Raphael e as duas matriarcas aguardavam que Kelsi e o restante dos policiais chegassem até o apartamento.
     

    — Alguma coisa aí? — perguntou ele a Alina.
     

    — Um contrato padrão. Só que feito para esconder o beneficiário… estranho.
     

    Ela continuou mexendo no terminal.
     

    — Pela nossa intranet, Omnit Enterprises é uma empresa de tecnologia recente, sancionada, operando dentro da lei. Em tese, nada a ver com heresias.
     

    — Trabalham com o quê?
     

    — Software e automação — respondeu.
     

    — A serpente metálica que nos atacou poderia ser coisa deles?
     

    — Robôs industriais, sim. Agora… uma I.A. capaz daquilo? Muito improvável.
     

    Nesse momento, os policiais chegaram.
     

    — Que bela chacina… — comentou um deles, assoviando.
     

    Vida lançou um olhar fulminante, e o homem se calou na hora.
     

    Kelsi entrou e fixou os olhos em Raphael.
     

    — Estão todos bem? Pegaram algum deles vivo?
     

    — Infelizmente não. Preferiram se explodir a colaborar — disse, apontando para o corredor.
     

    Kelsi levou um lenço ao rosto, escondendo qualquer reação.
     

    — Alguma sorte com Carlos Eldo?
     

    — Não. Morto, deitado na cama. Achamos isso.
     

    Ele ergueu um pequeno inseto robótico, o abdômen lembrando uma seringa hipodérmica.
     

    — Ainda não levei ao laboratório para análise — explicou. — E vocês, alguma descoberta?
     

    — Omnit Enterprises — murmurou Raphael. — Já ouviu falar?
     

    — Nunca — respondeu Kelsi, sem hesitar.
     

    — E Kristal Garden Palace? — perguntou Alina, entrando na conversa.
     

    — Esse sim. É famoso. Um dos condomínios mais luxuosos da cidade. Só figurões moram lá, políticos, nobreza… o topo do topo. Eu mesmo não tenho jurisdição de entrar.
     

    — Ainda bem que eu tenho — disse Raphael, passando o polegar pelo distintivo. — Me conecte com seu chefe agora. Tenho uma conversa para ter com ele.
     

    Após algumas negociações, e a ameaça explícita de acusar o chefe de polícia de conluio com hereges, Raphael conseguiu transporte até o condomínio e apoio policial.
     

    Ele fervia de raiva. A notícia da batida havia vazado, e muitos moradores já tinham fugido. Se encontrassem o apartamento vazio, a culpa cairia no colo do chefe de polícia e dos políticos que não queriam escândalos. Não em território da elite.
     

    Alina pousou a mão em seu ombro. Sabia o que se passava na mente do inquisidor. Partilhava da ira dele, mas aquilo não os levaria a nada. Teriam de explicar em relatório e deixar os superiores agirem. Tecnicamente poderiam executar todos ali, até a mais alta autoridade do planeta, mas a dor de cabeça seria insuportável.
     

    O drone subiu, deixando para trás as chaminés e a fumaça dos distritos fabris. Acima das nuvens, o ar rarefeito trazia uma visão de sonho: um complexo de aço e vidro reluzia sob o sol poente, como um castelo suspenso no céu.

    Ao pousarem, foram recebidos por uma equipe de segurança privada.
     

    As fardas brancas dos guardas contrastavam com os trajes civis dos detetives que acompanhavam Raphael e as matriarcas.
     

    — Posso ver suas autori… — começou um deles, barba aparada, expressão austera.
     

    Não terminou a frase. Raphael desferiu um murro violento em seu rosto.
     

    O homem cambaleou para trás. O nariz quebrou com um estalo, jorrando sangue sobre a farda branca.
     

    O inquisidor ergueu o distintivo.
     

    — Vão mesmo testar a minha paciência?
     

    Vida já estava com a espada desembainhada. Alina, com as adagas negras em punho, suas máscaras e véus eram suas identificações.
     

    O guarda recuou, engolindo em seco, a mão cobrindo o nariz partido. Qualquer resquício de coragem ou autoridade evaporara. Os demais seguiram o exemplo, intimidados.
     

    Raphael voltou-se para Kelsi.
     

    — Mostre o caminho.
     

    Kelsi empurrou o segurança mais assustado para a frente.
     

    — Apartamento Excelsior — ordenou. — Vamos.
     

    O condomínio estava deserto. O medo da batida, ou talvez da violência que a seguiria, havia esvaziado as ruas de luxo. Prédios de vidro espelhado refletiam o grupo enquanto atravessavam o complexo. Alguns arranha-céus se erguiam como torres; outros, mais exclusivos, lembravam fortalezas particulares. O Excelsior era um desses: um bloco espelhado, com sacadas e mezaninos, ladeado por um jardim impecável e um espelho d’água.
     

    Estava inteiro alugado para a Omnit Enterprises.
     

    — É aqui? — Kelsi perguntou, o bigode tremendo.
     

    O segurança apenas assentiu.
     

    Raphael se adiantou. Quando seu aproximou o bastante a porta se abriu sozinha. O trio parou em seco. Não era um bom sinal.
     

    Lá de dentro, um estampido abafado, explosão e o barulho molhado que já tinham ouvido uma vez. Outro herético se suicidara.
     

    — Deixe comigo — disse Alina, tomando a dianteira. — Estarei atenta às armadilhas.
     

    Raphael assentiu. Se alguém podia sentir isso, era ela.
     

    Atravessaram a sala. Kelsi levou o lenço ao rosto. Meio dúzia de corpos jaziam no sofá em L. Estavam espalhados como marionetes largadas, as cabeças estouradas, ossos e miolos cobrindo móveis e paredes. Tinham esperado a chegada deles para se matarem em uníssono.
     

    Alina fechou os olhos por um instante.

    — Dois vivos no andar de cima.
     

    — Revistem o térreo — ordenou Raphael a Kelsi e aos policiais. — Vida, fique com eles.
     

    Subiu a escada ao lado de Alina. Passo a passo, o ar parecia mais pesado.
     

    De trás de uma porta entreaberta, ouviram um gemido, prazer ou dor, ambos, impossível distinguir.
     

    Raphael puxou a pistola e entrou.
     

    Um homem alto, nu, cabelos negros caindo pelos ombros, de costas para eles. Na mão, um aplicador de aether. Na cama, uma jovem se contorcia nua, os gemidos se confundindo com risos.
     

    Ele se virou devagar e sorriu. Não era um sorriso humano. Esgarçado de tão largo.
     

    — Incrível como podemos induzir a evolução com tão pouco… — ergueu o aplicador. — Só precisa de um empurrão na direção certa.
     

    — Afaste-se dela! — bradou Raphael.
     

    Ele riu, ignorando. A mulher arqueou, o ventre inchando grotescamente. As veias saltaram como cordas sob a pele, o abdômen pulsando como se algo vivo tentasse escapar. Os gemidos se tornaram gritos agudos que cortavam o ar.
     

    A pele da barriga começou a rachar, costelas estalaram, músculos se torciam em nós vermelhos. O corpo dela se contorcia, o quadril batendo contra a cama em espasmos convulsos. Sob a pele, algo deslizava como um enxame de vermes de metal.
     

    Raphael reconheceu a cena, intoxicação letal por aether levando à mutações, em um extremo antinatural. Mas não era só isso. Havia algo mais.
     

    A mulher gritou até a garganta se romper em sangue. O ventre inchou grotescamente e então se abriu num estalo surdo, jorrando vísceras, fluidos e um cheiro metálico acre. O grito cortou abrupto. Ela parou de se mexer, os olhos ainda arregalados.
     

    O homem avançou em direção ao cadáver como um cientista excitado diante de um experimento.
     

    Raphael atirou como um aviso. A bala fez um buraco na parede. O homem nem sequer recuou ou se importou.
     

    — Mais uma falha… — murmurou. — Uma pena ser a última.
     

    Enfiou a mão dentro do abdômen aberto e puxou algo prateado, uma massa hedionda de vísceras misturadas a engrenagens cromadas. Tubos pulsavam, ainda drenando sangue e óleo. Peças de metal e tubos brilhavam coladas a fragmentos de órgãos, como se a carne tentasse assimilar a máquina.
     

    — Largue isso! — Raphael mirou de novo. — No chão!
     

    Obedeça! — a voz de Alina reverberou, cheia de sua vontade.
     

    O sorriso dele apenas se ampliou, revelando dentes demais.
     

    — Ah, Matriarca… truques baratos não funcionam comigo. Está na hora de largar esta pele imunda.
     

    Levou a mão ao próprio rosto. Raphael disparou outra vez. O tiro arrancou um pedaço enorme da face. Por baixo, um olho mecânico vermelho ardeu na penumbra do quarto. Onde deveria ter ossos, apenas metal, brilhante.
     

    — Pelo Demiurgo… — murmurou Raphael.
     

    Não houve tempo para mais nada. A criatura saltou contra Alina. A Matriarca ergueu as adagas, bloqueando o impacto. O choque fez faíscas estalarem no ar, chiando como brasas vivas. O som metálico reverberou pelo saguão, e por um instante pareceu que duas espadas estavam sendo afiadas uma contra a outra.
     

    O homem cambaleou alguns passos para trás. Então, em um movimento grotesco, levou as mãos ao próprio rosto ensanguentado. Agarrou a carne ao redor do nariz quebrado e puxou como quem arranca um pano encharcado. O estalo molhado de pele se rasgando ecoou pelo hall. O sangue caiu em gotas espessas no piso branco, manchando-o de vermelho.
     

    A pele humana não era nada além de um disfarce. Por baixo, surgia algo que não deveria existir. Ossos que não eram ossos — uma ossatura metálica, composta de barras finas, juntas afiadas e fibras sintéticas pulsando como músculos doentes. O peito se abriu revelando cabos que latejavam como veias. Os olhos, antes humanos, se retraíram, revelando duas lentes brilhantes, fixas e cruéis.
     

    Um riso mecânico escapou da boca aberta, enquanto pedaços de carne ainda pendiam da mandíbula. Era como se duas vozes falassem ao mesmo tempo: uma, humana, engasgada pelo sangue; a outra, metálica, ressoando com um eco vazio.
     

    Raphael disparou uma dose de aether concentrado. O clarão atingiu o peito da criatura, espalhando faíscas pela estrutura metálica. Ela apenas estremeceu, como se tivesse levado um choque elétrico. Nenhum dano real. O monstro explodiu em movimento.
     

    Alina o interceptou, cruzando suas lâminas contra as garras metálicas. Cada golpe fazia suas adagas gemerem, o impacto reverberando por seus braços. Ela recuava a cada choque, os músculos tremendo.
     

    — Vida! — chamou, sentindo a pressão aumentar.
     

    Raphael fechou os olhos e puxou o aether. O ar ao redor começou a se agitar, o atrito das partículas criando um calor sufocante. O ambiente chiou, o oxigênio parecia queimar antes de entrar nos pulmões. Alina gemeu ao sentir a onda de calor percorrer sua pele, obrigando-a a se afastar.
     

    A criatura incandesceu em pontos, sua carcaça tingindo-se de vermelho vivo. O metal fumegava. Mas ela não reagiu à dor — apenas abriu a boca em um sorriso grotesco, a carne remanescente assando sobre a liga metálica. Em um lampejo, abandonou Alina e avançou contra Raphael. O punho se chocou contra seu peito como um aríete. O inquisidor foi arremessado contra a parede, o impacto reverberando por todo o corredor. O ar foi arrancado de seus pulmões; ele engasgou com o gosto metálico do próprio sangue.
     

    Antes que pudesse se recompor, a criatura já estava sobre ele. O braço erguido, pronto para esmagar sua cabeça.
     

    Foi quando Vida surgiu, urrando, a espada descrevendo um arco brilhante. O golpe ricocheteou contra o metal, forçando o inimigo a recuar. As lâminas de Alina voltaram a entrar em ação, formando um cerco instintivo ao redor da criatura.
     

    — Mais três mortes… nada mal… — murmurou o robô, como se falasse consigo mesmo, a voz meio metálica, meio humana, cuspida por alto-falantes internos. — Pena que atrapalhem os meus planos aqui…
     

    Ele explodiu contra Alina outra vez. As adagas já não acompanhavam sua velocidade. Um golpe certeiro atingiu seu antebraço, a fratura ecoando como o estalo de um galho seco. O osso e a liga de sua armadura cederam. A adaga caiu no chão, rodopiando até parar aos pés de Raphael. O flanco da matriarca estava exposto.
     

    O robô ergueu as garras para rasgá-la em dois.
     

    Vida se interpôs, a espada colidindo contra a lâmina do braço inimigo. O choque ecoou, faiscante. Mas a criatura desviou o punho livre e atingiu o rosto de Vida. O impacto foi devastador. O corpo dela voou, rodopiando como uma boneca quebrada, até se chocar contra a parede.
     

    Raphael tentou levantar-se, mas seu corpo não respondia. A armadura peitoral estava afundada, rachada. Cada respiração era um tormento. O robô se voltou para ele, pronto para finalizar.
     

    — Que baratas insistentes… — disse, com uma risada que misturava chiado e sangue.
     

    Antes que pudesse dar o passo final, o ar mudou. O ambiente pareceu sugar para um vácuo repentino.
     

    Vida se erguia lentamente. A máscara de seu rosto estava rachada, liberando lufadas de ar e aether pelo buraco. Seu olho direito, agora visível, não era humano, ardia em uma cor impossível, uma centelha quase divina.
     

    Alina olhou, incrédula. Não reconhecia a companheira diante dela.
     

    A espada de Vida cintilou, refletindo o mesmo brilho que queimava em sua íris. Ela avançou. Um único passo. Um único golpe. A lâmina traçou um arco impossível de acompanhar.
     

    A criatura parou, congelada no movimento. E então se partiu. A carcaça metálica caiu em duas metades perfeitas, o sangue humano e o óleo negro se misturando em uma poça grotesca.
     

    — I-impossível… — gaguejou a voz metálica, antes de se extinguir.
     

    O silêncio caiu. Alina, arfando, olhava para Vida sem acreditar.
     

    No instante seguinte, a força a abandonou. Vida desabou no chão, inerte, como se tivesse sido drenada até o último resquício de energia.
     

    — O que diabos… foi isso? — murmurou Alina, a voz embargada.

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