar.
    — É como uma pedrinha escura, escondida lá dentro. Nenhum exame humano consegue detectar. Ele armazena a aura vital da pessoa. Mas tem um limite: usar mais de 90%… causa a Sobrecarga de Aura.

    Bárbara fez questão de dar ênfase à última frase.
    — O que acontece se usar mais de 90% da aura? — murmurou Dayse.

    — Falência de todos os órgãos.

    O silêncio que seguiu foi pesado.

    Li Wang levou a mão ao peito, instintivamente. Quantas vezes já estivera à beira da exaustão? Agora percebia que, sem saber, havia brincado com a própria vida.

    — Tem mais… — acrescentou Bárbara, hesitante. — Os núcleos têm níveis… cores diferentes. Começam no preto, depois vinho, roxo, azul, vermelho, laranja, amarelo… até chegar ao branco. Cada cor tem três estágios: escuro, intermediário e claro.

    — Então… quanto mais clara a cor, mais forte o usuário? — perguntou Dayse.

    — Isso. Mas evoluir o núcleo é difícil. Precisa de treino, controle emocional… e absorção de cristais de aura.

    — Cristais de aura… — Li Wang repetiu em voz baixa, como se a palavra tivesse um gosto amargo.

    Ela se recostou contra a parede, a mente tomada por lembranças de sua luta contra Vireon e Lyria. Até então, vira aquelas criaturas apenas como monstros. Mas agora, o detalhe que ignorara ganhou contornos dolorosamente claros.
    Tudo fazia sentido.

    A ideia surgiu com um peso nauseante: matar pessoas… tirar vidas para absorver a energia delas.

    Seu estômago se revirou. Ela virou o rosto, tomada por uma ânsia sufocante.
    “Será que é isso que a Apocalypses tem feito?”

    A pergunta reverberou em sua mente como um sino fúnebre. O número de mortes, os desaparecimentos, chacinas sem motivo… cada detalhe se encaixava em um mosaico de horror.

    Li Wang respirou fundo, lutando contra o peso do pensamento. Lutando contra o ódio que crescia dentro de si contra a Apocalypses.

    Bárbara fechou o livro com um estalo suave. Os olhos ainda brilhavam — não de ingenuidade, mas de uma determinação improvável para sua idade.
    — Tem mais um aviso… tentar forçar o Despertar antes da hora pode causar falência dos órgãos.

    Li Wang trocou um olhar com Dayse e depois com a menina.
    Nenhuma palavra foi dita. Mas todas entenderam.
    Até ali, as batalhas que enfrentaram tinham sido apenas o começo.

    — Eu… eu vou continuar estudando — disse Bárbara. Sua voz, ainda infantil, trazia agora uma maturidade recente, forjada pelas cicatrizes dos últimos dias. — Se eu aprender mais… talvez consiga ajudar você de verdade, tia Li.

    Li Wang sorriu de leve e pousou a mão sobre a cabeça da menina.
    — Você já está ajudando mais do que imagina.

    Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, o celular vibrou.

    Um número desconhecido iluminou a tela.

    Com um movimento rápido, ela atendeu.
    — Alô?

    Do outro lado, a voz de Nathan explodiu em desespero, sufocada pelo som de passos e gritos ao fundo.
    — Li! Você tem que ir até o Nepal! — Ele arfava, como se corresse para salvar a própria vida. — Você tem que salvar o rei Taylon Sytoria!

    A linha caiu antes que ela pudesse responder.

    Li Wang permaneceu imóvel, com aparelho colado ao ouvido, encarando o vazio. Tentou retornar à ligação uma, duas, cinco vezes. Nada. Nenhuma resposta.

    Fechou os olhos, respirando fundo. Mesmo depois de tudo… mesmo após a traição de Nathan, ela ainda lhe concedia o privilégio da dúvida.

    — Vamos para o Nepal. — Sua voz soou firme, rasgando o silêncio da sala.

    Dayse e Bárbara se entreolharam, confusas com a decisão repentina, enquanto Henry seguia dormindo no berço, alheio a tudo.

    Poucas horas depois, os quatro embarcaram no avião que sempre fica à disposição.

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