Capítulo 34 - "Reencontros"
Narrado por Kael
O segundo dia amanheceu com a névoa preguiçosa descendo pelas ruas de Altheria.
Cheiro de pão assando, martelos no mercado, passos apressados. O frio parecia mais leve, como se a cidade estivesse em um daqueles raros respiros entre tempestades.
Eu tinha estacionado minha carroça entre um vendedor de queijos e uma senhora que parecia vender absolutamente qualquer coisa que coubesse num cesto: agulhas, ervas, brinquedos de madeira, até pedras “com formato de bicho”.
Espalhei os pacotes de especiarias sobre a banca improvisada. Canela de Cervalhion, pimenta seca do Sul, ervas raras que só quem entende reconheceria. Meu truque era simples: sorrir como se vendesse tesouros, mesmo que fosse só sal grosso. Afinal, hoje eu não estava ali para lucro. Óbvio que nunca recusaria dinheiro, mas a prioridade era outra: informações.
— Bom dia! — cumprimentei o primeiro cliente, um homem de capa grossa. — Tá procurando sabor? Tenho algo aqui que vai mudar sua sopa pra sempre.
Ele riu, pegou um pacotinho de pimenta. Enquanto contava as moedas, suspirou:
— Você esta sentido algo?
— o que? — ele perguntou processando a pergunta — Ah.. não é que desde a noite dos raios, quase não consigo dormir.
Arqueei a sobrancelha, fingindo curiosidade inocente.
— Raios? No inverno? Que azar…
— Não foi azar. — Ele baixou o tom. — Foi ele. O Guardião fez a terra tremer e cair um raio na cidade… parecia que o mundo estava acabando.
Não precisei perguntar mais nada isso tem cara de Thamir… provavelmente chegou com uma entrada dramática. Ele saiu, mas deixou o fio da conversa que eu queria puxar.
O movimento aumentou. Cada venda vinha com uma história.
— A cidade nunca foi tão agitada. — disse um rapaz comprando canela. — Desde que aquele… Guardião chegou.
— Guardião? — perguntei, com um sorriso de quem mal sabe o que é isso.
— Alto, ombros largos, expressão que parece dizer “não chegue perto”. A Rainha parece confiar nele, mas… — ele olhou em volta antes de continuar — eu não sei se confiaria.
Balancei a cabeça, como quem compartilha da dúvida. E já tinha mais um pedaço de informação. mas eu não podia desacelerar.
— Bom dia, desculpe não ter falado mais cedo — falei me aproximando do vendedor de queijos
— HAHAHA, fique tranquilo meu jovem — o vendedor de queijos me deu um sorriso acolhedor como um veterano caloroso olhando para um novato. — Eu também não fui te dar as boas vindas então estamos quites.
— Aqui — joguei um pequeno pote de especiarias — espero que goste é pimenta do Leste.
— Olha só que jovem educado — A senhora da cesta finalmente se aproximou, — me chamo Amélia.
Ela falou me estendendo a mão como uma dama, bom.. não posso deixar uma dama esperando certo?!
— Muito prazer em conhece-la Amélia, me chamo Kael, — Falei aceitando o comprimento de Amélia.
— Você chegou em um ótimo dia para a feira, e obrigada por ter a decência de não vender os mesmo itens que eu, vi que você tem uma carroça cheia.
— Seria loucura da minha parte fazer algo assim em uma cidade nova — falei rapidamente olhando para o rapaz dos queijos.
— Esperto hen garoto… — ele se aproximo saindo de trás da bancada de queijos. — A proposito me chamo Domani, mas sou conhecido apenas por Dom.
Entre uma venda e outra, ofereci chá a um grupo de guardas que parou por perto. Homens duros de conversa, mas nada que um pouco de petiscos com hospitalidade não possa amolecer.
Um deles resmungou:
— Ele luta bem. Vi com meus próprios olhos. Mas… quando o ar tremeu, juro, foi assustador. Senti a pedra vibrar sob os pés.
Outro completou: — Força demais nunca é boa. Sempre cobra o preço.
— Mas quem era aquela maga de ontem?
— não sei meu amigo.. só sei que nunca mais fico no caminho de outra pedra que ela arremessar.
Assenti devagar, guardando cada palavra como moeda preciosa.
Notei que sempre havia essa pausa antes de falarem dele. Como se cada um estivesse decidindo até onde era seguro ir com as palavras.
— Para aquecer as mãos. Por conta da casa.
Eles se entreolharam. O mais velho pegou, ainda desconfiado. — Chá?
— Melhor do que vinho a essa hora. — brinquei.
A desconfiança amoleceu um pouco.
No meio da manhã, a senhora Amelia que estava ao lado começou a me indicar clientes.
“Aquele gosta de erva-doce. E fala mais do que compra.” Não estava errada. O homem comprou duas folhas e me contou que, na madrugada depois da arena, uma tempestade de raios caiu sem aviso.
— Eu achei que a barreira tinha se rompido. — disse ele, com os olhos ainda arregalados pela lembrança. — Mas era só outro truque desse tal Guardião.
Sorri educadamente, mas por dentro já costurava o mapa da cidade em minha cabeça.
Quando o sol começou a se inclinar para o oeste, decidi encerrar. Não porque tinha acabado a mercadoria, mas porque já tinha o suficiente de outra coisa: histórias. Muitas, de bocas diferentes, mas todas apontando para a mesma direção.
Ian não estava apenas na cidade.
Ele estava mexendo com ela.
Guardei os pacotes com calma, aproveitando o silêncio que vinha depois da correria do mercado. O cheiro de pão ainda rondava, misturado à fumaça dos fornos.
À noite, eu desceria até o templo inferior.
Não mais como vendedor.
Mas como alguém que finalmente já sabia o bastante para se apresentar.
O portão lateral do templo estava iluminado por tochas e protegido por duas guardas com lanças cruzadas. Eu, vestido de mercador, ainda sentia o cheiro das especiarias que tinha passado o dia vendendo. Sorrisos, histórias improvisadas, alguns trocados… tudo para manter o disfarce e arrancar informações sem levantar muita suspeita.
— Negócios noturnos? — perguntou um dos guardas, estreitando os olhos.
— Não, visita. — Respondi, tranquilo. — Preciso ver Ian o Guardião do Norte.
Os dois se entreolharam, medindo minhas roupas, a carroça estacionada a alguns metros e a caixa de madeira que escondia algo muito mais perigoso que pimenta.
Um deles bufou.
— Desculpe. Ninguém entra no templo à noite sem escolta.
— Então me escoltem. — Sorri de canto. — Ou vocês acham que vou me perder aqui dentro?
—Desculpe senhor, mas apenas pessoas autorizadas possuem acesso — ele falou claramente mais hostil.
— Tudo bem, então avisem ao Guardião do norte que os itens que ele comprou no mercado estão aqui na frente.
se minhas suspeitas estivessem corretas… a maioria dos guardas devem ter muito medo de Ian..
Poucos minutos depois, um dos guardas me conduzia pelos corredores de pedra até o salão interno, parece que o medo de Ian era maior do que qualquer punição por quebrar as regras…
A cada passo, o som das botas ecoava, junto com a lembrança do porquê eu estava ali.
Ian e Thamir não eram apenas conhecidos… eram meus irmãos de guerra. E irmãos não se deixam sozinhos, mesmo quando o chamado soa mais como paranoia do que urgência.
Quando a porta se abriu, a primeira pessoa que vi foi Ian. Ele se levantou imediatamente, aquele meio sorriso de sempre no rosto.
— Demorou, hein? — disse ele. — Achei que ia ter que mandar buscar.
— Eu vim. — Respondi. — Só quis ver o terreno antes.
Thamir estava encostado na parede, os braços cruzados. — Tradução: ficou passeando.
— Se chama de estratégia. — Retruquei, caminhando até eles. — Ou acha que sou louco como um certo alguém… que chega pulando no meio do campo inimigo sem analisar antes?
Thamir deu um sorriso concordando — Justo.
Dei um abraço nos dois. Nem eu sabia que sentia tanta falta desses malucos.
Foi então que a vi. Naira… Ela virou o rosto para mim e, por um instante, a sala pareceu menor. Os olhos dela se estreitaram levemente, e um sorriso quase imperceptível se formou, carregado de ironia.
— Olha só… — ela disse. — Ainda vivo.
— E melhor do que nunca. — Respondi, mantendo o tom leve, mas sem desviar o olhar.
Ian nos observava como se soubesse exatamente o peso daquele silêncio que veio depois.
Ao lado dela havia duas mulheres, a mais à direita era branca com olhos azuis usava um vestido preto, que dava um belo contraste com os cabelos brancos longos, ela parecia me avaliar de cima a baixo… os olhos dela eram bonitos, mas davam um pouco de medo. A que estava no centro das duas era mais baixa, parecia uma guerreira já que usava uma armadura de treino leve, com uma calça de couro, os cabelos dela iam até a linha dos ombros tambem me olhava com curiosidade e tinha Naira….
— E você é…? — a guerreira do meio falou com um toque de curiosidade
— Kael. — Respondi, simples. — Amigo desses loucos.
A de vestido preto, até então quieta, falou com aquela voz firme que enchia a sala:
— Amigo… ou aliado de guerra?
— Os dois. — Respondi, sem hesitar.
Ian bateu no meu ombro. — Senta ai Estalinho.
— Diz “floquinho de neve”. — Respondi de imediato, e nós dois caímos na risada, com Thamir só revirando os olhos.
Me sentei e tirei a capa de mercador. — Agora falando sério… o que aconteceu pra você chamar nós três depois de tanto tempo?
O clima mudou. Thamir fez as apresentações formais: Lysvallis, a rainha; Aisha, a aprendiz. Um resumo rápido veio na sequência, o suficiente para eu entender onde estava me metendo.
A tensão entre Naira e eu ainda estava no ar, mas a presença de Ian e Thamir puxava tudo para o eixo.
Eu sabia que ia precisar ter algumas conversas difíceis. Mas, por enquanto, estar na mesma sala que eles de novo… já era suficiente para lembrar que, apesar de tudo, ainda éramos o mesmo grupo que sobreviveu a coisas que ninguém mais acreditaria.
Quando Thamir terminou o resumo, me recostei na cadeira e encarei Ian.
— Então é isso? — perguntei. — A origem da barreira, perto de onde a Jyn morreu, e você acha que pode ser outro portal?
Ian cruzou os braços. — É o que parece. E até agora, ninguém teve uma explicação melhor.
Fiquei alguns segundos em silêncio, medindo as palavras, se ele estivesse certo, seria um verdadeiro problema…
— Nesse caso… você vai ter que retomar o controle do que anda segurando.
Ele arqueou uma sobrancelha. — Ah, claro… porque é tão simples quanto apertar um botão.
— Não disse que ia ser simples. — Inclinei-me para frente. — Mas se a coisa ficar feia, você não vai poder se dar ao luxo de brincar de cauteloso.
Naira, que até então se mantinha calada, falou sem tirar os olhos dele:
— Eu já disse a mesma coisa. Mas ele insiste em se segurar.
— Se vocês dois estão combinando pra encher minha paciência, estão fazendo um ótimo trabalho — Ian retrucou, seco, mas com aquele tom que sempre usava quando queria esconder o incômodo.
Thamir deu um leve sorriso. — A verdade dói, irmão.
Eu encarei Ian de novo. — Não é só sobre você, Ian. Se perder o controle no pior momento, não vai ter volta.
Ele não respondeu de imediato. Apenas desviou o olhar para a lareira, como se o fogo fosse mais fácil de encarar do que nós.
— Eu já concordei com Naira — ele falou ainda olhando as chamas
O silêncio foi quebrado pela Rainha Lysvallis, que observava tudo com atenção. — Seja lá o que vocês pretendem fazer para ajudar Ian a retomar o controle…. façam longe de Altheria.
Todos nós olhamos para ela.
— O clima da cidade está péssimo, os membros do círculo têm me pressionado bastante — ela falou caminhando em direção a Ian — eles dizem que tenho perdido o controle da minha cidade e que tenho dado muita liberdade para você Ian.
Antes que Ian abrisse a boca, Thamir deu de ombros. — Bom… tenho minha parcela de culpa.
A Rainha estreitou os olhos, mas não insistiu. Naira, por outro lado, parecia prestes a dizer mais alguma coisa, e eu sabia que o clima podia desandar rápido.
Resolvi cortar. — Amanhã, a gente fala disso com calma. Hoje, só quero dormir numa cama decente… se é que vocês têm uma sobrando.
Ian me lançou um meio sorriso. — Sempre. Mas vai ter que aguentar o ronco do Thamir.
— Melhor que o seu. — Respondi, sem pensar duas vezes.
Thamir riu. — Isso é debate antigo, vamos deixar pra outra hora.
O clima deu uma leve aliviada, mas a tensão estava ali, escondida nas entrelinhas. E eu sabia que, no fundo, aquela conversa sobre controle não estava nem perto de acabar.
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