Índice de Capítulo

    O cheiro de sangue e água salgada impregnava o ar, como se a própria masmorra respirasse a morte. Eu já tinha visto algumas batalhas desmoronarem, mas nada comparado a isso. Selene estava caída, Sophia parecia um boneco quebrado nos braços dela, e os covardes dos curandeiros nem ousavam se mover. Um bando de inúteis. Se ao menos a outra eu não tivesse me esgotado…

    A Guardiã ria. Não com som, mas com aquela presença sufocante que só monstros gostam de exalar quando acreditam ter vencido. O segundo par de olhos dela já se regenerava, mas ninguém parecia capaz de impedir.

    Foi então que olhei para Ashley. A garota tremia, ajoelhada ao lado de Selene, como se o mundo tivesse desabado inteiro sobre seus ombros, acabou, ela vai quebrar agora. Mas, em vez disso, algo começou a mudar. Primeiro o silêncio… como se até os estalos da água tivessem cessado para olhar. Depois veio o calor.

    O chão sob nós parecia pulsar, e a respiração dela ecoava como se fosse maior que o espaço. Era um calor que queimava, mas não como fogo comum: era como se o ar tivesse ficado denso, vivo, prestes a incendiar qualquer coisa que ousasse se aproximar.

    — Droga, Ashley… o que está acontecendo com você? — cerrei os punhos.

    Os outros observavam, paralisados entre medo e fascinação. Seja lá o que estivesse para acontecer era algo que podia nos salvar… ou nos consumir junto com ela.

    A medida que o calor crescia a respiração dela ficava mais frenética. O cabelo e os olhos da Ashley se tingiram de um azul tão intenso que quase feriam a visão. No instante em que o último fio foi tomado pela cor, uma explosão de chamas azuis se abriu dela como uma onda viva, engolindo tudo. As chamas varreram em nossa direção. Eu fechei os olhos. Esperei o pior.

    O silêncio durou só alguns segundos, mas pareceu uma eternidade. Quando abri os olhos, vi o caos estampado nos rostos ao redor: aventureiros que segundos antes gritavam de desespero agora se olhavam confusos, tocando os próprios corpos, percebendo que não sentiam dor alguma.

    — Está… curando? — murmurou um deles, atônito, observando as próprias feridas se fecharem sob o calor azul.

    — Ali! Ela… coresceu?! — outro gritou, sem acreditar no que via.

    Então era esse poder que aqueles homúnculos tinham visto nela. Ela liberava uma energia monstruosa, todo o andar foi engolido por chamas azuis em poucos segundos. O piso do andar antes enxarcado teve toda a água evaporada formando uma espécie de núvem mágica sob o teto.

    A Guardiã rugiu, se contorcendo nas chamas como se estivesse sendo consumida por ácido. Aquilo me perturbava. Isso não fazia sentido. As mesmas chamas que estavam cicatrizando nossas feridas… estavam dilacerando a criatura.

    Foi então que Ashley se ergueu. Havia algo de errado naquele olhar quase vazio, fixo, como se só existisse a Guardiã no mundo. Ela segurou a espada de Selene, e a lâmina, que antes carregava o brilho carmesim, agora reluzia com o azul incandescente das suas chamas.

    Quando saltou, asas de fogo azul se abriram em suas costas, espalhando fagulhas como estrelas em queda. O impacto da visão quase me fez esquecer de respirar. Havia certa beleza que eu não consegui explicar.

    — Ashley… de onde… veio tudo isso? — ouvi o Hernán murmurar, sua voz tomada pelo espanto.

    Aqua, ainda com o corpo trêmulo após recuperar a consciência, arregalou os olhos.

    — Presenciei uma situação de extremo estresse, em que um colega conseguiu corescer mais cedo… Mas eu nunca vi alguém… corescer mais tarde. — a expressão no rosto de Aqua era de extrema confusão.

    Ao ouvir o que ela disse eu soltei uma risada seca, amarga.

    — Se emoções têm poder… — deixei as palavras suspensas, observando Ashley desabar sobre a Guardiã como uma tempestade viva — então essa garota é a soma de toda a frustração e desespero de cada um de nós aqui. Para alguém que vive dizendo que quer ser forte… então é disso que você é capaz?!

    Ashley avançou, a espada erguida com firmeza. Num único movimento vertical, cortou o ar de baixo para cima. O chão tremeu. Uma coluna de chamas azuis irrompeu como se a própria terra tivesse cuspido fogo, engolindo a Guardiã e lançando-a para o alto.

    Sem hesitar, Ashley cruzou os braços e depois os abriu em dois cortes diagonais opostos. As chamas obedeceram, como feras acorrentadas libertadas ao mesmo tempo: duas rajadas incandescentes rasgaram o ar e se chocaram contra a Guardiã suspensa, explodindo com violência. O impacto atirou a serpente colossal contra a parede do andar, rachando as pedras e espalhando destroços por todos os lados.

    O silêncio seguinte foi preenchido apenas pelos gritos de surpresa.

    — Isso… como isso é possível?! — um aventureiro exclamou, sem acreditar.

    Cratos, ainda arfando pelo combate, abriu os olhos em choque.

    — Ela… sozinha… atirou aquela coisa contra a parede tão fácilmente…

    Selene, mesmo ferida, forçou um sorriso vacilante.

    — Chamas azuis…? Impressionante… — murmurou antes de perder a conciência novamente.

    Ashley, porém, não parecia ouvir nada. Ergueu a mão livre e, como se comandasse a própria natureza, naquele instante todas as chamas do andar começaram a se agitar. As chamas que se espalhavam pelo andar começaram a flutuar, fagulhas dançando pelo ar em direção à sua palma. Em segundos, cada centelha, cada labareda, foi sugada para dentro de uma esfera incandescente sobre sua mão.

    Ela girou o pulso, e a esfera começou a rodar. O ar ao redor se distorceu, ventos violentos nasceram em turbilhões, puxando poeira e pedras pequenas. Quanto mais a esfera girava, mais rápida e menor se tornava, comprimida até brilhar como um pequeno sol azul.

    — Ela vai… disparar isso? — murmurei, incapaz de esconder a incredulidade.

    Ashley ergueu o braço e direcionou a esfera para a Guardiã caída. Por um instante o andar inteiro permaneceu em silêncio… e então ela disparou.

    A esfera voou com ferocidade, atingiu a criatura, e no mesmo momento se expandiu num redemoinho de chamas devastadoras. O fogo azul engolfou tudo em seu caminho, rodopiando como uma tempestade que arrancava o próprio ar das paredes. Por um instante tudo que vi foi o corpo colossal da Guardiã se dissolvendo dentro do vórtice flamejante, desaparecendo como se nunca tivesse existido.

    Os ecos do impacto morreram lentamente. O andar inteiro estava mais uma vez em silêncio.

    Hernán, com os olhos arregalados, parecia tão assombrado quanto fascinado. Até mesmo os mais valentes hesitaram: uns com medo, outros com reverência, e alguns com uma admiração quase infantil.

    Mas Ashley não se moveu. Seu olhar fixo ainda encarava a direção onde a Guardiã havia sido carbonizada, como se esperasse que algo surgisse das cinzas, ou como se, dentro dela, o combate ainda não tivesse acabado. Mas o que tinha acabado de acontecer foi um milágre inimaginável,

    O silêncio após a explosão de chamas foi quebrado por murmúrios hesitantes. Alguns aventureiros erguiam os punhos, outros suspiravam, como se a vitória finalmente fosse deles. Pela primeira vez desde que tudo começou, senti o sabor amargo e doce da esperança se misturar ao ar pesado do andar. Mas, ao mesmo tempo, uma sensação latejante, incômoda, se instalava em mim… como uma agulha invisível cutucando minha mente. Algo estava errado.

    — Meu Deus… — alguém deixou escapar, com a voz embargada.

    — Assustador… — murmurou outro aventureiro, recuando instintivamente.

    Olhei para Ashley. Ela continuava imóvel, flutuando no ar, encarando um ponto vazio diante de si. Seus olhos não refletiam alívio, nem triunfo: apenas uma fixação sombria, como se enxergasse algo que nós não podíamos ver. Aquilo me deixou inquieta.

    Hernán e Cratos aproveitaram o momento para correr até Sophia e Selene, trazendo-as de volta ao grupo. Vi a preocupação cravar-se nos traços de Hernán quando ele ergueu a voz:

    — Ashley! — chamou, como se quisesse arrancá-la para nós.

    Mas não houve resposta. Ela apenas ajustou o corpo, assumindo uma postura de combate.

    Ao ver essa reação a tensão se espalhou como uma corrente elétrica entre todos nós. Cada músculo meu se enrigeceu. Eu sabia que algo estava prestes a acontecer.

    O chão tremeu. Das rachaduras, a Guardiã ressurgiu como um pesadelo sem fim, completamente restaurada. Suas bocas abriram ao mesmo tempo, cuspindo jatos de água fervente e labaredas rubras contra Ashley.

    — Mas como isso é possível?! — os nós dos meus dedos brancos.

    Ashley reagiu em um piscar de olhos, cortando os ataques com lâminas de fogo que saíam de sua espada. A Guardiã não cedia, desferindo golpes incessantes, tentando esmagá-la com pura brutalidade. Ashley ergueu o braço e materializou diante de si um escudo flamejante, que se expandia e recuava como se respirasse. Sob aquela proteção, avançava pouco a pouco, implacável.

    Aqua, ainda pálida, estreitou os olhos, encarando a cena como se revivesse uma lembrança enterrada.

    — Eu já vi algo parecido… — murmurou, quase para si mesma.

    Quando voltou os olhos para Selene, vi confusão e medo estampados em seu rosto.

    Ashley ergueu a espada de novo e cortou o ar de baixo para cima. Uma coluna de fogo azul nasceu sob o corpo da Guardiã, mas a serpente se moveu antes que pudesse ser atingida. Ela havia aprendido.

    A esperança dos outros começou a vacilar, como chamas pequenas de uma vela em meio ao vento. Eu vi nos rostos — no ranger de dentes, nos punhos cerrados — a frustração se instalar. Toda vez que a esmagávamos, aquela coisa voltava mais forte.

    Ashley, no entanto, não recuou. Repetiu o movimento com a espada, mas, ao mesmo tempo, moveu a outra mão em sentido contrário. A Guardiã, atenta, fixou seus olhos no chão, esperando prever de onde o fogo surgiria. Mas, quando Ashley ergueu a mão, não foi o chão que explodiu em chamas. Foi o teto.

    Uma coluna flamejante abriu as núvens do teto e caiu de cima como um martelo divino, esmagando a Guardiã com violência. O rugido de dor da criatura ecoou pelas paredes.

    Enfurecida, a serpente abriu a boca e cuspiu um jato de fogo ainda maior. Ashley ergueu o escudo e resistiu, mas meus olhos captaram um algo terrível: suas asas azuis se desfaziam em fagulhas. O poder dela estava se consumindo rápido demais.

    — Ela não vai durar… — sussurrei, com o coração apertado. — Sua energia vai acabar logo.

    Ashley lançou esferas flamejantes contra a Guardiã, forçando-a a recuar. Mas, então, ela se virou em nossa direção.

    O que aconteceu a seguir gelou minha espinha.

    A voz que saiu de sua boca não era a dela. Era uma voz imponente, ressoava como algo etéreo, algo que não deveria estar ali.

    — Humanos… — a palavra soou quase como um julgamento. — Essa criatura é mais resistente do que eu acreditava. Sem mais do meu poder, não serei capaz de extinguir sua existência. Mas a criança não vai suportar a minha presença por muito mais tempo.

    — Criança? — Aquilo fez meu estômago se revirar.

    Aquela entidade — seja lá o que fosse — ergueu a espada e apontou na nossa direção. Mais precisamente, apontou para Selene.

    — Arranjem um jeito de despertar aquela preguiçosa.

    Um arrepio percorreu minha pele. Preguiçosa? Despertar Selene? O que diabos está acontecendo aqui?

    Fim do Capítulo 55: A Brasa no Fundo do Mar.

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