Capítulo 36 – O Preço da Força
Conto: Li Wang
O silêncio da nova casa era estranho. Depois da saída de William, o grupo parecia menor, mais vazio. Li Wang passava as manhãs em treinos solitários, tentando entender as mudanças do próprio corpo desde o combate contra Lyria.
Dayse, por sua vez, dividia o tempo entre cuidar de Henry e ajudar Li com os ferimentos que teimavam em não cicatrizar por completo.
Mas era Bárbara quem mais chamava atenção nos últimos dias. A garota passava horas sentada na sala, cercada de livros. Para Li Wang e Dayse, as páginas não passavam de borrões ou brancura sem sentido; para Bárbara, eram mundos que se revelavam lentamente. Não lia com facilidade, mas com determinação.
— Eu… acho que terminei a primeira parte — anunciou, com os olhos brilhando e as bochechas coradas de esforço.
Li Wang e Dayse se aproximaram, curiosas.
— O que tem aí? — perguntou Li, sentando-se ao lado dela.
Bárbara respirou fundo, como quem se prepara para revelar um segredo perigoso.
— É um manual… sobre Aura. O título é Sistema de Aura – Guia do Despertar, escrito por Orpheon Ekdias.
— Aura? — repetiu Li Wang, franzindo o cenho ao ouvir aquele termo.
De imediato, a lembrança do campo de batalha contra Lyria o atingiu. O momento em que Hendrick interveio. As palavras dele ecoaram, afiadas como cicatrizes invisíveis:
“Você não tem aura.”
Li Wang cerrou os punhos. O estômago se revolveu.
— Aura é como… energia vital — explicou Bárbara, com a voz mais firme do que sua idade parecia permitir. — Todo ser vivo tem, desde uma formiga até um deus. Mas quase ninguém aprende a usar.
Dayse cruzou os braços, intrigada.
— E por que a gente nunca ouviu falar disso?
— Porque é invisível… intangível. Só que, pra usar de verdade, existe um processo chamado Despertar.
Bárbara fez uma pausa, como se temesse errar ao repetir o que lera.
— Tem uma técnica… a Meditação do Despertar. Só com ela dá pra abrir as veias de aura do corpo. Antes disso, o corpo não aguenta usar aura de forma intensa. Se tentar… pode morrer.
Um arrepio percorreu a espinha de Li Wang.
— Morrer?
— Como uma parada cardíaca — disse Bárbara, com uma seriedade que parecia pesar demais em seu rosto infantil. — A pessoa entra em colapso.
Dayse respirou fundo, incomodada.
— E… depois que desperta? O que acontece?
— O corpo escolhe uma afinidade — respondeu Bárbara, virando outra página. — Existem dois tipos principais: Amplificadores e Conjuradores.
Ela apontou para os rabiscos do livro, que só ela conseguia ver. Uma figura humana de músculos ressaltados de um lado; outra, canalizando energia para fora, do outro.
— Amplificadores usam aura para fortalecer o corpo. Ficam mais rápidos, mais fortes… mais resistentes. Mas só afetam a si mesmos.
Li Wang não precisou pensar muito. As lutas que travara eram a prova.
— Acho que sou um desses…
— Já os Conjuradores… — a menina se animou um pouco — …são raríssimos. Um em cada dez mil. Eles manipulam a aura do ambiente, purificam dentro do próprio núcleo e só então liberam.
Dayse arqueou a sobrancelha.
— Parece complicado.
— E é! — respondeu Bárbara. — Se purificar errado, se intoxicam com aura impura… e morrem de envenenamento interno.
A informação caiu pesada entre eles.
— E o núcleo? — perguntou Li Wang, em voz baixa. — Você disse que ficava no coração?
Bárbara assentiu devagar.
— É como uma pedrinha escura, escondida lá dentro. Nenhum exame humano consegue detectar. Ele armazena a aura vital da pessoa. Mas tem um limite: usar mais de 90%… causa a Sobrecarga de Aura.
Bárbara fez questão de dar ênfase à última frase.
— O que acontece se usar mais de 90% da aura? — murmurou Dayse.
— Falência de todos os órgãos.
O silêncio que seguiu foi pesado.
Li Wang levou a mão ao peito, instintivamente. Quantas vezes já estivera à beira da exaustão? Agora percebia que, sem saber, havia brincado com a própria vida.
— Tem mais… — acrescentou Bárbara, hesitante. — Os núcleos têm níveis… cores diferentes. Começam no preto, depois vinho, roxo, azul, vermelho, laranja, amarelo… até chegar ao branco. Cada cor tem três estágios: escuro, intermediário e claro.
— Então… quanto mais clara a cor, mais forte o usuário? — perguntou Dayse.
— Isso. Mas evoluir o núcleo é difícil. Precisa de treino, controle emocional… e absorção de cristais de aura.
— Cristais de aura… — Li Wang repetiu em voz baixa, como se a palavra tivesse um gosto amargo.
Ela se recostou contra a parede, a mente tomada por lembranças de sua luta contra Vireon e Lyria. Até então, vira aquelas criaturas apenas como monstros. Mas agora, o detalhe que ignorara ganhou contornos dolorosamente claros.
Tudo fazia sentido.
A ideia surgiu com um peso nauseante: matar pessoas… tirar vidas para absorver a energia delas.
Seu estômago se revirou. Ela virou o rosto, tomada por uma ânsia sufocante.
“Será que é isso que a Apocalypses tem feito?”
A pergunta reverberou em sua mente como um sino fúnebre. O número de mortes, os desaparecimentos, chacinas sem motivo… cada detalhe se encaixava em um mosaico de horror.
Li Wang respirou fundo, lutando contra o peso do pensamento. Lutando contra o ódio que crescia dentro de si contra a Apocalypses.
Bárbara fechou o livro com um estalo suave. Os olhos ainda brilhavam — não de ingenuidade, mas de uma determinação improvável para sua idade.
— Tem mais um aviso… tentar forçar o Despertar antes da hora pode causar falência dos órgãos.
Li Wang trocou um olhar com Dayse e depois com a menina.
Nenhuma palavra foi dita. Mas todas entenderam.
Até ali, as batalhas que enfrentaram tinham sido apenas o começo.
— Eu… eu vou continuar estudando — disse Bárbara. Sua voz, ainda infantil, trazia agora uma maturidade recente, forjada pelas cicatrizes dos últimos dias. — Se eu aprender mais… talvez consiga ajudar você de verdade, tia Li.
Li Wang sorriu de leve e pousou a mão sobre a cabeça da menina.
— Você já está ajudando mais do que imagina.
Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, o celular vibrou.
Um número desconhecido iluminou a tela.
Com um movimento rápido, ela atendeu.
— Alô?
Do outro lado, a voz de Nathan explodiu em desespero, sufocada pelo som de passos e gritos ao fundo.
— Li! Você tem que ir até o Nepal! — Ele arfava, como se corresse para salvar a própria vida. — Você tem que salvar o rei Taylon Sytoria!
A linha caiu antes que ela pudesse responder.
Li Wang permaneceu imóvel, com aparelho colado ao ouvido, encarando o vazio. Tentou retornar à ligação uma, duas, cinco vezes. Nada. Nenhuma resposta.
Fechou os olhos, respirando fundo. Mesmo depois de tudo… mesmo após a traição de Nathan, ela ainda lhe concedia o privilégio da dúvida.
— Vamos para o Nepal. — Sua voz soou firme, rasgando o silêncio da sala.
Dayse e Bárbara se entreolharam, confusas com a decisão repentina, enquanto Henry seguia dormindo no berço, alheio a tudo.
Poucas horas depois, os quatro embarcaram no avião que sempre fica à disposição.
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