Lyra se olhava no espelho do dormitório. Inspirou fundo, encostou o dedo na ponta do nariz e o empurrou para cima. A princípio, houve resistência, como se a carne fosse real demais para permitir. Então a estrutura inteira cedeu com um estalo suave, como massa moldável, subindo de forma grotesca e expondo as narinas. O reflexo devolveu-lhe um rosto deformado, quase cômico, quase assustador.
     

    — Incrível — debochou Kara, rindo. — Conseguiu ficar ainda mais feia.
     

    — Não é verdade — rebateu Russel, sem pensar. — Só está… estranha.
     

    Kara, que estava com a cabeça deitada no colo dele, ergueu a mão e lhe deu um tapa no braço.
     

    — Ora seu…
     

    A gargalhada do grupo quebrou a tensão, fazendo Lyra relaxar um pouco.
     

    — É muito estranho, Lyra — disse Tyla, observando com olhos semicerrados. — Mudar de aparência assim, como se fosse… de barro.
     

    — É parte das habilidades compartilhadas do Kocka. — Lyra aproximou-se mais do espelho, inclinando o rosto para examinar o novo nariz esquisito, cujas bordas não tinham o contorno natural de ossos, mas a textura de argila maleável. — Segundo as informações que recebi dele, com treino posso mudar de aparência apenas com o pensamento. Mas a textura da pele sempre fica estranha.
     

    Imara levantou a mão e estalou os dedos. Garras longas e cortantes surgiram de imediato, rasgando o ar com um som fino. Fez uma careta dramática.
     

    — O Garral só me dá garras e raiva de tudo — disse, com uma ironia mal contida.
     

    Tyla grunhiu, e pequenas escamas azuladas se espalharam pelo braço dela como placas se encaixando. A pele cintilava sob a luz artificial.
     

    — O meu Canired compartilha suas defesas — disse com simplicidade.
     

    — Querem ver outra coisa legal? — Lyra perguntou, balançando a cabeça até que o nariz derretido voltasse ao normal.
     

    Todos se viraram para ela, curiosos.
     

    Lyra engoliu em seco, deixou o som vibrar na garganta. Quando falou, a voz que saiu era grave, autoritária, a voz de Calder.
     

    — Atenção. Quero vocês prontos em meio minuto.
     

    O verdadeiro Calder piscou, incrédulo.
     

    — Ei, eu não falo assim não.
     

    O grupo se voltou contra ele com olhares recriminadores. A imitação de Lyra, mesmo sem os maneirismos do rapaz, era perfeita demais.
     

    — É isso que o Kocka faz. — Ela explicou, divertida. — Imita. Voz e aparência das coisas. Se eu o treinar bem, ele pode assumir formas até de objetos inanimados. Mas não a cor. E a consistência sempre é a mesma, como… argila úmida.
     

    — E a defesa que ele mostrou? — perguntou Branth, animado. — Aquela forma amorfa que absorveu o impacto… achei demais.
     

    Lyra balançou a cabeça.
     

    — Isso não estava nas informações que recebi da mente dele. Parece ser algo instintivo dele. Mas teoricamente, se eu treinar bastante, talvez consiga replicar isso no meu corpo.
     

    — Isso é bem interessante — comentou Russel, coçando a nuca. — O piu-piu não parece ser tão inútil assim…
     

    — Ei! — Calder ergueu o dedo, indignado. — Nada de preconceito contra pássaros. Ele próprio tinha um Falcoar
     

    — Ah, claro. — Kara fez um gesto exagerado de reverência. — Perdoe-nos, grande senhor dos céus.
     

    Calder revirou os olhos, mas um sorriso lhe escapou.
     

    Lyra levantou o punho. O tablet vibrava contra sua pele. O alarme. A hora marcada com Aedena.
     

    — Já sei — disse Kara, bufando. — Suas aulas secretas. Nem durante a folga do luto ela te dá sossego?
     

    — Ela está me ajudando… — tentou se justificar.
     

    — E por que só você? — provocou Kara. — Também quero aulas particulares.

    — Bem… é complicado… não posso falar sobre isso.
     

    Antes que Lyra se enroscasse em desculpas, Tyla interveio.
     

    — Vá logo. Não se atrase.
     

    A expressão de Lyra se suavizou. Virou-se para a amiga, murmurando apenas com os lábios: “Obrigada”. Então saiu.
     

    O silêncio ficou no quarto. Kara olhou para Tyla, depois para Russel, que ainda tinha a mão sobre a marca vermelha do tapa.
     

    — Você tem que aprender com a Tyla…
     

    — O quê? — ele perguntou, sem entender.
     

    — A proteger sua garota.
     



     

    Bem longe dali, em Tactur-2, Vida, nua, recém-saída do banho, olhava-se no espelho do quarto do hotel. A pele ainda soltava vapor. O espelho embaçado, coberto de gotículas.
     

    — Hahahaha… — uma risada ecoou em sua mente, abafada, como se viesse das paredes da sua própria cabeça.
     

    — Droga… — murmurou, a voz falhando, desde que despertara do desmaio, sentia-se estranha. Apanhou dois comprimidos, esmagou-os entre os dentes e engoliu o pó seco, sentindo a garganta repuxar.
     

    Com a palma ainda úmida, limpou o vidro embaçado. Os olhos verdes surgiram do outro lado, intensos, nervosos. Abaixo de um deles, um corte fino, onde estilhaços da máscara haviam atingido sua pele. Outro, maior, acima da sobrancelha, quase na raiz do nariz. A carne já inchava.
     

    — Já está ficando roxo… — constatou, num tom quase indiferente, tocando o lugar com os dedos.
     

    Enrolou a toalha nos longos cabelos ruivos. Aquilo era uma vaidade que se permitia; muitas de suas irmãs raspavam a cabeça sem pestanejar. Quando desviou os olhos do reflexo, estacou. O espelho lhe devolvia outra imagem: os olhos não eram verdes, mas castanhos, endurecidos por rugas finas. Olhos de uma mulher mais velha.
     

    Piscou forte. O reflexo voltou ao normal.
     

    “Espero que esses antipsicóticos façam efeito logo. Está piorando.”
     

    Aether lhes dava poder, mas viciava, causava problemas psiquiátricos, em altas quantidades, em uma alta exposição. Vida imaginava ser nova demais para isso.

    As Matriarcas viviam mergulhadas em atmosferas com um pouco de gás de aether. Suas armaduras regulavam a exposição, mantendo o ar dentro, saturado, mas sempre havia um preço a se pagar. O corpo exibia os sinais.
     

    Vida baixou os olhos: os dedos terminavam em pontas negras, brilhantes como ônix polido. Veios escuros corriam dos antebraços até as mãos. Um contraste com sua pele pálida. Algumas tinha veios prateados, outras dourados. Os dela eram escuros. Ela gostava.
     

    Seu corpo era um mapa de cicatrizes. Algumas frescas, outras antigas, todas deixadas por treinos brutais ou batalhas. Virou-se, observando as costas. Um hematoma imenso enegrecia a pele, não se lembrava da pancada que a lançara contra a parede. Já estava inconsciente. O hematoma parecia se firmar conforme ela olhava. Estava bem dolorido.
     

    As palavras de Alina voltaram com força.
     

    — O que você fez? Como conseguiu?
     

    Vida não soubera responder. Quando sua superiora descreveu o instante em que a espada fora recoberta por energia psíquica, ela quase acreditou que era um delírio da sua irmã mais experiente, fruto da dor ou desespero. Era irreal demais.
     

    — Eu não tenho ideia do que você está falando… — dissera no momento, sincera. — Só lembro de pensar que precisava impedir que ele matasse você ou Raphael. Saltei sobre o robô para impedir, quando ele me acertou no rosto, apaguei. Foi instantâneo.
     

    E isso era a verdade. A lembrança dos acontecimentos desaparecia no instante do impacto. Mas do jeito que Alina contara… era como se outra entidade tivesse puxado seus fios, manipulando seu corpo com uma eficiência terrível.
     

    Lembrar da espada trouxe-lhe uma sensação estranha. Um calor no peito, um sentimento de acalanto que lhe arrancou um sorriso involuntário. Amava aquela lâmina? Sim, mas o sentimento parecia emprestado, enfiado em sua carne por mãos alheias. Aquilo lhe dava o que pensar.
     

    Era efeito do aether? Por via das dúvidas, estava tomando os remédios receitados pelo Matriacharum para esses casos.
     

    Levantou os olhos outra vez. O espelho refletia seu corpo, mas os olhos não acompanharam seus movimentos. Estavam fixos nela, atentos, como se outra presença a encarasse do outro lado.
     

    Sentiu um frio na barriga.
     

    O vapor escorria em linhas sinuosas, formando a sugestão de um sorriso em seu próprio rosto.
     

    A risada voltou, parecia mais nítida desta vez, vibrando dentro dela.
     

    — Hahahahaha…
     

    Vida recuou um passo. O coração em disparada.
     

    O banheiro estava silencioso. Mas, por um breve instante, Vida teve a sensação de que não estava sozinha dentro de si mesma.
     



    Bem perto do coração de todo o Império, Rin se levantou e esticou as costas. Tinha permanecido sentado por quase doze horas. As lições eram intensivas, conduzidas pelos sacerdotes que o preparavam para o inevitável mergulho nos Poços da Lua.
     

    — Está cansado, jovem? — perguntou um de seus mestres. Era Higgs, o primeiro oráculo verdadeiro que Rin conhecera. O olhar do rapaz sempre acabava preso na faixa ornamentada que cobria as órbitas vazias daquele homem.
     

    — Estou sim — confessou Rin, massageando o próprio quadril dolorido. — Meu corpo ficou de cama por muito tempo. A musculatura não suporta esse esforço… são horas e horas.
     

    Higgs riu suavemente. Sua cabeça acompanhava os movimentos de Rin pela sala, com uma precisão que era perturbadora em alguém cego.
     

    — Repita para mim o princípio da devoção.
     

    Rin hesitou.
     

    — Vamos… — insistiu Higgs, firme mas não severo.
     

    — “Eu sou o eco de Seus sonhos; minha vida é o preço de Sua vigília eterna.”
     

    — Muito bem. Agora, o credo.
     

    Rin respirou fundo e recitou, com a voz baixa mas firme:
     

    — “Ó Demiurgo Imperador, que abdicastes da carne para tecer o Véu da Realidade: Nós, Teus servos, juramos vigília eterna contra as sombras que cobiçam nossa essência. Pelo aether, elevamo-nos; pelos Sonhos, guiamo-nos; pela Igreja, unimo-nos; pela guerra, defendemo-nos. Que o sofrimento seja nossa forja, e a devoção, nossa armadura. Selai-nos do caos, e nós selaremos a galáxia em Teu nome.”
     

    O oráculo inclinou a cabeça.
     

    — Agora diga: por que apenas os oráculos conhecem a verdade sobre os mistérios do universo?
     

    — Porque somos os únicos preparados para vislumbrar a verdade lá fora sem quebrar…
     

    Higgs ergueu a sobrancelha sob a faixa.
     

    — Somos?
     

    — Perdão — corrigiu Rin, apressado. — Eu não sou um oráculo ainda…
     

    — Nem sequer pisou nos Poços, criança. Não foi purificado, não foi apresentado à vontade do Demiurgo. Muito menos encarou o que se esconde além do Véu. Sequer fez a travessia. Eu não quero que você quebre. Faz muito tempo que não nasce um novo oráculo.
     

    Higgs se levantou, aproximou-se e tocou as costas do rapaz com uma palmadinha. O gesto era leve, mas carregado de um peso ritual.
     

    — Desculpe ser tão duro. É preciso — disse, agora com ternura na voz. — Vá descansar um pouco nos jardins. Você merece. Tem uma cabeça boa para guardar as palavras. Se continuar assim, até o fim da semana será levado à purificação.
     

    Rin engoliu em seco.
     

    — Vou perder meus olhos, não é?
     

    — Não é tão ruim quanto imagina — respondeu Higgs, quase com humor. — Enxergo muito melhor agora. O ruim mesmo é a dor da provação. Mas lembre-se: estamos aqui por vontade Dele.
     

    O homem apertou o ombro do jovem, e Rin suspirou fundo, resignado.
     

    — Bem… vou até os jardins. Preciso respirar um pouco antes de continuar.
     

    — Faça isso. Estarei esperando para seguirmos.
     

    Quando saiu, Rin lançou um último olhar por cima do ombro. Higgs, imóvel, continuava a acompanhá-lo como se ainda enxergasse cada passo.
     

    No corredor, já distante, Rin jurou ter ouvido o oráculo murmurando sozinho:
     

    — Sim, ele estará pronto antes do esperado…

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