Índice de Capítulo

    O sol da manhã adentrava a cozinha com uma luz clara e tranquila, iluminando a mesa enquanto o som das notícias da TV passava ao fundo, mas abafado pela torrada estalando na boca da Hana.

    Estávamos ali, os três, em nossa rotina diária.

    Tudo normal… ou quase.

    Até que minha mãe quebrou o silêncio:

    — Hm? Tem alguma coisa pra fazer hoje, Shin? — perguntou, sem tirar os olhos da pia, enquanto lavava um copo.

    Parei por um segundo, segurando a xícara de café na mão. Não era uma pergunta difícil, mas ela me pegou desprevenido. Parte de mim queria dizer de forma simples.

    Outra parte… não sabia se deveria.

    — Sim. Tenho… um compromisso — respondi, sem levantar muito os olhos.

    — Entendo — ela respondeu, apenas. Não perguntou mais nada. Era o tipo de resposta que dizia tudo e ao mesmo tempo… nada.

    Terminei meu café sem dizer muito. Peguei duas torradas e as guardei, enquanto Hana falava animadamente sobre algum programa que tinha assistido na noite anterior, mas minha mente já estava longe dali.

    Subi rapidamente as escadas, indo até o meu quarto e me troquei. Escolhi uma roupa mais casual, me olhei rapidamente no espelho. Cabelo arrumado, perfume passado, tudo parecia certo. Calcei o tênis, peguei o celular e minha carteira, saindo de casa.

    — Volto mais tarde! — anunciei da porta, e minha mãe respondeu com um aceno de cabeça rápido.

    O ar fresco da manhã logo me envolveu. As ruas estavam tranquilas naquele dia, enquanto o céu estava limpo e azul, com poucas nuvens em cima. Uma manhã que, pra qualquer um, seria só mais uma… mas não para ela.

    Não para Yuki.

    Enquanto caminhava com as mãos nos bolsos, o som dos passos na calçada era a única coisa me acompanhando. E, na cabeça, voltava sempre a mesma cena: o sofá da minha sala, a luz baixa, a voz dela soando ao mesmo tempo firme… e hesitante.

    Falando sobre a competição. Sobre o esforço, a pressão, a vontade.

    E sobre o que aquilo significava pra ela. Foi então que me lembrei do que eu havia prometido.

    “Então eu vou! Pode contar com isso.”

    Na hora, foi só uma resposta, uma frase quase automática naquela situação. Mas naquele momento, enquanto me aproximava do local do evento, ela ganhava um peso totalmente diferente, de outro tamanho.

    Era bem mais do que apenas estar ali presente.

    Era estar lá… por ela.

    E apoiá-la.


    Peguei o ônibus com a localização que ela tinha me mandado na noite anterior. E, depois de alguns minutos de caminhada, finalmente vi.

    O centro esportivo.

    Parei por um momento, sem perceber.

    — Uau…

    Era muito maior do que eu imaginava.

    O lugar era cercado por arquibancadas dos dois lados. Algumas tendas brancas se alinhavam na lateral do campo. Pessoas de todas as idades caminhavam, algumas com mochilas, outras com pranchetas. Grupos de uniformes conversavam de forma alegre, enquanto alguns corredores se aqueciam sob o sol da manhã.

    Ouvi um apito no fundo, seguido por um sinal alto, era alguém gritando instruções. Pais batiam palmas, técnicos falavam alto, vozes de torcida ecoavam por todos os lados.

    Era como estar no meio de algo muito maior, e, ao mesmo tempo, extremamente pessoal.

    O ambiente tinha algo de empolgante e tenso, mas, no meio de tudo aquilo, meus pensamentos estavam em outro lugar.

    Em Yuki.

    Onde ela estaria? Como estaria se sentindo?

    Me aproximei de uma das grades, tentando encontrar algum ponto com boa visão. Olhei à frente, procurando por ela, mas… nada. Apenas corredores se aquecendo e juízes observando.

    Talvez sua prova ainda estivesse longe. Talvez ela estivesse em algum canto mais reservado, se concentrando. Sentei num dos bancos próximos, observando as corridas que aconteciam à minha frente.

    Era tudo tão… intenso.

    Então, ouvi alguém me chamar.

    “Hm?”

    Quem poderia ser? A voz era bem familiar, de alguma forma.

    — Ei! Você! Shin!

    Olhei em volta, surpreso. Demorei um segundo para localizar a origem do som, até ver uma mão se mexendo no ar, e então o rosto era mais familiar do que a voz. Cabelos um pouco bagunçados, olhar vivo, sorriso fácil. 

    Hã?

    Kaito?

    O irmão da Yuki veio até mim, sorrindo como se estivéssemos marcados de nos encontrar ali. Ele ainda se lembrava de mim?

    Nós só tínhamos nos falado apenas uma vez, e foi durante o festival no verão…

    — Então é verdade! — disse ele, animado. — Achei que tinha confundido, mas… é você mesmo!

    — Kaito? — respondi, um pouco surpreso. — Você por aqui também…

    — É claro, né? — cruzou os braços, sorrindo de leve. — Como eu ia perder a corrida da minha irmã?

    — Ah, sim — assenti, voltando o olhar para a pista.

    — E você? Veio torcer por ela também, ou tem outro motivo? — Ele perguntou, me encarando com um sorriso esquisito.

    A pergunta me pegou desprevenido… acabei congelando no mesmo instante.

    — Eu… — hesitei, passando a mão na nuca, meu rosto queimando. — Eu prometi pra ela que viria. Queria torcer, só isso…

    — Sei… — ele riu, dando uma cotovelada leve no meu braço. — Tá bom.

    — É só isso mesmo… — tentei dizer, mas já estava vermelho… que droga.

    — Relaxa, Shin, tô só brincando com você — ele disse, rindo ainda mais. — Vem comigo. A gente tá sentado num lugar com uma vista melhor pra pista.

    Ele tinha dito “A gente”… então tinha mais alguém além dele?

    Segui Kaito por entre os corredores, desviando das pessoas e barracas, enquanto ele cumprimentava uma ou outra pessoa com acenos rápidos. Subimos até uma área mais elevada, perto da arquibancada.

    E foi ali que parei, por reflexo.

    Sentada com postura ereta, braços cruzados no colo, óculos escuros e expressão difícil de decifrar… estava a mãe da Yuki.

    Mesmo com o tempo, reconheci de imediato. A mesma presença calma e firme de antes.

    — Mãe, esse é o Shin — disse Kaito, apontando pra mim. — Amigo da Yuki lá da Escola. Ele veio torcer por ela também.

    Ela apenas me olhou e acenou levemente com a cabeça, sem dizer nada.

    — Bom dia — murmurei, tentando não parecer nervoso.

    Nenhuma resposta. Apenas outro aceno educado. Kaito olhou pra mim, talvez percebendo meu leve desconforto com aquela situação.

    — Ela é assim mesmo, relaxa — sussurrou Kaito. — Mas deve estar feliz por ter um amigo da Yuki por aqui. Ela só não demonstra esse tipo de coisa.

    — Ah, sim…

    Sentei ao lado dele. O silêncio ali não era tão desconfortável, mas… tenso. O tipo de silêncio que parece pesar nos ombros.

    Talvez fosse só impressão minha… ou não.

    Na pista, alguns corredores se alinhavam. O locutor anunciava nomes, escolas e clubes, enquanto o vento leve balançava as bandeiras no alto dos postes. Então, um sinal ressoou pelo local, e os corredores dispararam no mesmo instante.

    Era como assistir… outra realidade. Os atletas se moviam com uma precisão gigantesca, as pernas impulsionando contra o chão com força. Os gritos da plateia. O som abafado das voltas.

    — Ela vai correr nos cem metros — disse Kaito, sem tirar os olhos da pista. — É a melhor prova dela. Tenho certeza que ela vai ganhar.

    — Entendo… — falei, ainda observando os corredores.

    — Ela precisa ficar entre as três primeiras para poder ir até os Nacionais — Kaito tirou uma dúvida que eu tinha em mente, e continuou. — E se bater um bom tempo… pode chamar a atenção de gente maior. Técnicos, bolsas… esses tipo de coisas.

    Virei o rosto de leve, olhando Kaito com surpresa.

    — Oh… Eu não fazia ideia que era tão grande assim…

    — É. Ela também não contava com isso no princípio, mas foi pegando gosto. E agora tá aqui. Mesmo cansada, mesmo com a escola e os estudos, ela não parou.

    Fiquei em silêncio por alguns segundos.

    É fácil esquecer o quanto alguém se esforça nos bastidores, afinal, só vemos o lado de fora.

    O tempo investido, as tentativas falhas, os detalhes escondidos.

    Só vemos o resultado, como se tudo tivesse acontecido sem esforço.

    Especialmente alguém como Yuki, que fazia tudo parecer simples, algo completamente natural. Então, tentei imaginar aquilo que Kaito disse:

    A rotina, talvez o corpo doendo, implorando por uma pausa, tudo isso junto dos estudos, suas responsabilidades como representante…

    Mas ainda assim… ela continuava.

    Um leve sorriso surgiu no meu rosto.

    Yuki era mesmo… incrível.

    Ficamos em silêncio. Eu ainda observava os corredores cruzando a linha de chegada. Um deles tropeçou no fim, e caiu. Outro gritou, com os braços no alto.

    O locutor anunciou os tempos dos corredores e os colocados. Palmas ecoaram, e então, de novo, o sinal da próxima corrida começou após um tempo.

    Foi quando Kaito se inclinou levemente pra frente com um olhar mais sério, como se estivesse procurando alguém.

    — Olha lá… é ela.

    Meu olhar seguiu a direção do dedo dele quase por reflexo.

    Yuki.

    Lá no campo, na pista. Vestia o uniforme branco com detalhes em vermelho, o número nas costas. O cabelo preso em um rabo de cavalo, era uma visão de outro mundo. Seus olhos estavam fixos na pista, enquanto alongava as pernas.

    A expressão dela era bem séria. 

    Totalmente focada.

    Ela parecia… completamente diferente.

    Ali, naquele instante… ela não era a Yuki da escola.

    Aquela Yuki que ria baixinho nos ensaios, com aquele sorriso suave. Ou a Yuki preocupada, como no dia em que cuidou de mim. Nem a que aparecia do nada com palavras certas quando eu não conseguia colocar para fora o que queria transmitir.

    Ela era… outra.

    Alguém mais forte. Mais rápida, mais… determinada.

    Era como se o campo fizesse parte dela, e ambos fossem um só.

    — Ei! Yuki! — Kaito gritou , acenando com os braços, sem se importar com os olhares ao redor.

    Ela demorou um pouco, mas logo virou o rosto. Seus olhos buscaram a direção da voz, e então nossos olhares se cruzaram.

    Era como se o munto tivesse desacelerado. Apenas nós ali. Sem som, multidão, vento ou algo assim. Então, um sorriso surgiu no seu rosto, pequeno e tímido, como se não esperasse me ver ali realmente, mas que parecia genuíno. Ela acenou na minha direção de leve, fazendo meu coração errar uma batida.

    Meu rosto esquentou, como se o sol tivesse decidido iluminar apenas eu.

    — Então as coisas já estão assim, hein? — murmurou Kaito, rindo, me dando um leve empurrão no ombro.

    — Q-quê?! Não sei do que você tá falando… — tentei dizer, desviando o olhar da pista.

    — Relaxa — disse ele, piscando. — Se for você… eu aprovo!

    Engasguei com a minha própria saliva, o que ele quis dizer com “aprovo”?

    — Hã!? O que você…

    O locutor então cortou a conversa com sua voz firme nos alto-falantes:

    — Última chamada para a prova feminina dos 100 metros, categoria sênior. Atletas, por favor, dirijam-se à linha de largada.

    A multidão começou a se ajeitar, as vozes diminuindo, enquanto os juízes se preparavam.

    Olhei para ela, que caminhava até a pista com os olhos à frente, as mãos soltas ao lado do corpo. Ela fechou os olhos por um momento, respirando fundo.

    Uma a uma, abaixaram-se na linha, mãos no chão, pés nos blocos de partida. Os corpos curvados, em preparação para a grande corrida.

    Yuki foi a última.

    O mundo pareceu ficar em silêncio. Ali estava ela, no centro do campo. De frente para o mundo todo.

    E eu… ali, em meio à multidão, ao lado de Kaito, sentindo o coração bater tão alto que mal conseguia ouvir o resto.

    Torcendo por ela. Pela corrida dela. Pela conquista que talvez mudasse tudo.

    Mas, mais do que isso… por algo que não dava pra explicar tão fácil.

    Por algo que, talvez, fosse maior do que só vencer.

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