Índice de Capítulo

    “Os imperiais tinham uma língua que mantinham para todos os lugares. E, é claro, uma língua que funcionava somente para si. Os generalíssimos, porém, tinham uma própria, que só usavam para os que mais confiavam e não as ensinavam para mais ninguém.

    Filho de seu pai, Elouan nunca ouviu uma letra naquela língua. Neta de seu avô, Hydele quase teria a ouvido antes de Elouan. Então ele pensou, pensou, foi humilhado e pensou. E teve uma maravilhosa ideia.”

    Izandi, a Oniromante


    — Por favor, mestre, eu imploro — choramingou Jenna, de joelhos e quase beijando os pés do corcunda. — Me leve com ela. Minha senhorita é fraca e doente… Pode morrer se eu não estiver por perto…

    — É? — sussurrou o corcunda de cabelos castanhos tacanhos como se nunca tivessem visto água. Ele ergueu o queixo, alternando o olho amarelo-âmbar entre Hyd e mestra Jen. Ele mordeu o lábio, sorriu e continuou: — De repente, essa possibilidade me parece ótima…

    Hyd sentiu um arrepio e agarrou sua própria barriga, abaixando a cabeça. Não conseguia olhar diretamente para a face ferida e encardida do corcunda. Tanto pela ameaça de morte feal e a fealdade contida no rosto tão parecido com o de seu pai, mas também pela febre. Hyd estava em chamas… sua pele parecia vermelha. Durante a viagem, eles pararam em uma caverna — ou ao menos achou que fosse uma —, e o corcunda as arrancou da carruagem então cheia de ratos mortos por Jen. Havia um lago de água cristalina como metal, que refletia a luz que entrava torrencialmente por uma fresta no teto.

    — Vocês fedem! — ele grasnou, como se não percebesse que fedia muito mais do que as duas sujas com o sangue alheio, de ratos e do próprio. Foram obrigadas a se lavar…

    Quando se deram conta, estavam com pontos do seu corpo com uma dormência fraca. Sanguessugas, muitas… Hyd gritou tanto de susto que foi estapeada no rosto várias vezes. As marcas da mão torta e dura do corcunda só não eram mais do que as roxas dos dentes das sanguessugas e as farpas já cicatrizadas nos seus dedos, ou a queimadura negra no punho. E depois disso, viera a febre.

    Hyd não comia nada a dias, e teve seu sangue drenado ao ponto de não conseguir chorar e sentir frio naquela carruagem apertada.

    — Coma a maldita sanguessuga então — resmungou o corcunda, quando implorou. E foi o que fez. A febre só piorou.

    “Mamãe, socorro…”, ela implorou. Não conseguia chorar, e mal conseguia se manter de pé. Mas tinha que ficar. Os garranos pararam, não aguentavam mais andar, e agora havia uma larga e longa rua de paralelepípedos de dezenas de metros, avizinhadas por árvores que nunca tinha visto antes e sumagreiras lilases, se inclinava até um palacete de pedra marrom. “Socorro… mamãe…” Não havia lágrima a descer seus olhões âmbar…

    Há poucas semanas, se alguém tivesse lhe dito que tinha três cores nos olhos, saltaria de alegria por ter notado. Além dela e seu pai, ninguém nunca notara. Seu olho direito era um amarelo-âmbar forte, mas o esquerdo era ligeiramente mais claro, e no canto esquerdo mais a cima, uma minúscula parte tinha o azul turmalina de sua mãe. Era tão pequeno que a própria Hyd às vezes se esquecia. E quem notou a coisa que achava tão bonita…

    — Você vai ficar. Vai ficar aqui. E se eu voltar e tiver lhe visto um átimo de toesa fora do lugar — olhou para Hyd —, enforcarei essa praga maldita na própria pele.

    Sua mestra engoliu em seco e ficou parada, olhando para o chão.

    “Socorro, Bert…”

    Isso não estava certo, não estava. Ela era quase uma Mestre. Sua querida professora, que prometeu ensiná-la sua quinta língua e ensinou a segurar uma espada sem deixá-la cair, estava de joelhos. Ferida, vestida com algo que no máximo era um saco de juta para carregar trigo… “O que será de mim, que mal consigo andar?” Sequer sua bengala ele deixou levar na carruagem. Não havia um único suporte de ferro, como os do castro, para se apoiar…

    Os ventos que lambiam sua pele eram frios como o inverno, o ar era estranhamente saboroso, cheio de vaga-lumes de todas as cores. Mesmo assim, enquanto o corcunda andava tortuosamente, com passos que pareciam mais próximos de um homem prestes a desmaiar e cair, Hyd, se arrastava no chão. Suas mãos flácidas batiam contra os paralelepípedos duros e seus joelhos arrastavam no chão. Muitas vezes quis gemer de dor e parar ali mesmo.

    “Se me espancou só por gritar de dor, o que fará se eu parar?”, pensou uma única vez. Foi o suficiente, teria que ser. Não aguentaria estar certa.

    Seus braços estavam em chamas e respirar era enfiar um galho cheio de espinhos dentro da garganta, e toda vez que olhava para cima, estava tão distante das grades de ferro que desejou sinceras vezes se jogar montanha abaixo. Não o fez. Mexeu o pescoço dolorido várias vezes para afastar o pensamento. Os Deuses não gostavam do suicídio. E se morresse, sua família ficaria triste. Chorariam; sua mãe morreria de dor e sofrimento. “Eu preciso viver.”

    Quando pensou que o inferno não acabaria, ouviu as grades de ferro raspando o chão com um barulho agudo e estridente que quase a fez gritar. Se acalme, disse a voz dentro da sua cabeça. “Eu preciso viver”, disse para si. “Preciso sobreviver”, repetiu. No fundo da mente, no entanto, gritava: “Socorro, Bert, socorro…”

    O corcunda subitamente parou. Hyd congelou, supondo que ele a olhava, porém reparou que ele também estava congelado. Reunindo as forças ofegantes, pôs os olhos na direção que corcunda fitava. Uma carruagem — uma luxuosa carruagem de madeira vermelha e marrom clara como âmbar sob a grama baixa.

    Nas suas portas, bandeiras estavam estendidas e farfalhavam, expondo um brasão com uma coruja agarrando duas espadas. O corcunda estava com os dedos tendo espasmos tão rápidos que os dedos pareciam se misturar.

    O corcunda quase deu meio passo para trás, no entanto, uma fileira de servas com rostos cobertos por máscaras de metal apareceram. Elas tinham uma libré diferente das que as servas de Aavier usava, e só de olhá-la Hyd cerrava os dentes. Uma seda diáfana mal conseguia esconder as curvas e das servas graças aos decotes profundos e fendas, mal unidas não por linha, mas por correntes. As alças eram correntes de ferro amarradas numa gargantilha de metal que cercava todo o pescoço delas, e da própria gargantilha a máscara de metal com espaço somente para a viseira mal as deixava respirar.

    E eram todas esquálidas…

    Elas falaram em uma língua que Hyd não entendia — e conhecia todas as línguas que eram e foram faladas em Wouleviel. Sua mãe fez questão de ensiná-las, mesmo que apenas como soavam as letras. Aquela parecia estranha, como se algo capturasse a voz inteira do falante e a levasse ao centro da boca — ou pensava que talvez fosse somente a febre cansando seus ouvidos. Hyd mal conseguia observar direito coisas muito a frente de tão quente que se sentia, de modo que as servas pouco a pouco começavam a perder seus contornos.

    “Bert, socorro…”

    O corcunda olhou para baixo, cuspiu no chão e olhou para Hyd. Em seguida, falou alguma coisa, e as servas vieram na direção da pequena ruiva que quase convulsionava no solo do amanhecer. Ao seu lado, o sol estava entrecortado por uma centena de montanhas com picos que pareciam sentinelas rochosas. A menina quase fechou os olhos e desmaiou quando as mãos ossudas das mulheres elevaram seu corpo e passaram a andar

    Hyd sentiu sua garganta fechar e abrir e sua pele arder com o contato das mulheres. Fez força, dente contra dente, para ficar ao menos acordada o suficiente para implorar por desculpas — por qualquer coisa que ele quisesse ouvir. As servas não faziam nenhum barulho enquanto andavam, quase como se não tivessem peso — como se fossem vento. E o vento carregava a ruiva para dentro de uma estrutura que fez seus olhos piorarem de febre.

    “É… feito da rocha…?”

    Era uma mansão, e pelo menos disso tinha certeza. No entanto, não era como as que imaginava fora do castro dos Beesh. A primeira vista, imaginou tijolos em tons de marrom sobrepostos e unidos por alguma substância da mesma cor. Todavia, quanto mais se aproximavam, começava a perceber a total falta de contorno entre os tijolos. Porque não existiam tijolos.

    Com uma pequena olhadela cansada, um pedregulho enorme disparava sombras cinzas e negras por cima da mansão… e para dentro. A grama sob os pés das mulheres farfalhava com o toque, libertando vaga-lumes marrons que voavam…

    Vaga-lumes marrons terra, todos. Eles fugiam e retornavam às paredes em padrões concêntricos e tão… organizados. Nunca os tinha visto assim. Na floresta, no castro, no acampamento e até nas chamas que tremulavam ao vento obstruído onde Cei Asseliers dançava aquela música mal cantada, os vaga-lumes sempre estavam dançando à música do nada. Quanto mais os olhava, mais Hyd percebia perder a visão pelo calor.

    E quando fechou os olhos febris, na escuridão dos olhos fechados eles continuaram a dançar.

    Um barulho de raspagem desagradável fez suas orelhas estremecerem. Toda estremecida, as mãos frias das servas só aumentavam o calor e a dor dentro do seu corpinho balançante. “Socorro…”

    Sutilmente, sentiu-se inclinada. A voz rouca e ríspida do corcunda fez eco dentro do lugar, junto de seus passos cansados e a batida do galho que usava como bengala. Ele fedia… e, mesmo assim, Hyd se obrigava a sentir o odor dele. “Preciso ficar acordada”, repetiu. “Preciso sobreviver…”

    Respirar doía. Vez ou outra, sentia o cheiro de lâmpadas de óleo e outras que projetavam uma luz confortável em sua pele, outas vezes, eram olores ervais que desconhecia — tão desagradáveis quanto o fedor do homem que caminhava torta e lentamente à sua frente. Logo ouviu o som desagradável de algo raspando no chão, então ventos quentes cheios de luzinhas vermelhas farfalharam. Esses eram desorganizados, da maneira que sempre viu-os sendo.

    Então, foi uma voz — uma única palavra emitida na língua que não entendia.

    Estremeceu. Comprimiu seus ombrinhos e pernas, cheias de dor e farpas, e tanto ela quanto o corcunda chocaram os dentes repetidas vezes.

    Hyd se forçou a abrir os olhos. Vaga-lumes marrons percorriam do final do corredor e voltavam das escadas de onde havia subido; de uma forma que não entendia, compreendeu que as paredes eram extremamente grossas, e totalmente ausentes de detalhes ou decorações.

    Emitiu um suspiro cansado, olhando para o corcunda parado à frente das portas duplas com maçaneta de ouro. Era de madeira pura, no entanto, nem ela estava exceta da cor de lama mal iluminada pelas lamparinas de óleo.

    A voz ressoou de novo, austera e retumbante — a mesma única palavra. O corcunda suava frio, comprimindo os lábios e o único olho não coberto.

    Em seguida, ele entrou, e as servas levaram Hyd também.

    Um luzeiro de latão refratava e disparava luzes amareladas para todas as direções, refletida pelo piso quase inteiramente coberto por um grande tapete de renda e peles de animais que a ruiva não conhecia, animais cujos pelos estavam emitindo pequenos e fracos vaga-lumes vermelhos, flutuando leves para cima, iluminando fracamente as pessoas sentadas aos longos sofás presos ao chão.

    Uma mulher com vestes de seda e ombros largos, com cabelos ruivos quase loiros despencando sobre o corpo esguio e pálido como marfim, se deliciava com uma fatia de uma fruta com cheiro amargo enquanto limpava a outra mão na própria veste. Estava quase deitada no sofá.

    À sua frente, um rosto austero fitava tanto o corcunda quanto Hyd. Cabelos castanhos quase grisalhos bem cortados para trás tinham uma tiara de ferro reluzindo à cor do fogo e do olho castanho e do amarelo-âmbar, diferente do rosto oval mirrado e cálido. Parecia ter quase sessenta anos pelas rugas e pele flácida, no entanto, sua postura era mais ereta do que uma parede.

    As roupas eram igualmente diferentes do que Hyd estava acostumada. Uma túnica fendida acobertava-o até os pés, com quatro aberturas mostrando sapatos folheados de metal e pernas musculosas, cobertas por uma calça de lã. Dragonas de metal tinham penduricalhos e uma capa amarrada sobre o ombro esquerdo… escondendo um par de espadas longas.

    “Socorro, mamãe…”

    Cheatie, mi ercaniet — ordenou o homem ao corcunda. Num átimo de segundo, ele se ajoelhou e pôs a cabeça contra o chão. Hyd engoliu ar e estremeceu.

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