De frente para as portas da pousada, Yurgen encara de soslaio o rapaz mais ao lado. Impondo cada um o palmo para empurrar sua respectiva porta, aos poucos o interior é visto.

    Logo atrás dos dois rapazes, Jeanice encara apreensiva e receosa sobre tudo o que está acontecendo nesse lugar. O mistério das horas que passaram voando, a restauração e a paz na cidade…

    Contudo, essa desconfiança se apaziguou quando na parede à frente, o símbolo do Grande Sol se revela atrás do balcão da recepção.

    一 Bem-vindos! Chegaram no lugar certo para se protegerem da Noite.

    Por trás do cômodo de madeira, uma mulher com uma feição coberta por um véu prateado fosco e roupas de empregada os espera. O local se demonstra bem cuidado, desde o tapete marrom abaixo, os pisos claros bem limpos e as paredes brancas em sua totalidade.

    一 Desde que chegamos, ouvimos os civis falando para aproveitar o dia e fugir da “Noite… O que quer dizer com isso?

    Enquanto os quatro se aproximam da mulher, Carmen aos poucos “recobra” as forças conforme o homem questiona. Porém, os olhos cinzentos do velho deslizam buscando alguma janela, mas não há nenhuma.

    As portas abertas se fecham lentamente…

    Raisel encara o símbolo do Grande Sol com desconfiança. Observando-o, nota que o dourado metálico se torna mais opaco e escuro, como se estivesse sendo manchado.

    一 Olhem o Grande Sol!

    Ao chamar a atenção de todos, os olhares caem para a figura misteriosa. Contudo, a balconista sequer se vira. Pelo contrário, os lábios dela deixam escapar um breve riso…

    一 Como o Sacerdote nos indicou, vocês são forasteiros… Corajosos o suficiente para invadirem a cidade mesmo com o cerco nos impedindo de sair.

    As sobrancelhas grisalhas se franzem não gostando do que acabou de ouvir. O brilho prateado recobre a íris de Yurgen e, ao inspecionar a energia da atendente, visualiza algo que arregala os seus olhos…

    一 A sua energia…

    Pondo a mão no próprio centro do peitoral, a mulher velada sorri.

    一 O “Inferno da Noite” amaldiçoa cada cidadão de Kromslaing desde que o incidente do Castelo aconteceu. Mas ainda temos consciência e sanidade graças à Imoriel. Ele quem nos concedeu o Grande Sol e o “dia”…

    一 Toda corrupção de Trevas, até mesmo aqueles que o Geloscht tomou conta, podem viver normalmente enquanto o sol brilhar. Mas à medida que ele se põe, toda proteção se dissipa, com exceção de locais como esse.

    Sob a perspectiva de Yurgen, o que ela diz faz total sentido. O aprendiz também cintila o dourado sobre os olhos e vê com clareza o que o mestre está observando.

    É como um olho de furacão. O breu está todo contido no torso enquanto uma energia pura e áurea percorre por todo o corpo dela.

    一 E-E o que a-acontece caso sairmos durante a “Noite”?

    Os punhos pálidos estão recolhidos na altura do queixo. As unhas escuras e alongadas pressionam os palmos, quase os perfurando de tanta ansiedade.

    Mesmo encapuzada, a feição de Jeanice é de espanto. Diferente dos três, ela vivenciou o fatídico acontecimento que engoliu a cidade. Entretanto, o fato de ter fugido de casa e dos seus familiares, inesperadamente, a salvou…

    一 Os Bealerins e outros Geloscht irão caçá-los. Nos pior dos casos, poderão morrer ou serão “apagados” como eles.

    Pelas laterais da cabeça, é notável as orelhas pontiagudas se abaixando mesmo cobertas pelo capuz.

    一 Precisamos de um quarto.

    Convicto, o velho se aproxima da balconista. As palavras dela eram convincentes e o que viu faz total sentido com a situação atual.

    Ao lado, o garoto engole seco. Não por duvidar do mestre, mas por saber que iriam sair. Afinal, o objetivo é ir para o Castelo para encontrar pistas sobre o ritual dos nobres capaz de convocar a Calamidade da Moral.

    一 Ótima escolha! Por favor, subam as escadas… Cada quarto tem seu próprio símbolo do Grande Sol. Por ele, poderão saber quanto falta para a “Noite” acabar e também ele revigorará as suas forças.

    Introduzindo uma breve reverência, a atendente abaixa as mãos para a altura do quadril à frente do corpo.

    一 Tenham um bom descanso. Qualquer dúvida, estarei aqui.

    A cabeça do homem barbado se inclina levemente para ela, mas rapidamente passa a ir em direção às escadas mais ao lado.

    Diferente do avô, o rapaz desliza o olhar para trás e visualiza a meio-elfa completamente paralisada.

    Em curtos passos, se põe à frente da garota. Pela diferença de estatura, o palmo dele sobe até os ombros dela e o rosto levanta brevemente para olhá-la nos olhos.

    一 Não precisa se preocupar. Esse lugar é seguro, já que o vovô decidiu ficar aqui por um tempo.

    Com os lábios trêmulos, pequenos suspiros se esvaem da boca dela. Mas ela finalmente reúne fôlego e forças para levantar o olhar.

    一 N-Não é isso… Eu c-confio em vocês, mas não consigo deixar de f-ficar assustada quando penso em ir lá fora…

    一 Eu q-queria acompanhar vocês até o castelo…

    O rosto dela expõe as suas frustrações genuinamente. Mesmo após sofrer tanto, as olheiras sob os olhos não refletem o brilho puro azulado que escapa de suas intenções.

    Os cantos dos lábios de Raisel se curvam.

    一 Relaxa. Se você se sentir melhor, pode esperar a gente aqui. Vamos passar para te buscar no fim de tudo.

    Em silêncio, ela ouve aquelas palavras. Poucos instantes depois, a cabeça se move lentamente de cima para baixo.

    Dando meia-volta, o menino se direciona para as escadas e Jeanice o segue.

    No segundo andar, há apenas quatro quartos separados por uma junção de dois corredores que formam uma cruz.

    A pousada está completamente silenciosa, mas o barulho de uma porta se abrindo à direita demonstra para onde o mentor e a açougueira foram.

    O padrão claro e o tapete marrom permanecem, mas as lâmpadas de borboletas sobre as paredes transmitem uma sensação aconchegante como uma brasa de uma fogueira.

    O quarto é pequeno, simples e aconchegante com duas camas de solteiro, uma mesa com uma cadeira, o símbolo do Grande Sol já completamente escuro em uma das paredes e um armário grande.

    O velho se aproxima de uma das camas e coloca Carmen sentada com as costas sobre a cabeceira.

    Nesse momento, é notável o Gewissen avermelhado se unindo com um brilho dourado que flui do símbolo protetivo até ela.

    一 Ela deve melhorar logo. O trauma que ela tem por fantasmas não sumiu mesmo após todos esses anos…

    O palmo de Yurgen cobre toda a sua feição.

    一 Assim que ela se levantar, iremos ir para o Castelo.

    Raisel caminha até a cadeira e se senta.

    一 A Jeanice decidiu nos esperar. Ela pode?

    Os olhos cinzentos fixos sobre o neto, vão até a meio-elfa.

    Envergonhada, o capuz dela se abaixou agora que estão livre dos olhos de terceiros. Os lábios espremidos e as sobrancelhas quase se unindo, expõe inocentemente a agonia dela pela sua fraqueza.

    一 Seria importante ela ir com a gente até os aposentos dos Asdoth, mas é melhor que ela fique aqui mesmo.

    Um suspiro de alívio saí dos lábios do mentor. Os olhos piscam com alguma demora e passam a encarar a ruiva em recuperação.

    一 Para Balmund ter feito o cerco sobre a cidade, há no mínimo dezenas de servos dos Bealerins. No pior dos casos, um Duque.

    O garoto escora as costas contra a cadeira e cruza os braços. Encarando o teto esbranquiçado e a borboleta dentro da lâmpada, ele não entende direito o que está acontecendo com a cidade.

    一 De início, a gente achava que foram os Pagãos que sabotaram a cidade. Mas agora são esses Bealerins? Eu até entendi que Imoriel concedeu o “Grande Sol” pra proteger os cidadãos, já que Kromslaing cultuava ele…

    Coçando a cabeça, os dedos espalham a cabeleira escorrida.

    Uma das sobrancelhas grisalhas se contraí enquanto a outra sobe.

    Observando o garoto, não acredita que ele não se lembra do que foi ensinado na infância. Como professor, o velho se sente desapontado…

    一 Mas os Bealerins são Pagãos. Acontece que cada Pagão segue uma Estrela Negra diferente. Esses estão sob a influência de Berith, a Vigésima Oitava.

    一 Aaaah!

    Um suor escorre na lateral da bochecha do menino. Finalmente fazia algum sentido toda essa história.

    一 E o que ter um “Duque” quer dizer?

    一 Quanto mais leal você é a uma Estrela Negra, maior é a sua hierarquia demoníaca. Duques são tão fortes quanto um Cavaleiro de Elite. Um com uma Estrela de Quatro Pontas.

    Enquanto os dois conversam, Jeanice senta no canto do cômodo e se encolhe apertando a pelúcia.

    “Quanto menos Pontas o símbolo de Estrela no peito de um Cavaleiro de Balmund tem, mais poderoso ele é… Oito Pontas são os novatos e a Estrela Circular representa o General de todo o exército…”

    O silêncio paira sobre o lugar.

    Alguns minutos se passaram desde que entraram ali.

    O velho medita sentado na outra cama, Raisel ainda acomodado na cadeira, encara o símbolo do Grande Sol e Jeanice adormece encolhida.

    一 Que descansinho bom…

    A silhueta da mulher acamada se movimenta, a voz dela se alastra como um estopim para a atenção de todos, com exceção da meio-elfa que permanece no seu cochilo.

    Sentada sobre a beirada, a ruiva se espreguiça e vê os rapazes a encarando.

    一 Você… tava acordada desde quando?

    À partir da voz desconfiada do menino, os olhares de julgamento dos rapazes caem sobre ela.

    一 Desde que… entramos.

    一 No quarto?

    一 Na pousada, provavelmente.

    O mentor complementa por conhecê-la mais do que o outro. Com a fala dele, a espadachim lentamente desliza os olhos e começa a assobiar em um tom mais baixo.

    Ao ver Jeanice de canto, o olhar dela se estreita em um pesar.

    一 Espero que ela fique bem aqui…

    Apesar de Yurgen e Raisel ainda estarem fincando lanças sobre Carmen, os três sentem o mesmo.

    Um suspiro sincronizado dos dois precede um levantar. Eles, por sua vez, deveriam ir antes que ela acorde.

    A porta do quarto se abre e o último a sair é a mulher.

    Sobre a mesa, um papel com algo escrito é deixado para a garota.

    Descansados, eles descem a escadaria e se veem diante da recepção completamente vazia. A atendente não está ali, mas a única coisa que os espera é a saída…

    A hora de atravessar o “Inferno da Noite” para ir até o Castelo de Kromslaing chegou.

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