Capítulo 42 - "Uma Fagulha"
Narrado por Thamir
O quarto estava cheio demais para o gosto de qualquer um que realmente precisasse descansar. Ian parecia morto não literalmente, embora pelo jeito como ele estava apagado, seria difícil notar a diferença. Deitado, peito subindo e descendo de forma lenta, braços pesados ao lado do corpo, suor frio na testa. Eu já tinha visto ele em piores, mas nunca deixava de causar aquele aperto esquisito.
Ao lado da cama, uma maga de cura passava as mãos sobre ele, os dedos brilhando num tom verde suave, como se pintasse o ar com pinceladas de calma.
Ela terminou, recolheu o brilho nas palmas e pigarreou.
— Não há ferimentos internos graves. O corpo está exausto e a mana em desequilíbrio, mas com repouso ele deve se recuperar.
Traduzindo: Ian estava todo arrebentado, mas ainda respirava. Nada novo.
— Obrigada. — Lysvallis respondeu, firme, sem olhar para mim ou Kael. Ela dispensou a maga com um gesto breve, e a mulher saiu quase correndo, como se tivesse medo de respirar fundo demais na presença da Rainha.
Assim que a porta fechou, o ar no quarto mudou. Eu podia sentir antes mesmo de ouvir a voz de Lys: pesada, firme, daquele tipo que só uma rainha acostumada a dar ordens poderia ter.
— Você ultrapassou o limite. — disse ela, encarando Kael.
Kael, como sempre, estava com aquele ar de calma desconfortável, como se já tivesse previsto a bronca e só esperasse o momento de responder.
— Ele precisava. — retrucou, simplesmente.
Eu já cocei a barba, me ajeitando melhor na cadeira. Ah, aquilo ia render.
— Precisava? — Lys arqueou as sobrancelhas. — De quase destruir a arena? De lançar um pulso de mana que fez metade da cidade acreditar que estávamos sob ataque?
— Precisava de controle. — Kael rebateu, sem alterar o tom. — E não há controle sem risco.
Lys deu um passo à frente. O vestido escuro arrastou levemente no chão de pedra, mas o som foi engolido pelo peso da voz dela.
— Controle não significa imprudência, no dia que você chegou aqui eu fui bastante clara sobre não treinar dentro de Altheria. Se ele tivesse perdido completamente…
— Eu estava ali. — Kael interrompeu, firme, mas não desrespeitoso. — Naira também. E Thamir, e você mesma viu só ele ja era mais do que capaz de para Ian, ele só tem cara de maluco.
— Ei! — levantei a mão. — Não sei se isso foi elogio ou insulto, mas vou deixar passar porque a fofoca ta boa. Continuem.
Ninguém riu. Eu suspirei, publico difícil…
Lys voltou a encarar Kael, os olhos dela como duas lâminas afiadas.
— E se Thamir não tivesse conseguido pará-lo? Se Ian tivesse matado alguém ali dentro?
Eu até ia comentar que, na pior das hipóteses, só eu teria morrido, mas percebi que ela não estava com humor para piadas.
Kael cruzou os braços.
— Se. Mas ele conseguiu.
Silêncio. Eu podia ouvir o vento lá fora assobiando pelas frestas da janela.
Foi então que Kael abaixou um pouco o tom, mais calculado:
— Rainha, você sabe tão bem quanto eu. Ian não vai conseguir enfrentar o que está vindo se não puder usar as duas linhagens. E nós não temos tempo.
Lys não respondeu de imediato. Ela respirou fundo, fechou os olhos por um segundo. Quando abriu, não havia mais raiva.
— Então vamos falar de tempo. — Ela puxou uma cadeira e se sentou, ajeitando o manto azul sobre os ombros. — A caravana parte em dois dias. Não podemos nos dar ao luxo de improvisar quando chegarmos a Cervalhion.
Kael relaxou os ombros, mas só um pouco.
— Concordo. É por isso que precisamos decidir a rota.
Ah, ótimo. O momento em que os políticos decidem por onde vamos andar, como se estrada fosse só questão de conveniência. Eu cruzei as pernas, pronto para ouvir.
— A rota principal é a mais curta. — Lys começou, objetiva. — Mas também a mais perigosa. Há relatos de bestas surgindo nos trechos abertos. O caminho alternativo pelo sul é mais longo, porém mais seguro.
— Seguro e lento. — Kael rebateu. — Demoraríamos semanas a mais.
Ela inclinou a cabeça, olhos semicerrados. — Você tem outra proposta?
Kael apoiou as mãos no encosto da cadeira à frente, inclinando-se.
— A rota agrícola. — disse, simples.
Eu ergui as sobrancelhas. Ah, lá vinha.
— Passaríamos por três grandes vilas agrícolas antes de chegar à capital. — Kael explicou. — Lugares que têm sofrido com ataques constantes.
— Vilas. — Lys repetiu, como se mastigasse a palavra. — Você quer arrastar a comitiva real por povoados de fazendeiros?
— Quero arrastar a comitiva real por onde podemos causar impacto. — Kael corrigiu. — Imagine: não só chegamos em Cervalhion, como chegamos após ter ajudado todo o caminho até lá.
Eu observei Lys nesse momento. Ela até tentou manter o olhar crítico, mas eu vi. Vi o brilho nos olhos dela quando entendeu a jogada.
— Apoio popular. — murmurou. — Ganhamos não apenas na capital, mas no coração do reino.
— Exato. — Kael assentiu. — Quando chegarmos, não seremos apenas visitantes. Seremos os que protegeram as plantações, os que mantiveram o pão na mesa do povo. Isso vale mais do que qualquer discurso.
Silêncio novamente. Mas dessa vez era o tipo de silêncio que cheira a estratégia em formação. Lys não era burra. Muito pelo contrário. Ela só precisava de um empurrão para lembrar que política e guerra são duas faces da mesma moeda.
Ela descruzou as pernas devagar.
— É arriscado.
— É necessário. — Kael devolveu.
Eu bocejei alto. — Muito bonito, muito inspirador, mas alguém aqui vai perguntar a opinião do coitado que vai ter que andar nessa rota também?
Lys virou o rosto para mim, exasperada.
— Ian precisa descansar.
— E eu preciso de uma bebida, mas nem sempre conseguimos o que queremos. — levantei da cadeira, esticando os braços. — Vou acordar ele.
— Não! — Lys quase se levantou também. — Ele precisa se recuperar.
Eu ergui as mãos em rendição. — Certo, certo… nada de acordar o paciente.
Dei um passo para perto da cama, com meu melhor olhar de santo.
— Só vou ajeitar ele aqui. Coitado, tá todo torto. Vai acordar com torcicolo. Rainha, me ajuda a segurar a cabeça dele enquanto arrumo os pés?
Ela hesitou. Mas afinal de contas, era a rainha. Não sabia como dizer “não” sem parecer mesquinha.
Kael me olhou de lado. Eu o encarei de volta. Conversamos em silêncio, só no olhar. Ele sabia que eu estava aprontando. Eu sabia que ele sabia. E ele… decidiu deixar.
— Se deixar ele tentar Sozinho é capaz dele parar no chão como da ultima vez.. — Kael falou, desviando a atenção da
Ela piscou, confusa, mas se posicionou para ajudar. Boa distração.
Lys suspirou e se inclinou para segurar Ian pela nuca. Eu já sentia a pontinha da energia percorrendo meus dedos. Só mais alguns segundos.
Lys ajeitou a mão na nuca de Ian com cuidado, como quem toca um vaso de cristal. Eu me contive para não rir. Ian não era um vaso era mais para uma marreta largada num canto, pesada. Mas ver a Rainha tão próxima dele já me dizia mais do que qualquer discurso.
Era a deixa.
Deixei a faísca escorrer pelos dedos, discreta como um sussurro. A corrente elétrica subiu a perna dele, rápida e certeira.
O resultado foi imediato.
Ian arqueou o corpo como se tivesse levado um soco nos pulmões. Os olhos abriram de repente, um brilho gélido nos reflexos azulados, e ele se ergueu num pulo. A distância entre ele e Lys evaporou. Em questão de segundos, os dois estavam frente a frente, os rostos a poucos centímetros.
O tempo parou.
Eu juro que ouvi o coração da Rainha acelerar. Ela ficou rígida, surpresa demais até para recuar. O olhar dela, firme em tudo, vacilou por um instante. E então, por um milésimo de segundo, as bochechas dela ganharam cor.
Cor.
A Rainha de Altheria, Lysvallis, conhecida por sua calma e frieza política, corou como uma garota pega desprevenida.
Claro que ela recobrou a postura quase no mesmo instante. Recuou dois passos, ajeitou o manto como se nada tivesse acontecido e pigarreou. Mas eu tinha visto. Kael também.
Ian, por outro lado, ainda piscava, confuso, sem entender nada.
— O que…? Onde…?
Ele olhou ao redor, o corpo instintivamente pronto para luta, até que percebeu que estava num quarto e não numa arena.
— Você está seguro. — Lys disse, com a voz mais firme do que talvez sentisse. — É bom vê-lo… bem.
Ela quase disse outra coisa, eu percebi. Mas cortou a frase no meio, como quem fecha a porta antes que alguém olhe por dentro.
— Ei, calma, irmão. — falei, tentando não deixar a risada escapar. — Só uma sessãozinha de choque. Diagnóstico rápido. Tudo em ordem.
Ian virou o rosto devagar para mim, aquele olhar gelado que já congelou monstros maiores do que eu.
— Thamir.
— Oi.
— Eu vou te matar.
— Já ouvi isso antes. — Cruzei os braços. — Continua tentando.
Antes que ele pudesse insistir, Lys se virou e caminhou em direção à porta. O passo dela estava mais rápido do que o normal, quase apressado. A pressa de quem precisa fugir de algo que não pode deixar que vejam.
Kael e eu trocamos um olhar. Ele ergueu a sobrancelha. Eu sorri de canto, como quem diz “te disse”.
A porta se fechou atrás dela.
Ian suspirou, exausto de novo, caindo de volta na cama.
— Alguém vai me explicar por que parece que perdi metade da história?
Eu abri a boca para falar, mas Kael ergueu a mão, rindo baixo.
— Mais tarde. Você precisa de descanso.
Ian resmungou alguma coisa, mas não insistiu. Em minutos, estava de novo apagado.
O silêncio voltou ao quarto, mas dessa vez não era pesado. Era o silêncio de quem carrega uma piada não contada.
Eu encarei Kael. Ele me encarou de volta.
— Viu? — falei, baixo, só para ele. — Eu estava certo.
O sorriso dele foi lento, quase divertido.
— Desgraçado, quando você percebeu?
— Hoje. — respondi, me recostando na cadeira, satisfeito.
Com Ian dormindo e Lys desaparecida em sua pressa, o ambiente relaxou. Kael quebrou o silencio enquanto olhava pra Ian.
— Quem diria a rainha está gostando do nosso termômetro negativo…
Eu mordi a língua para não rir alto.
— Sabe que isso pode dar problema. — disse ele, baixo.
— Sei. — respondi, dando de ombros. — Mas precisava confirmar.
Ele estreitou os olhos. — Confirmar o quê?
Inclinei a cabeça, olhando para Ian adormecido.
— Que nosso irmão aqui não é o único problema que vai ter de lidar.
Kael não respondeu de imediato. Ficou apenas ali, em pé, com aquele jeito de quem pesa cada palavra antes de falar. Por fim, suspirou.
— Se estiver certo… as coisas vão ficar interessantes.
Sorri. — Quando é que não ficam?
O resto da noite seguiu sem grandes explosões, o que para nós já contava como milagre. Ian dormia, Kael parecia ocupado em fingir que não estava tramando nada enquanto pensava em tudo.
Mas eu, sentado ali, observando aquele quarto, sabia. Sabia que a faísca tinha acendido.
E quando a faísca acende… cedo ou tarde, aparece uma chama.

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