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    POV: RENATA SILVEIRA

    O barulho do recreio parecia que ainda ecoava pela escola, aquele que sempre foi característico dos momentos em que a escola estava em aula. Mas entre os intervalos dos períodos, o ruído era substituído pelo silêncio. 

    E era nesse momento, a melhor hora para estudar.

    Mesmo depois do estranho acontecimento do garoto, que foi parar no hospital inclusive, as aulas naquele outro dia foram normais.

    É claro, ocorreram os cochichos característicos durante o dia, mas nada mais do que apenas um burburinho. O assunto aparentemente morreu por ali…

    “Esperamos pelo menos…”

    Afinal, as aulas regulares já haviam terminado, e estávamos na espera pelo começo da aula do Miguel daquele dia, que só começaria a tarde.

    Então, por hora, ficamos nas mesas do pátio, onde o lanche era normalmente servido. A escola tinha várias regras sobre ficar no contra-turno, mas por ter estudado ali há anos, conseguir a permissão não era algo difícil. As aulas especiais foram mais uma das tarefas extracurriculares da lista que fizemos nos últimos anos.

    O pátio ficava bem calmo durante esse horário, as merendeiras começavam o preparo do lanche da tarde, enquanto os professores entravam e saiam da escola para ir para o almoço.

    Havia árvores ao redor do banco e da mesa em que estávamos, suas copas pareciam carregadas e espantavam o calor com o forte vento que as balançavam. 

    Percebi o quanto eu estava divagando, optei por abrir o caderno e começar a ler os exercícios que tinha que resolver, mas minha cabeça latejava. Suspirei momentaneamente e massageei as têmporas.

    — Ressaca literária de novo? — Helena perguntou, com aquele sorriso zombeteiro que só ela conseguia fazer sem parecer cruel.

    Assenti. — Sim, devorei o livro do Curry em o quê? Menos de uma semana?

    Ela riu, mas eu sabia que não era frescura. A ressaca literária sempre vinha quando eu abusava.

    E sempre foi algo comum de acontecer, afinal, como nossa professora Andressa comentava em aula:

    — A ressaca literária é nada mais do que uma sobrecarga de energia mágica liberada no cérebro, quanto mais rápido o consumo, maior a energia que o cérebro tinha que processar — comentou ela, enquanto escrevia no quadro a definição do conceito. — O resultado era uma exaustão acompanhada de dor de cabeça.

    Depois de alguns momentos após a latejação passar, consegui focar inteiramente no caderno, ajeitei a postura e dei continuidade.

    — Mas tudo bem. Logo passa.

    — Você é doida, Rê — Helena balançou a cabeça. — Eu levo semanas pra terminar um livro desses.

    — É que eu não consigo parar. Parece que o texto puxa minha atenção de um jeito que eu não tenho controle.

    Ela deu de ombros e começou a rabiscar algumas anotações. Aquele silêncio rápido foi quebrado quando lembramos da atividade da professora Andressa, em Geografia Encantamental.

    — Ah, é! — Helena falou, erguendo a cabeça. — Já pensou no que vai escrever?

    Revirei os olhos. 

    — Difícil esquecer. O tal questionamento do IBGEL… né?

    Nossa última aula tinha sido sobre um dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Literária:

    Mais de 86% das marcas literárias registradas no país eram de livros internacionais. Apenas 14% vinham de autores brasileiros.

    Era quase um retrato cruel do nosso vira-latismo cultural.

    — E a tarefa ainda era algo… como, listar as marcas nacionais que conhecíamos, né?

    Vi que Helena se apoiou a mão sob a mesa, enquanto aparentava ponderar sobre o assunto.

    — Na verdade, é quantos dominadores de marcas brasileiras você conhece — disse ela.

    — Três, contando comigo: o professor Francisco, você e só — respondi, e sorri sem humor.

    Ela arqueou as sobrancelhas. — Sério? Só isso?

    — Pois é — comentei, conforme respondia às perguntas do questionário. — E o pior é que sempre citam os mesmos autores quando falam das marcas brasileiras…

    Machado de Assis, Jorge Amado… sempre eles. 

    Ninguém falava do Lúcio Cardoso, da Hilda Hilst, da Carolina Maria de Jesus. Parece que só existem uns nomes que eram sempre lembrados

    — Talvez porque os outros dão trabalho de ler — Helena riu, que aliviou o peso da conversa. 

    — Ah, vai se ferrar  — joguei uma borracha nela, que desviou rindo. — Se fosse assim, ninguém lia Shakespeare também.

    — Mas é que Shakespeare é bem escrito né… — retrucou, teatralmente, como se o nome fosse sagrado.

    Caímos na risada juntas, chamando a atenção de dois guardas que passavam pelo pátio, e que provavelmente decidiram nos ignorar porque só continuaram indo em direção ao portão.

    Por alguns instantes, aquela risada sincera, me fez esquecer da dor de cabeça e da sensação chata de que a literatura brasileira era sempre secundária.

    — Melhor focar na tarefa de uma vez, não quero ter que carregar você nas provas de novo, igual ano passado — comentou Helena, em tom brincalhão.

    — Coitada… até onde lembro, quem teve a maior média fui eu — revirei os olhos, mas sorri.

    — Claro, sendo a preferida do professor Francisco, até eu, né… — retrucou ela.

    — Se for chorar, manda áudio…

    — Ah, vamos ver nas provas desse ano então…


    POV: HELENA IVYRA

    Renata ainda ria da piada que tinha feito, e eu só balancei a cabeça, fingindo estar indignada. 

    É claro que, no fundo, eu concordava com ela. Era triste ver como certos autores pareciam simplesmente esquecidos, como se a memória literária tivesse sido seletiva demais.

    — Sabe o que é mais irônico nisso tudo? — comecei, ajeitando o cabelo atrás da orelha. — A gente vive num mundo em que a leitura literalmente dá poder. 

    — E mesmo assim, eles escolhem fingir que ela não existe… — completou Renata, já sabendo o que eu ia dizer. 

    Renata arqueou as sobrancelhas, como se esperasse mais.

    — Parece até enredo de um conto de fadas… ou, sei lá — completei, rindo sozinha. — Plot de uma webnovel?

    Ela me olhou com aquele jeito cético de sempre. — Helena, às vezes eu acho que sua cabeça é uma mistura de fanfic com paranoia.

    — E você tá errada? — rebati, com um sorrisinho debochado.

    Mas, deixando a paranoia de lado, aquilo tinha alguma lógica. Talvez o problema fosse o gênero em que os autores brasileiros tinham deixado sua marca. 

    A maioria não escrevia alta fantasia, não criava shonens, nem universos de HQs épicos. 

    O domínio deles sempre esteve em romances, poemas, crônicas, estilos lindos, mas que não tinham a mesma popularidade entre os jovens que corriam para os portais digitais atrás de sagas estrangeiras.

    No fim das contas, os encantamentos mais cobiçados vinham de fora. Era um reflexo direto de como a gente consumia literatura.

    Os e-readers escancararam as portas para o conteúdo internacional, mas o Brasil… ah, o Brasil tropeçou nas próprias pernas. 

    Entre a lentidão para adotar tecnologia e as burrices governamentais acumuladas, nossa indústria literária nacional ficou cada vez mais frágil.

    E agora, com a nova lei em vigor, a discrepância só ia aumentar.

    Suspirei fundo, fechando meu caderno por um instante.

    — Moral da história: não basta estar no fundo do poço, o Brasil ainda pega uma pá e começa a cavar mais…

    — Isso é tão a nossa cara — ironizou Renata, que ria tampando a boca com a mão.

    — Típico do Brasil — concordei, tentei não deixar o peso da constatação apagar o clima leve entre nós. 

    E assim seguimos, rindo da tragédia como boas brasileiras.


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