Ao cair da noite, a cantina estava mergulhada em um comumente silêncio, quebrado apenas pelo rangido das portas e pelo murmúrio distante de alguns poucos soldados dispersos.

    O cheiro da lenha queimada misturava-se ao de gordura requentada, e as lamparinas penduradas lançavam sombras oscilantes sobre as paredes úmidas de suor e fumaça.

    Algum guardião comia como se fosse um homem… mas o homem, parecia cada vez menos humano.

    E falando desse monte de farrapo…

    Cael entrou, respirando fundo, como se cada passo lhe arrancasse um peso do corpo.

    Os ombros tombaram contra a madeira da mesa mais próxima, denunciando um cansaço que não era só físico.

    Encarava, outra vez, mais um dos desafios triviais que para ele sempre tinham gosto de provação.

    O verme.

    — Sério?

    — Você evitou comer pela manhã… — disse o outro, já à mesa, ajeitando o prato e as mãos, pronto para a refeição — Agora precisa de energia.

    Que estava oculto pelo grande verme trazido.

    Dia de sorte? Ou o grande azar? Difícil dizer. O bicho se contorcia no prato, quase duas vezes maior que os anteriores, a carne mole tremendo como gordura de uk obeso.

    Ele suspirou, sentando-se à frente dele, o olhar quase implorando por algo que se assemelhasse a comida de verdade.

    O estômago roncava, mas a alma recusava.

    Levantou-se de supetão, a cadeira arrastando no chão áspero, e inclinou-se sobre a mesa.

    Seus olhos caíram no prato de seu mestre e ali encontrou sua segunda decepção da noite: um monte viscoso, pontilhado por pequenas esferas, semelhantes a ovos de barata prestes a eclodir.

    — Que raios é isso?

    — Ovo de verme — Asael pegou uma daquelas coisas, pequena como um dente, do formato de um grão de arroz. Atirou na boca sem pestanejar, engolindo com prazer — Menos nutriente… mas eu gosto.

    A anomalia arregalou os olhos.

    — E ainda come por prazer?

    Um sorriso enviesado veio como resposta.

    — E você não?

    — Hoje? Aqui? Não!

    — Mas você não disse que comia o pão que o diabo amassou? — ironizou, mastigando mais uma ova que estourava entre os dentes como uma bolha de fel — Ou estava só se vangloriando da sua miséria?

    Isso o fez desviar o olhar, como se buscasse escapar pelo vazio da cantina.

    — Mas a comida lá é… comida…

    O outro inclinou a cabeça.

    — Então isso não é?

    As lamparinas tremularam.

    — Qual é… — Passou os dedos por cima do bicho, recuando em seguida como se tivesse tocado lama viva — Por que tem que ser tão nojento? Vivo?

    — Vivo que ele tem energia suficiente para fazer um guardião ficar de pé! — o mestre respondeu sem abrir espaço para réplica, a mão firme mergulhando no monte viscoso — Sabia que, ao se conectar com a carne, engolindo-a ainda viva, seu corpo aprende a reagir como o dela? Te torna um guerreiro melhor.

    Arqueou a sobrancelha, incrédulo.

    — Como? Você é formado em educação física? Nutricionismo espiritual, talvez?

    — Não! — Ergueu o dedo, como quem dá uma aula — As partículas vivas da meta-carne, feitas de meta-matéria, só repelem energia quando ainda estão em estado vivo. E repelir energia é forçar sua aura a permanecer dentro de você. Seu eco… em êxtase! Isso te fortifica internamente e externamente.

    Piscou devagar, tentando processar, revirando os olhos.

    — Cacete… Então comer vivo é a melhor opção? Que bizarro.

    — Por quê?

    Genuinamente curioso, como se não conseguisse conceber outro ponto de vista.

    — Tem uma galera chata do meu mundo que acha errado até comer morto!

    Gargalhou na hora.

    — Humanos… sempre atrás de problemas que não existem, e deixando os que existem sem solução!

    Cael inclinou-se, cruzando os braços sobre a mesa, encarando-o.

    — Você já foi lá?

    Seus olhos brilharam com um lampejo enigmático, como se aquela pergunta tivesse cutucado mais do que devia.

    — Não! — respondeu firme — Mas… vejo como vocês agem aqui na simulação. E o que desejam, no fundo, é sempre humano… uma vida farta, rotina, pessoas… até o fracasso — fez uma pausa, olhando para o prato como se buscasse palavras dentro dele — Não percebem que viver é buscar estar bem consigo mesmos.

    Suspirou, pela primeira vez sem ironia, a voz quase embargada.

    — É isso…

    O jovem ficou em silêncio, o olhar perdido.

    — É… inegável isso… somos ingratos.

    — Não diria ingratos… mas paranoicos. Sempre em guerra contra fantasmas que vocês mesmos criam.

    Ergueu os olhos de novo, e um sorriso breve lhe escapou.

    Falaria mais ou ouviria…

    Mas Ananit os interrompeu.

    A porta rangeu e ela entrou, o corpo se movendo com uma graça quase ensaiada, embora carregada de certa insolência.

    Aproximou-se e os encarou com um sorriso convencido, como se já fosse dona do espaço.

    — Asael fora do turno?

    — Eu… me retirei por hoje — respondeu, sem sequer mascarar o desdém no olhar, embora soubesse que deveria — Agora que você está no comando, tenho menos fé nas decisões.

    — Cachorrinha do Elyah! — retrucou de imediato, mostrando a língua num gesto infantil, mas carregado de veneno. Sentou-se ao lado dele com a confiança de quem se sabe intocável — Sorte sua que não é com você… mas com a anomalia aqui na minha frente…

    Ele sentiu o peso daquelas palavras o esmagando como uma espinha.

    — Fale…

    Firme, mas o timbre de sua própria voz lhe pareceu estranho, atraente de uma forma que não era comum.

    Ananit se inclinou levemente, os olhos faiscando entre zombaria e desejo de provocar.

    Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, como se estivesse à beira de um abismo.

    — N… a… d… a! — Sussurrou, saboreando cada letra, antes de soltar uma risadinha debochada.

    — Sério?

    O guardião não levantou o olhar, focado em terminar sua alimentação, os dentes triturando as ovas viscosas como se não fossem nada.

    — Sério… — respondeu afinal, jogando o corpo para trás, os pés subindo à mesa num gesto desrespeitoso. Cruzou os braços — Eu só… queria encher o saco!

    As lamparinas vacilaram com a corrente de ar que passou pela porta.

    — Isso aqui… — continuou, quase cuspindo as palavras — é péssimo, meninos…

    — O que fez de tão péssimo?

    A guardiã deixou a cabeça pender para o lado, como quem pesa as próprias palavras, mas logo riu sozinha, um riso oco.

    — Nada! Hehe… — suspirou, arrastando a última sílaba com um tédio impossível de um café desvincular — E isso… é um completo saco!

    Encostou a nuca no encosto da cadeira, olhando o teto, como se o vazio acima fosse mais interessante que qualquer conversa.

    — Caramba… até os guardiões têm frustrações… — murmurou, com um sorriso curto, sem saber se ria ou se lamentava.

    A anomalia já havia visto de tudo.

    Mas presenciar um guardião, ser forjado para a guerra, para a força inabalável, confessando seu próprio tédio e fraqueza… isso era novo.

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